sábado, 2 de dezembro de 2023


 

 

MENTES DE PAPIRO I  (2 ago 11)

 (RITA HAYWORTH, apogeu de Hollywood)


Eu só presumo que exista na minha mente

algum arquivo dos versos que já fiz.

Sei que não digo o que todo mundo diz,

mas como evito se plagiem mutuamente

 

versos antigos de esplendor frequente

e os versos novos que ontem mesmo quis

trazer à luz, em seu luar de giz,

trazer ao mundo, rindo brandamente...?

 

Pois este é o fato: eu me surpreendo tanto

ao ler os meus sonetos do passado,

ou outros tipos de poemas feitos

 

por outros de mim, que já perdi no enquanto,

cada um em simples cela emparedado,

pelas grades de mil versos já desfeitos!...

 

MENTES DE PAPIRO II

 

Talvez eu tenha alguma biblioteca,

nos escaninhos neurais, esconsamente,

guardada em mil papiros, de potente

resistência contra o tempo que os resseca.

 

Indubitavelmente, possuo discoteca:

melodias aos milhares, certamente,

eu reconheço, de ouvi-las novamente,

ou as reproduzo, nas vezes que me seca

 

a fonte externa de sons mais musicais.

A audição tem memória permanente...

Já os livros, não são todos que recordo

 

e até existem alguns originais

de que me foge o conteúdo à mente,

desses que escrevo quando à noite acordo.

 

MENTES DE PAPIRO III

 

Tenho um retalho de minhalma, que até hoje

sobrevive tão só no pensamento.

O que farei quando o dia em mim se aloje,

em que terá de ser dado em casamento?

 

O que farei, se da lembrança foge

qualquer detalhe de tal procedimento?

Não sei onde puxar, para que apoje

esse abstrato leite do argumento...

 

Com que livro casarei, com qual poema,

esse retalho de minhalma virgem?

A qual mulher erguerei meu juramento,

 

comprometendo esse retalho em cego lema,

que uma alma e outra alma cerzem,

no próprio sangue de seu defloramento?

 

MENTES DE PAPIRO IV—28 NOV 23

 

Mas se o retalho de minhalma, em casamento

darei a ti, em seu travestimento;

se me envolvi em ti, qual véu de noiva,

retirado de minha mente a talho e goiva;

 

Se a mim mesmo deflorei constrangimento,

ao te prestar sincero juramento;

se minha lembrança te falou, constante,

em mil palavras de apego delirante;

 

Se nesses cantos de minhas ilusões,

com sangue costurei dois corações;

se tantas coisas que pouca gente diz

 

a sussurrar-te nalma então eu quis;

dentro em minha solidão, apenas penso

como me é confrangedor o teu silêncio...

 

MENTES DE PAPIRO V

 

Meus sonhos reduzi no teu papiro

e os teus sobre o puro pergaminho

desse retalho dalma, pequeninho,

que sai do meu olhar quando te miro...

 

Anda dentro de ti e faz o giro,

depois volta, reduzido de mansinho

dos hieróglifos captados no caminho,

por esse amor com que a mim mesmo firo.

 

Mas no papiro escrevi porque queria,

na imensidão do amor que então sentia,

nos fragmentos da alma que te dei.

 

No pergaminho, porém, não escreveste,

fui eu que fui buscar o que escondeste,

teus sentimentos mais profundos que roubei.

 

MENTES DE PAPIRO VI

 

E quando o meu desejo furibundo

se lançou sobre tuas vistas e as roubou

este reflexo de amor que captou,

parecendo o mais sincero olhar do mundo

 

e no beijar de teus lábios rubicundos

uma flora ali escondida divisou,

pequena flor que apenas tremulou,

ao vento do desejo mais profundo.

 

E foi assim que fiz: não foi entrega,

não foi a meiga e pura aceitação,

que se envolveria em mim com pura calma,

 

foi mais o arroubo de uma fúria cega,

manifestada em chispas de implosão,

com que consigo arrancar-te a flor da alma.

 

MENTES DE PAPIRO VII  -- 29 novembro 2023

 

Há uma história de fadas muito antiga,

sobre uma certa Princesa Flor-de-Ervilha,

a quem a sogra preparou uma armadilha,

sobre essa cama que seu corpo abriga.

 

Ela estendeu doze colchões em fina intriga,

para confirmar a delicadeza dessa filha

e neta de reis que a saga encilha

e sob os doze pôs ervilha a inimiga...

 

Pela manhã encontra-se a princesa,

tonta de sono e toda estremunhada,

não conseguiu pregar olho a noite inteira;

 

só a sogra adquiriu então essa certeza

de que sua pele era assim tão delicada,

por ser de fato uma princesa verdadeira!

 

MENTES DE PAPIRO VIII

 

E desse modo és tu: coisa bem pouca

já basta a despertar o teu rancor,

ocultar muito bem o teu amor,

sob essa pilha de perfídia rouca;

 

a minhas desculpas tua audição é mouca,

por uma só ervilha o teu pendor

se exalta em ladainhas de calor,

tal qual tua mente se volvesse louca.

 

E nada adiante ter te dado dez colchões,

doze que fossem, qual na história da princesa,

que da pequena ervilha te apartassem,

 

pequena ofensa nos separa os corações,

numa enxurrada de frases sem leveza,

que por tua mente talvez sequer passassem!

 

MENTES DE PAPIRO IX

 

Assim eu vejo as manchas no papiro,

quando tentei redigir em minha clareza

e o pergaminho espelha essa impureza,

na acusação do golpe com que firo.

 

Mas se em resposta sem querer minha língua giro,

quando menos por fazer a minha defesa,

surge avalanche permeada de altiveza,

nessa tua voz a atingir o meu retiro.

 

E então penso, em tal lençol de mágoa,

como é fácil para ti o reverter,

transformado em desgosto o meu prazer,

 

no prolongar constante dessa frágua,

em que não pensas sequer reconhecer

tal tempestade feita em copo d’água!

 

MENTES DE PAPIRO X – 30 novembro 2023

 

Mas nisso tudo sobressai uma verdade,

estando secos e ancestrais esses papiros,

ressecados ao vento nos seus giros,

fácil rasgados em pulvericidade.

 

Também se esgarça em tal fragilidade

o pergaminho dourado como círios,

que fora um dia branco como lírios,

mas foi malhado pelo tempo em veleidade.

 

Por isso lágrimas talvez sejam necessárias,

a fim de restaurar-lhes a umidade

ao papiro e ao pergaminho ressequidos,

 

que nas suas fibras se prendam solidárias,

a reviver-lhes a ultrapassada mocidade

dos juramentos há tanto proferidos.

 

MENTES DE PAPIRO XI

 

E assim nascem as videiras pelos céus,

sejam dos ares, sejam de tua boca,

enquanto ervilhas, que tortura louca,

conseguem penetrar por tantos véus.

 

São pés de erviha somente dos incréus,

mas com gavinhas tecerás a touca

e com pevides essa esperamça rouca,

dando acolhida a minúsculos arpéus.

 

Derramo o vinho sobre o pergaminho,

sobre o papiro suco de ervilhaca

e assim renovo sua anterior vitalidade,

 

porém não os posso restaurar sozinho,

só o teu amor traz a perfeita goma-laca,

com que rebrilha o seu pendor de opacidade.

 

MENTES DE PAPIRO XII

 

Pois assim estão em cela emparedadas

as mil recordações desse passado,

tão laboriosamente registrado,

nessas miríades de frases apressadas,

 

nessas sentenças de datas ressecadas,

nesses poemas de fulgor semiofuscado,

nesses registros de pó acumulado,

gélido pó de lápides quebradas.

 

De certo modo, se erguem da memória

velhos sonetos de amor que já escrevi,

os mil poemas de espanto revestido

 

e quase sem sentir, afasto a escória

dos pergaminhos e papiros que perdi,

só um verso nu na mente a ser ouvido...

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