quarta-feira, 17 de agosto de 2011

FIOS DE ESPELHO



FIOS DE ESPELHO I

Quando a terra me toca, inesperado
é o cheiro de seus dedos sumarentos:
vapor e fogos-fátuos sonolentos,
a luz da vida, que me tem achado...

Mas esse apego da vida é amaldiçoado:
ele me quer para si, meus suculentos
órgãos a tornar pulverulentos,
tomar meus ossos em ósculo agoniado.

Quer tudo dentro em si, redistribuído,
para alimento da vida pululante:
bilhões de criaturas de um instante...

Mas eu insisto, no meu eu contido:
não me devolvo à terra, assim faminta,
para que o sol no peito ainda pressinta...

FIOS DE ESPELHO II

Em cada poça de água eu vejo o céu,
espelho azul da vida desejada,
espelho cinza da vida inesperada,
cada raio de luz um novo arpéu.

Em cada grão de poeira solto ao léu,
espelho de ouro de rama ensolarada,
espelho gris de nuvem apressada,
vejo mil vidas gritando em escarcéu.

Desse espelho do Sol tenho o penhor,
no meu rosto refletido sobre a água,
na sombra escura recamada em mágoa.

Nesse espelho de sol eu vejo o ardor
desses pingos de vida em cantos frios,
nessas gotas de sangue em mudos fios.

FIOS DE ESPELHO III

Qual uma lança, a luz do Sol me alcança,
no meio da pradeira enverdescente;
ramos de cor inerte, evanescente,
a luz do Sol me alcança como lança.

A luz do Sol é mansa e não se cansa,
enquanto o Sol perdura incandescente;
sinto o calor da luz remanescente,
que não se cansa de esgueirar-se mansa.

Mas se tento apalpar os fios de luz
que as palmas recobrem quando abertas,
eles fogem no instante em que os seguro.

É inalcançável tal glória que reluz...
E as sombras me contemplam, redespertas,
gotas de trevas do sabor mais puro.

FIOS DE ESPELHO IV

Com um impulso veloz, estendo a mão
e plena capturo a luz do Sol.
Não me fugiu, eu sei, este arrebol,
vejo em meus dedos a sua projeção.

Mas se dobro meus dedos em alçapão,
para prender na mão o fio de escol
num fecho firme, em apertado rol,
nada mais prendo que a decepção.

Porque a luz capturada é só um espelho,
somente o que minha pele refletiu:
o Sol não fica oculto entre meus dedos.

E é em vão que me agacho ou que me ajoelho,
nessa armadilha que nunca existiu,
para encerrar o Sol nos meus segredos.

FIOS DE ESPELHO V

Em busca de mais sol, exponho a pele
e os fios de luz me cobrem como rede.
Num rodopiar, que muito esforço pede,
tento enrolar em mim a luz que vele...

Mas que essa luz tão mansa se rebele
é incompreensível.   É luz que não se mede,
não se afasta, não dobra, em nada cede
e, contudo, todo esforço assim repele

de conseguir fixá-la...  E nem escorre
e nem murmura ao ouvido como a brisa...
É intangível a luz que me ilumina.

Que sobre mim luz incontável jorre!
Tão ardente, feroz, porém tão lisa
quanto é volátil a luz da própria sina...

FIOS DE ESPELHO VI

Eu me escondo na sombra e fico à espreita,
contemplo a luz mostrada em ouropéis
de fina poeira, filtrada entre os buréis
dos galhos e dos ramos, luz estreita,

que se  projeta ao solo e que se ajeita
como moedas de ouro, como anéis,
como prendas de amor, como fiéis
enrodilhados na prece que se aceita;

e fico a matutar, perdido o rumo,
escondido nas sombras da caverna,
como possa agarrar esse tesouro...

maravedis, sequins, não mais que fumo
quando tocados, nessa troça eterna,
que se desfaz em véus de mau agouro...

FIOS DE ESPELHO VII

Então percebo que a Terra toda é espelho
a refletir somente a luz do Sol,
a refratar sem meta, sem ter gol,
a luz que se derrama em amplo relho.

Também sei que há algo mais nesse retelho,
pois cada planta devora esse arrebol:
a clorofila desposa a luz de escol,
em cada flor ou folha ou em ramo velho.

As plantas todas são da luz filetes:
com ar e água recolhem a energia,
fio após fio, em verde substância

e a luz dourada faz-se em ramalhetes
e a terra negra e o ar azul do dia
espelham a ilusão dessa esperança...

FIOS DE ESPELHO VIII

E por que as plantas podem, mas não eu?
Por que não posso viver da luz que emana
desse astro milenar, divino prana
que, a rodopiar, o derviche torna seu?

Nele me lanço eu vão, como um sandeu,
recubro o chão que de calor se ufana,
estendo os braços em vão, sorte tirana,
porém o solo sob mim é negro breu...

Mas sei que é nesses fios que se acha a vida!
E só consigo minha sombra projetar,
na escuridão que pressagia a morte,

sobre esse espelho, que me leva de vencida,
rede impossível, sempre a me enrolar,
nos próprios fios de espelho de minha sorte.

FIOS DE ESPELHO  IX

Da luz solar não passo de reflexo:
os meus nervos são outros tantos fios,
são fios cinzentos, percorridos de arrepios,
fios complacentes de fulgor sem nexo.

Eu só reflito o Sol, em cada amplexo,
minhas veias, luz vermelha de meus cios,
as artérias, luz carmim para meus lios,
meus canais, a luz branca de meu sexo.

Semáforo, afinal, é o fio de espelho:
o Sol de âmbar quase sempre é indeciso,
só o verde traz o fio de toda a vida.

É do vermelho derramado que centelho,
das gotas de meu sangue nem preciso,
no destemor dessa sangueira desmedida.

FIOS DE ESPELHO X

Por ti eu brilho, vem brilhar por mim,
doce miragem da imaginação:
minha luz espelho, sou como um irmão,
ninguém se lembra de me alumiar assim...

Igual que o Sol, que espalha seu carmim
na calma do crepúsculo, em paixão
(e como espelha sua energia em vão!...]
de que só uma fração se bebe enfim.

Porém, é diferente.   Eu sei reunir
meus fios de luz em simples projeção,
um lêiser concentrando tal calor,

sobre um só ponto, num tremeluzir.
Mas como o Sol, não recebo dotação
da luz fulgente que se chama amor.

FIOS DE ESPELHO XI

E assim a Terra, desmesuradamente,
atrai-me para si, em entropia.
Meus fios de sangue cobiça e desvaria:
quer desmanchar-me e retomar meu ente,

reunido em mim à fé de distropia,
pela busca diária e tão frequente,
pela explosão de versos imanente
e converter-me somente em energia

que possa distribuir a seus clientes:
larvas e vermes, pequenos roedores,
vírus e bactérias, fungos em multidão;

por isso eu distribuo meus ingentes
pacotes de energia a meus leitores,
como um esforço para adiar a escuridão.

FIOS DE ESPELHO XII

Em cada linha que se esvai de mim,
embaraçados, vão os fios de espelho,
alguns da juventude, outros do velho
em que me tornarei do dia ao fim.

Mas todos têm calor, um bem, assim,
que distribuo, qual ao Sol parelho,
cinza da mente, o sangue mais vermelho
contra o verde e o azul que guardo, enfim.

Se vou-me desfazer, seja aos iguais,
a alma a fumegar na humanidade,
nos fios de alma dos mil e um poemas...

Que os sóis que captei sejam fanais,
que em ti penetrem, com religiosidade,
no fino engaste de preciosas gemas. 


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