domingo, 8 de maio de 2011

LÂMINAS DE VIDRO (2010)



LÂMINAS DE VIDRO I  

    Vão-se os anéis, porém ficam os dedos;
    os dedos vão-se, ficam os retratos:
    no sépia aveludado, quais os fatos
    assim mostrados por trás de rostos ledos?
                    São rostos sérios,
                    fisionomias
                    de antigas vias,
                    velhos impérios
    desses mortos silenciosos e pacatos,
    que nos enfrentam com seus mil segredos,
    quais seriam seus sucessos, quais os medos,
    nessas fotos mostrados sem recatos?

LÂMINAS DE VIDRO II

    Na esperança de um parecer casual,
    eles evitam olhar a objetiva,
    mas a paisagem pintada nos motiva
    a perceber como é pouco natural
                    esse momento
                    de conversa muda,
                    em que se estuda,
                    de olhar atento,
    esse jornal com gravura que cativa...
    O que "O Espelho" nos mostrará, afinal?
    E a palha desses vimes, tão banal,
    mais que os humanos, dá impressão de viva...

LÂMINAS DE VIDRO III

    Os rostos sérios, voltados ao futuro,
    eles nos fitam com sabedoria:
    essa certeza com que se iludia
    cada um deles, ao se pensar maduro.
                    Muito convictos,
                    de velhas crenças,
                    nas poses tensas
                    dos veredictos.
    Mas por detrás da certeza, o que haveria?
    Nesse porvir encarado de olhar puro,
    em que se apega cada um, nesse seguro
    ritual antigo de tal fotografia...?

LÂMINAS DE VIDRO IV

    Seguro em seu dever patriarcal,
    rodeado pelos filhos e parentes
    ou, quem sabe, talvez por dependentes,
    na mesma pose dinástica e imperial,
                    da austeridade
                    do Imperador
                    é o sucessor,
                    com seriedade...
    "Pedro Segundo", imitado pelas gentes
    e a "Princesa Isabel", em magistral
    pose altaneira e quase triunfal,
    para a moldura firmes e imponentes...

LÂMINAS DE VIDRO V

    Estranho o trio dessa fotografia,
    certamente, quer passar por elegante...
    O da bengala nos encara, provocante,
    mas será que o do centro nos sorria?
                    Que coisa rara,
                    gente tão séria!...
                    Alguma léria
                    mostra essa cara...                   
    Contempla o mundo como um triunfante,
    nessa expressão complacente de ironia,
    enquanto o outro rapaz quase fugia,
    apressado para encontro interessante...

LÂMINAS DE VIDRO VI

    Onde se encontra a mãe dessa família?
    Sentam-se o pai e um filho nas cadeiras...
    Há duas meninas em batas de enfermeiras
    e uma senhora, em gala, se perfila...
                    Seria a mãe?
                    Por que em pé?
                    Ponto de fé
                    mostrar respeito
    ao senhor seu marido?  Ou é sua filha,
    entre os irmãos, em roupas domingueiras,
    firmes os rostos, as visões certeiras
    dessa gente engomada para a fila...

LÂMINAS DE VIDRO VII

    Dois grumetes seguram panamás
    que, certamente, nem sabem usar...
    As duas meninas, a ponto de chorar...
    Quantos castigos à sua mente faz
                 a recomendação
                 de que não é brinquedo!
                 Qual o segredo
                 da imóvel posição
    que os roubou aos folguedos de seu lar?
    A ventarola que a mais velha traz
    parece mais o espelho de horas más,
    refletindo um lambe-lambe a trabalhar...

LÂMINAS DE VIDRO VIII

    Enfrenta a vida em curiosa desconfiança
    esse menino, entre as dobras da mantilha.
    Decerto é no verão, que sua família
    mostra orgulhosa a pele clara da criança...
                    Mais sonhadora,
                    a jovem dama,
                    olhar de chama,
                    toda senhora...
    Orgulhosa do fruto de seu ventre,
    mostrando o filho qual uma oferenda,
    envolvido nas franjas dessa renda,
    para que o mundo triunfante adentre...

LÂMINAS DE VIDRO IX

    Nessas poses tão antinaturais
    ressumbra a ânsia da imortalidade.
    O corpo não perdura, é bem verdade,
    porém fotos talvez sejam imortais...
                    "Assim eu fico,
                    depois da morte;
                    a minha sorte,
                    assim dedico..."
    Nessas paredes de molduralidade,
    esse reflexo das feições carnais...
    Ou quem sabe, equilibrado nos beirais
    de uma lareira, com mais visibilidade...

LÂMINAS DE VIDRO X

    É claro que em tais fotografias
    não é o rosto que fica, só um reflexo
    da luz sobre as feições, em tal amplexo,
    qual uma casca das almas fugidias...
                    Que nunca volta,
                    mas que o retrato,
                    diz o boato,
                    guarda e não solta
    essa vaidade, não importa de qual sexo,
    esse resguardo de antigas ironias,
    a fina capa de luz com que cingias
    a superfície de um interior complexo...

LÂMINAS DE VIDRO XI

    Tais olhares mostram certo hipnotismo,
    envolto num rancor de fantasia:
    é como se invejassem nossa orgia
    de luz e movimento e preciosismo...
                    E se tivessem
                    restos de alma?
                    Olha com calma:
                    seus olhos mexem.
    Talvez exista uma fantasmagoria,
    quem sabe até um certo mesmerismo,
    nesses rostos consumidos de mutismo,
    cuja visão a ti fascinaria...

LÂMINAS DE VIDRO XII

    E quem nos diz que os rostos esquecidos,
    guardados longo tempo nas gavetas,
    reservas de energia, bem secretas,
    não conservam dos séculos perdidos?
                    Na escuridão,
                    entre jornais,
                    sonhos formais,
                    sem ilusão...
    Mas quando à luz de novo são trazidos,
    então nos fitam, com vistas indiscretas,
    na lembrança de suas horas mais diletas,
    antes que os corpos fossem consumidos...

Convido  a todos  para o  lançamento  do  meu  livro, Horóscopo Cigano, que acontecerá no dia  20 de maio (sexta-feira)  às 18 horas, na Casa de Cultura Pedro Wayne  (Av. Sete de Setembro, esquina General Netto, Centro, Bagé).

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A LONGA RECORDAÇÃO



Éramos quatro, no início do caminho:
Robert e William, Maria e Susana.
Seus sobrenomes não repetirei;
Basta dizer que, por estranha gana,
Caprichos do destino, em seu carinho,
Começavam por "A" --- mais, não direi.

A e A, B e B, Bob e Bill, os dois casais,
Decidimos seguir a velha trilha,
Seguida desde o século anterior,
Dos Apalaches, nos montes que perfilha
E nos seus vales, sendas que jamais
Tornarei a seguir, com tal vigor...

Acampávamos em tendas e cantávamos,
Fazíamos amor sob as estrelas,
Era uma trilha segura e muitos mais
Encontrávamos na senda, jovens belas,
Rapazes vigorosos; conversávamos
Até seguir em frente; e os eventuais

Companheiros perdíamos em marcha.
Às vezes trabalhávamos, dia ou dois,
Para seguir avante: alternativas
Sempre era possível encontrar depois,
Ao acaso das vistas, na demarcha
Das novidades sempre redivivas...

Maria quis voltar, após semanas,
Alegando cansaço, mas bem que eu escutara
A discussão que com Bob ela tivera,
Depois da noite em que me visitara,
Depois de combinar trocas insanas
Com minha Susana; e que prazer me dera!... 

Bob ficou mais três ou quatro dias:
E então partiu também: e éramos dois,
A minha Sue e eu, em pleno amor,
Até que ela cansou, já bem depois
E decidiu que eu poderia aos guias
Pedir orientação: deixou-me a tenda e a dor.

Levei-a a uma estação rodoviária,
Nos despedimos com um longo beijo,
Seus cabelos vermelhos me abraçaram...
Mas não voltou atrás: e quis o ensejo
Que sozinho eu ficasse na diária
E longa senda que meus pés trilhavam...

Eu decidira seguir até o fim:
Se ela me amava, por mim esperaria,
Mas eu queria, no ardor da mocidade,
Fruir dessa experiência e pressentia
Que algo importante me aguardava, enfim,
Nesse longo caminho da saudade...

Um dia, afinal, cheguei ao Cemitério
De longas filas brancas, tantas cruzes
Em Gettysburg, marcavam aos milhares
Sulistas e nortistas, entre as urzes,
Naquele vasto campo e eremitério:
Bandeiras junto às tumbas, tantos pares...

As brancas filas pus-me a percorrer,
Sem um destino certo: parecia
Apenas a olhar: nomes sem fim:
Tenente, capitão, major, tanta elegia
Nos nomes desses mortos reviver...
E fui andando sem rumo, até que, enfim,

Um túmulo maltratado a atenção
Me chamou:  a cruz, meio partida,
A lápide de musgo quase recoberta...
Não sei quê me levou a tal guarida,
Por que me despertou tanta atração
Aquela tumba, na vastidão deserta.

O certo é que o coração me trepidava,
Enquanto me ajoelhei para a inscrição
Conseguir ler, saber qual militar
Morrera na batalha...  sem razão;
E cujo corpo ainda descansava,
Debaixo dessa pedra tumular. 

Limpei o musgo: "William", como eu;
Nome comum; "Lewis", também...
E então meu dedo limpou o sobrenome:
As letras vão surgindo e já me vem
Que era "Geddes" -- o mesmo nome meu!...
E o choque então minhalma me consome!

"William Lewis Geddes", um tenente,
Que morrera pelo ideal confederado,
Segundo me informava essa inscrição!...
Meu coração bateu descompassado.
Mas como esse meu passo indiferente,
Me tivesse conduzido, que intenção

Oculta havia, em me levar ali,
Àquela tumba obscura e maltratada,
Cheia de líquens, musgo, ervas daninhas?
O que levara minhalma atribulada
A ajoelhar-se tranquila, bem aqui,
No meio dessas cruzes tão mesquinhas?

Isso foi fato.   Mas tive, no momento,
Uma ilusão, talvez só fantasia:
Que recobria a carne de meu braço
A manga acinzentada; e que trazia,
Nessa túnica rasgada, num portento,
Manchas de sangue e o furo de um balaço!...

Ergui-me então depressa, que a atração
Eu tinha de romper...  Era a camisa
Verde que usava antes: nem o sangue,
Nem o rasgão, nem sequer a tal divisa
Apareciam mais...  Tudo ilusão...
Meus dedos pálidos e meu rosto exangue.

Cabelos arrepiados, calafrios
Correndo pela espinha, já recuei,
Pensando até em fugir... Mas li de novo.
E ali estava o nome, tal que usei,
Nas madrugadas daqueles dias frios,
Marchando para a morte por meu povo. 

Claro que foi estranha coincidência:
Fiz uma prece por esse morto antigo,
Dei as costas ao túmulo, fui embora;
Mas, num impulso, olhei para o jazigo:
E já em nova ilusão dessa vidência,
Vi ajoelhada ante a tumba uma senhora,

Cabelos negros, lisos, até a cintura,
Toda de negro, igual... E, pela mão,
Trazia duas crianças, um menino
E sua irmã; de novo, o coração
Pôs-se a bater, num medo, de mistura
Ao reconhecimento, em desatino,

De que aquela mulher era a viúva,
Morta também há décadas; e até
As duas crianças: todos do passado.
Pisquei os olhos... E juro, por minha fé,
Que ninguém estava ali, só a luz fulva
Do sol sobre o capim meio amassado.

Saí de Gettysburg, pela estrada,
Até encontrar a mesma trilha antiga,
Sem contar a ninguém o meu espanto.
Foi como verso tirado de cantiga:
A mais estranha experiência da jornada
Que tive pelo mundo, nesse encanto

Que tanto me espantou, que até apaguei
A memória da mente, ano após ano:
Garanto que esqueci-me, totalmente,
De traumático que foi o desengano...
Por longo tempo, nem sequer lembrei,
Ao fato fantasmal irrespondente. 

Alguns meses atrás, ouvi canção,
Cantada então pelos confederados:
Uma porta se abriu, dentro da mente
E tudo me jorrou, fatos passados,
Que buscara ocultar do coração...
E como esse esconder fora eficiente!...

Pois ver meu nome naquela sepultura,
Numa tarde de sol... Que coisa trágica:
Ver a mulher que amara em outra vida!..
Foi realmente uma experiência mágica,
Porém que me causou tal amargura,
Que não queria a memória revivida...

E agora, ela está aqui, não vai embora,
Bob morreu no Viet Nam; elas, porém,
Saíram de minha vida, sem lembrança.
E a cruz partida, eu apaguei também,
Escondida no estertor de meu outrora,
Por conservar um resto de esperança...



Convido  a todos  para o  lançamento  do  meu  livro, Horóscopo Cigano, que acontecerá no dia  20 de maio (sexta-feira)  às 18 horas, na Casa de Cultura Pedro Wayne  (Av. Sete de Setembro, esquina General Netto, Centro, Bagé).

domingo, 1 de maio de 2011

CANTORIA (29 abr 11)





Nunca fiz visita à Arábia,
nem tampouco à Palestina.
(Muçulmano que não peca
precisa visitar Meca,
em busca de melhor sina.)

Mas tampouco fui a Roma,
buscar a bênção do Papa.
(Naquela multidão vária,
cercado pela estatuária
de tanto santo de capa...)

Nunca vi Jerusalém,
nem sequer a Via Crucis.
(Das Lamentações o Muro
só vi no cinema escuro,
depois que apagam as luzes...)

Nem fui ainda à Inglaterra,
a Canterbury em visita.
(A catedral anglicana
minha visita reclama,
mas meu corpo não se agita...)

Nem sequer a Compostela,
Caminho de Santiago.
(Percorrendo meia Espanha,
peregrino não se acanha
de pedir ao santo o afago...)

Das vezes que viajei,
tive outras intenções:
busquei muito mais cultura,
busquei beijos de ternura
e não peregrinações.

Porém sigo o meu caminho,
apenas fazendo versos.
Trabalho quanto é preciso,
nem um momento indeciso
em misturar-me aos conversos.

Porque não me disporei
a rezar por cinco vezes
a cada dia.  Vou orar
sempre que em Deus eu pensar,
no decurso de meus meses.

E assim, prossigo minha vida,
por obra e graça de Alá.
E embora não me converta,
seu poder não desconcerta
e aqui me protegerá.

Clemente e misericordioso,
como reza no Alcorão,
defendendo a vida humana,
sem condenar a quem chama
a si mesmo de cristão.