FOGO DE FANTASMAS I
Nas cataratas que meu corpo descerá,
percorrerá o Nilo e o Mississippi:
cabelos longos no trajar de hippie,
emaranhados assim, ao deus-dará.
Contempla o íbis e a fragata piará,
num marcapasso que não faz mais bipe;
meus guarda-costas descerão do jipe,
mas seu chamado não me dissuadirá.
Eu descerei depressa a meu jazigo,
nesse rio subterrâneo de ameaça,
enquanto vejo as sombras me saudarem
E meus fantasmas me darão abrigo,
nesse albergue em que o sonho se desfaça,
cujos deuses me fitam, sem piscarem.
FOGO DE FANTASMAS II
Lavei as mãos no fogo e vi o vento
enebulado pela aragem fria,
transpassado pela luz que me alumia
o coração em compassado e lento
palpitar desprovido de portento,
morna minha alma pela nostalgia,
morno meu corpo despido de histeria,
morna minha mente em todo o pensamento.
Nessa nuvem piroplástica em que estava,
meu coração brunido nesse abrigo,
reconstituído pelo ardor de meu perigo,
lavei as mãos na lava que me lava,
escondido nas faldas de um vulcão,
e evaporei-me, em plena exaltação.
FOGO DE FANTASMAS III
Quem me olha do espelho é meu fantasma:
meu duplo, que é mais belo do que eu.
Esse rosto que percebo, não é o meu,
por mais que imite o quanto de mim plasma.
É uma ilusão somente, que me pasma:
essa figura tem um mundo seu.
O meu passado já conhece e leu,
mas é somente reflexo e miasma.
É por isso que me ilude e me consola
do rosto feio das fotografias,
que não quero sequer reconhecer,
nessa incerteza que minha vida assola,
a corrigir tantas desarmonias
a que a autoimagem se recusa pertencer.
FOGO DE FANTASMAS IV
Ao te veres no espelho contemplado
com outra imagem que nas fotografias,
pensa bem no que fazes. Poderias,
se não tiveres um pouco de cuidado,
por essa mesma imagem ser trocado.
Desse mundo do espelho, aonde irias,
não saberás padrões nem fantasias:
talvez sejas pelo espelho devorado.
Sabe-se lá!... Por essas luzes puras,
quais os caminhos que se irá trilhar,
que estranhas sendas podem-se encontrar,
quando esse corpo concreto em que perduras
abstrato se torne, em novos zelos,
como a figura de tantos pesadelos...
FOGO DE FANTASMAS V
Este mundo em que te encontras, talvez seja
do verdadeiro só a imagem especular:
quem sabe se tua mente agora enseja
nada mais que os sinais do imaginar;
quiçá em outro mundo agora esteja
essa figura do espelho, singular:
esse teu duplo só Deus sabe se não beija
aquele outro que mais quiseste amar.
Repara como as coisas bem depressa
se modificam, com tua aproximação:
vão aumentando, quando chegas perto,
vão diminuindo a cada vez que as meça
o teu olhar, em cada afastação:
quem sabe crias o seu tamanho incerto?
FOGO DE FANTASMAS VI
Se assim for, vê como o mundo é relativo:
nenhuma coisa tem tamanho exato,
nem o alimento posto no teu prato,
nem as pegadas de teu passo vivo.
O mesmo ocorre com teu amor no crivo:
como a distância te comprova o fato,
que traz olvido te murmura o boato,
no afastamento do sonho mais altivo.
Se as coisas são assim, se tudo muda,
se até mesmo teu rosto se transmuda,
na medida em que te afastas de tua infância,
que te garante qualquer outra permanência?
Talvez tudo não passe de demência
e seja a vida tão somente uma lembrança.
FOGO DE FANTASMAS VII
Um beijo é um beijo e passa transitório:
é o prazer de uma gota de suspiro,
é a mente na tortura e a alma em giro:
a venda de ilusões, no seu empório.
Mas a espera desse beijo, por inglório
que possa parecer o alvo que miro,
é um adiamento em que o prazer estiro,
até que o instante chegue, peremptório.
Que nesse beijo, por tanto antegozado,
minha boca na tua boca, eu sentiria
toda a tristeza que dentro dalma brota...
Pois ao vê-lo, finalmente, realizado,
perderei a antecipação que me nutria
e o meu desejo... no beijo assim se esgota.
FOGO DE FANTASMAS VIII
O que se faz com folhas de esperança?
Põe-se num copo e espera-se rebrote...
Tênue raiz o recipiente esgota,
em cada filamento de abastança...
Robustas as raízes, sem tardança:
escolhe-se da espera uma só quota,
que em pleno coração então se bote,
sugando nossas veias em bonança...
Ainda que cause essa esperança enfarte,
em seu colesterol de rica espuma,
não posso conceber mais doce morte.
Pois cada artéria pura toma parte
e a dor que chega é leve como a pluma,
quando morrer de esperança é nossa sorte.
FOGO DE FANTASMAS IX
Evito retratar-me, porém, se acaso o deixo,
um bom esforço faço para sair mais feio:
perder nacos da alma é quanto mais receio,
mas se perder defeitos, de certo não me queixo.
Em cada foto assim parece-me desleixo
deixar que o próprio rosto se prenda de permeio:
minha imagem corporal na vida é meu esteio,
que me mantém erguido como tutor de freixo.
Se neles saio belo, percebo que melhor
fagulha de mim mesmo me foi obturada
e perco ainda mais em foto digital...
E, por perder virtude, me torno ainda pior,
nessa sutil ausência da imagem decepada,
largada assim de mim no mundo natural.
FOGO DE FANTASMAS X
Contra a tela do pecê eu busco em vão
mascarar minha imagem turmalina.
Sempre existe cobertura que me ensina
que meu fantasma, em digital paixão
não foi informatizado. É um pobre anão
em termos cibernéticos. Se inclina
mais ao mundo especular, lâmina fina,
ligada a um mundo de frustrada união
com este que eu habito. Dimensão
de lisura aparente, enquanto aventa
alternativas mil para um orgasmo,
que me fatia assim o coração,
nessa incerteza que a avidez ostenta,
em lago puro, feito de marasmo.
FOGO DE FANTASMAS XI
A luz desse meu duplo é luz de olvido;
nas faldas de minha mente está inserido
esse objeto de uma vaga percepção:
igual imagem que em câncer tem nascido.
Por isso a tais exames, com razão,
meu corpo e crânio furto, na isenção
desse tumor em que sempre tenho crido:
qual selvagem ignorante na emoção.
Não se procura, se não se quer achar;
por que a ideia de tumores despertar,
quando não há sintomas, nem suspeita?
Quem sabe não é o exame preventivo
que gera esse sofrer sem lenitivo,
quando um fantasma de mim meu corpo aceita?
FOGO DE FANTASMAS XII
Porque, afinal, quem sabe se o espelho
se encontra aqui, do lado em que eu estou?
Esse ser independente que hoje sou
talvez seja ilusão, um sonho velho
e o fantasma sou eu, fugindo ao relho
da irrealidade e esse que ficou,
o sorriso de ironia que brotou
é por saber do mundo que destelho.
E sou apenas unidimensional,
enquanto me contemplo, real imagem,
por trás de quem mundo maior existe...
Quem sabe até se a coisa é mais fatal
e sou cópia de um fantasma sem coragem,
que atrás de si um ser concreto aviste...?