CHAMAS NEGRAS I
A minha estrela desceu feito esmeralda:
esvoou-se entre meus dedos, num instante.
O fogo dessa estrela não me escalda,
só a saudade é que se expande, triunfante.
Pouco diria à estrela que se esbalda,
nessa descida feroz e cintilante.
Escorre por meu peito como a falda
de um monte incinerado a seu talante.
E me sinto cremado nesse frio,
que transforma meus dedos em geleia:
gélida e verde a esmeralda da ilusão.
Pois minha estrela deixou, no seu vazio,
apenas um cadáver de epopeia,
que me ferve, inanimado, ao coração.
CHAMAS NEGRAS II
Nem sei se ainda consigo, à força, relembrar
os beijos que te dei e não devia ter dado:
esse beijo sutil de bênção enlutado
e o beijo imaculado do meretrício amar.
Confesso já nem lembro, mal posso recordar
esse frescor gentil de gosto acidulado,
um, beijo de arlequim; o outro, engravatado,
em rufo amarfanhado de aroma singular.
E à noite, essa centelha, desmesurada foice,
arrastando no céu gotas de sangue humano,
decepou a saliva do beijo alvissareiro.
Os cantos de teus lábios provei e a Lua foi-se;
em gotas de manteiga ficou o sabor profano
e o Sol me derreteu o beijo derradeiro...
CHAMAS NEGRAS III
A doçura de tua língua, tão macia,
percorre os nervos da palma de minha mão:
um arrepio me perfura o coração
e escuto o aroma da voz que seduzia...
Porque teus lábios são de ventania,
a língua é monja perdida em adoração:
fazer amor é qual contemplação,
de prana e mana um mar inunda o dia.
Fazendo amor em tal eucaristia,
em corpo e sangue assim transfigurado,
chegava a crer que amor me retribuía...
Há mais que encanto nessa nostalgia:
é um ritual perfeito do impensado,
que refervesce em plena liturgia.
CHAMAS NEGRAS IV
Queria os bens da vida, enfileirados,
na palma de minha mão: gotas de cera,
que mais me queimarão a vida inteira
do que farão meus dias abençoados.
Mas quero ainda assim, mesmo queimados
os meus dedos, necrosados pela mera
fricção com tal faina, quem me dera! --
a mostrar-me resplendores anelados...
Não sei até que ponto perco a alma,
em troca desses mil balangandãs,
que sempre soube não trariam bom proveito,
mas bem queria um módico de calma:
que não me erguesse, todas as manhãs,
na seguidilha do trabalho com que deito.
CHAMAS NEGRAS V
Neste papel em frangalhos vai minhalma,
como minhalma também se acha em frangalhos
ao receber de tantos golpes malhos,
mas resistindo ainda em plena calma.
Mas são ruínas difíceis que escolhi...
Como é difícil a vida que me deram,
mas minha é a culpa se tanto me escolheram:
sou responsável por tudo o que sofri.
Mas se permito que me façam doravante
o que fizeram antes, sou profeta;
se me enganaram uma vez, eu fui gentil;
se me enrolaram duas vezes, tolerante,
mas se zombaram três vezes, sou pateta,
porque não passo de um covarde vil.
CHAMAS NEGRAS VI (8 mar 08)
O suor de teu peito, entre teus seios
desperta um esplendor dentro da mente:
a lástima da espera indiferente,
a ânsia de mover-me entre teus veios.
A vida se resume em tais esteios,
onde começa a vida, incontinenti,
na força desse leito onisciente
que a vida me mantém por outros meios.
Quero lamber o suor que assim verteste
sobre a alvura da pele, mais que leite,
porque há muito já deixei de ser criança.
Mas ao beber o suor que assim me deste,
é como se me desses, nesse azeite,
a vida mesma feita de esperança...
CHAMAS NEGRAS VII
Eu pretendia parar, verdade pura!
Tenho versos demais nos meus guardados,
em prateleira estão encarcerados,
outros tombaram já da imensa altura...
Se momentos eu tiver, na doce agrura
do trabalho incessante retirados,
serão esses pacotes espanados
e estudados novamente, sem doçura.
Não são mais um prazer, nem compromisso,
tornaram-se somente outra tarefa,
a me rasgar o tempo de minha vida...
Vou colocá-los em fideicomisso,
amortalhá-los na mais fina sanefa
do pano azul que a alma trás vestida...
CHAMAS NEGRAS VIII
Dizem que Amor é cego... mas nos cega,
pois vê perfeitamente, em zombaria.
Somos nós que não vemos o que via:
controla o leme e não mais se navega...
De mosto nos instila, dessa adega
em que os vinhos mais preciosos guardaria.
Mas de algum modo o paladar vicia:
dá-nos vinagre e o vinho mesmo nega.
Então tomamos o vinagre pelo vinho,
enquanto o nosso olfato, de empanado,
já nem percebe dos beijos a acidez...
E tomamos por guirlandas de azevinho
essas coroas de urtiga de seu fado,
que mal nos picam, em nossa embriaguez.
CHAMAS NEGRAS IX
Durante muito tempo conservei
recoberto o assento em que sentaste,
reservado para ti, que o ocupaste,
no qual ninguém sentar depois deixei.
Durante muito tempo separei
dentro em meu coração, onde ficaste,
um lugar só para ti, mas não tornaste,
enquanto o coração vazio guardei.
Um dia, é claro, alguém se assentará
nessa mesma cadeira em que estiveste,
sem nem sequer saber o que desmancha.
Também, um dia, alguém ocupará
esse espaço vazio que assim me deste,
sem perceber o negror da antiga mancha.
CHAMAS NEGRAS X
Para saber se amor é verdadeiro,
consulte o coração, leia a mentira
que a emoção em torno à mente gira,
quando finge que amor é por inteiro.
Para saber se amor é lisonjeiro,
consulte os olhos dela, quando vira
o rosto para o lado e então suspira
que o sentimento tenha sido passageiro.
A vida envolve então a fala esquiva,
a que se nega maior profundidade,
quando somente o temor é reafirmado.
E é tão estranho isso: que a assertiva
tantas vezes disfarce deslealdade,
enquanto o amor completo é renegado.
CHAMAS NEGRAS XI
É bem mais fácil conquistar um território
que poder conservá-lo, diziam os romanos;
isso porque, passados poucos anos,
outros rivais buscavam o ostensório.
Também da comunhão o áureo cibório
e a patena consagrada em dons arcanos
não nos dão os elementos soberanos,
do pão e vinho, senão em perfunctório
ritual a ser, dia após dia, renovado...
E assim é o amor. Se assalta um coração
e se conquista uma alma inteiramente,
mas surgem os rivais, por entre o enfado
e é preciso guardar viva essa ilusão,
mantendo acesa a chama permanente...
CHAMAS NEGRAS XII
Eu peço aos deuses o som da nostalgia,
as chamas ancestrais, que em mim habitam,
as danças dos zagais, que me concitam,
os tropeços com que a senda hoje me adia.
Eu peço aos deuses a fome da poesia,
a cor do vento, os pós que revisitam,
na concha do abalone; e me palpitam,
dia após dia, em odor de melodia...
Eu peço aos deuses que não deem descanso
a esta ânsia estival com que os adoro,
este desejo total de integração:
que revivam em mim de seu remanso,
que manifestem em mim o antigo coro,
que despedacem, em fibra, o coração!...