sexta-feira, 5 de agosto de 2011

GLOBOS HERMÉTICOS



GLOBOS HERMÉTICOS I

Eu sou assim: a vida me comove
    desde o útero da mãe, enquanto dura;
    não que me iluda que a criança seja pura,
mas que o futuro da raça nos comprove.

Já a morte mais me deixa indiferente:
    é a energia da raça que se envola;
    uma criança que aprende mais me assola
que ver a morte obrando tão frequente.

Talvez seja que a morte a todos vem,
    em sua empolgação definitiva:
é monótono o clamor da sepultura.

Mas a vida traz mil chances e contém
    a glória e a ilusão da mais altiva
canção das mágoas na consciência pura.

GLOBOS HERMÉTICOS II

Um dia, eu te acharei, no tempo mais vazio,
    os meses serão nuvem e amor, estrela,
    quando o Universo reduzir-se a estela,
num obelisco plantado em pleno estio.

Um dia, eu te acharei, envolta em cio,
    fertilidade dourada de organela,
    tranquilidade impura de procela,
vergonha intensa no mais austero brio.

Um dia, eu te acharei, envolta em horas,
    os anos a teus pés, botas e meias
dos séculos... a servir-te refeição.

E cravarei nos astros minhas esporas,
    ao ver desguarnecidas as ameias
e morrerei em ti, numa explosão...

GLOBOS HERMÉTICOS III

Quando as coisas acabam, surgem fatos
    que deveriam ser primeiros a acabar,
    mas não o são e se voltam a mostrar,
na zombaria vã de tais boatos...

Quando as coisas acabam, surgem jatos
    de desalentos, firmes a jorrar,
    que as coisas não se podem encerrar
tão simplesmente quanto dons baratos.

Há tanta coisa que insiste em não morrer!
    que vêm à tona, o esforço da conquista,
marchas e contramarchas da batalha.

No desperdício final do transcorrer,
    tantas etapas perdidas pela pista
dessa vitória... que finalmente, falha...

GLOBOS HERMÉTICOS IV

Um dia, ela virá: a explosão
    que o sistema inteiro, num momento
    consumirá, no mais casual portento,
sem deixar margem de renovação.

Um dia, ela virá: a implosão
    que meu cérebro inteiro e pensamento
    consumirá, levando o sentimento
que ainda pudesse restar no coração.

Para mim, particular será esse dia,
    sem que a menor importância venha a ter
para os demais, cuja vida persistia.

E é até possível que a Terra bem vazia
 se encontre há séculos quando o Sol morrer,
tornando o mundo em caliça fugidia...

GLOBOS HERMÉTICOS V

Se o tempo é apenas a quarta dimensão,
    nele fluímos, igual que pelo espaço.
    e retornar é possível ao pedaço
que ficou para trás, na imensidão...

Também será possível retração
    para a direita ou esquerda nesse abraço:
    ver as coisas que não foram e até um laço
jogar para o futuro, em transição...

E, sem que envelheçamos no caminho,
    mover-nos pelo tempo, igual que dantes
nos movíamos no espaço, em busca vã...

Ou guardarmos tão só um quadradinho...
    Que seja assim: o mapa de meu antes,
emoldurado pelo esquema do amanhã...

GLOBOS HERMÉTICOS VI

Se pelo Tempo mover-se for possível,
    do mesmo modo que se mexe pelo espaço,
    bem depressa se buscaria um pedaço
delimitar e torná-lo intransponível...

Tal como a Terra é cortada, na visível
    ambição pela posse de seu traço,
    o Tempo, na abrangência de um abraço,
seria tolhido, não mais inexaurível...

E por quais leis seria permitido
    trechos de tempo comprar e então vender,
qual latifúndio de grandes proprietários...?

E que tempo restaria ao excluído
    para o mais simples ato de viver,
se o tivesse de alugar aos milionários...?

GLOBOS HERMÉTICOS VII

Depois de explorada a terra toda,
    restam os mares, em sua profundeza
    e os céus, em sua distância de nobreza,
que atraem os homens em fantasia e moda.

É assim que se consuma a antiga boda
    entre a terra e o mar ou a beleza
    que mar e céu compartilham, com certeza,
num casamento a três, eterna roda.

E tão profundo é o mar, em seu ocaso,
    quão distante o firmamento, no seu véu,
que intriga o homem desde a mocidade,

sem notar que o mar é bem mais raso
    que qualquer alma humana, enquanto o céu
mais perto se acha que a felicidade...

GLOBOS HERMÉTICOS VIII

Deus se encontra em reunião com as potestades,
    dominações e tronos.  Qualquer destino assim
    da prece ao paraíso, um serafim
ou um arcanjo mesmo, sem maldades,

irá fazer triagem.  Será por tais vontades
    que o acesso ao Criador talvez, por fim,
    será retransmitido.  Quem sabe, um querubim
ou um anjo te engavete as veleidades...

Porque afinal, esses múltiplos pedidos,
    desconhecida a causa ou a consequência,
talvez produzam estranhos resultados...

Sabe-se lá, se ao sermos atendidos,
    estaremos a ganhar benemerência
ou um mal maior que nos deixe atribulados...?

GLOBOS HERMÉTICOS IX

A música é essencial para minha vida:
    passo o dia a escutá-la, bem variada,
    do folclore ao clássico, marcada
por dodecafonia ou por antiga

escala pentatônica; e dou também guarida
    ao jazz e ao soul e ao rock nessa estada:
    que Bob Marley eu ouça, intercalada
sua música e a de Haydn, mais amiga.

O que não posso é ficar sem escutá-la.
    Se isso me acontece, já enfraqueço:
é minha razão de desvelo e de energia.

Não sei dos outros, a cada um sua escala
    ou seu registro, não sou eu que meço:
mas para mim é a fonte da alegria.

GLOBOS HERMÉTICOS X

Ao viajarmos, parece-nos que os dias
    aguardam pela frente, enquanto as horas
    transitórias, que as rodas das demoras
devoram, se apresentam mais vazias.

Melhor seria que somente as fugidias
    milhas de espaço assim saíssem fora
    de nossas vidas, uma a uma, embora
o tempo estagnasse em miasmarias...

Enquanto o dia nos aguarda pela frente,
    cheio de eventos, bons ou maus agouros,
inesperados, tormentos e benesses,

vemos que o tempo viajado é indiferente:
    se escoa apenas, honras e desdouros
tão inúteis quanto lágrimas e preces...

GLOBOS HERMÉTICOS XI

Eu vi a chuva torrenciando a noite,
    até que eu mesmo despertei a aurora;
    com que frequência assisto, nesta hora,
ao exílio da Lua, em frio açoite...

Vejo a noite arrombada e sem acoite,
    fugindo para o véu do meu outrora;
    o som se impõe feroz no meu agora
e refugio-me no leito, em meu afoite...

É nessas poucas horas, fim da treva,
    começo da alvorada, que os pardais
pipilam, hipnóticos, meu sono...

Mas é o arrulho das pombas que me leva
    a dormir mais um tempo, sem jamais
conformar-me em perder da vida o trono.

GLOBOS HERMÉTICOS XII

Um dia, me disseste que esperaste
    por mim em vão, embora fosse errado
    o ponto de tua espera; e contemplado
eu tivesse o lugar em que não chegaste.

Aborrecida, depois, tu me falaste
    que nunca mais igual desconsolado
    momento passarias, em desolado
aguardar solitário a quem buscaste...

Que não farias nunca mais.  Homem algum
    poderia justificar a humilhação
de ser olhada por tantos, de passagem,

sem querer ver os olhos de nenhum,
    vendo esvair-se assim toda a coragem,
até esvaziar-se o próprio coração...

GLOBOS HERMÉTICOS XIII

No mundo existe gente bem maléfica:
    busca lucrar a troco de ciúmes,
    sente prazer à vista de azedumes,
na mais estranha e invertida estética;

gente que segue a mais incerta ética:
    que se dedica a apagar todos os lumes
    e espalha a seu redor, como cardumes,
boatos mil de inspiração morfética,

nas mil insinuações em que se enseja
    a falsa reticência, com que engodem
à depressão, em espasmos de incerteza,

na ausência de outro bem, comem inveja
    e buscam destruir o que não podem
compartilhar, em espectral torpeza...

GLOBOS HERMÉTICOS XIV

Além da clara treva de tua vida
    se encontra a luz escura do destino:
    desfiladeiro de angústia, amargo e fino,
que hás de cruzar, em falsa despedida.

Houve um nenê, do ventre em sã guarida,
    que perguntou ao gêmeo, em desatino,
    "Há vida além do parto?"   Pequenino
é o morno abrigo em que se acha contida

a vivência conjunta deles dois...
    Quando crescerem, não caberão jamais.
E assim a mente ao mundo se agiganta.

Quando crescer, não caberá depois
    no próprio cérebro.   Será grande demais
e a novo mundo é então que se transplanta.

GLOBOS HERMÉTICOS XV

Sempre cri na vida eterna.   Mas não sei
    se realmente existe.   Se o soubesse,
    deixaria de crer na longa prece:
no que já sei que existe, não crerei...

Eu sei que existe o Sol e que o verei
    a cada dia que o clima não nublasse,
    quando o fulgor a névoa assim filtrasse.
E que outra noite me venha, esperarei.

Mas eu não creio no Sol.  Não tenho fé
    que o astro exista, porque sei que está
pairando sobre mim e que seu brilho

sempre alumia do meu passo o pé.
    porém não sei se a vida eterna existírá,
por isso eu creio seguir por esse trilho.



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