segunda-feira, 22 de agosto de 2011

GATOS HESITANTES


Blue Butterfly & Persian Cat
Pintura de Lynn Bonnette, Arkansas, USA

gatos hesitantes I

há um delicioso prazer no assassinato
para quem se acostuma.  essa emoção
conduz à verdadeira exultação
e a adrenalina explode sem recato,

ao ver o sangue daquele a quem eu mato
brotar vermelho, em jorro de paixão,
o corpo inteiro se inflama em excitação,
como se encontram poucas.  sou um gato,

tenho prazer de aos outros torturar
ou de ver o momento em que da vida
o sopro se afastou sem mais retorno,

na sensação de que neste meu brincar
transformo o mundo e levo de vencida
o universo inteiro em sangue morno...

gatos hesitantes II

ou será que é o contrário?  que o remorso
de ter tirado a vida nos apaga,
sem que haja o prazer que nos afaga,
porque se interrompeu da vida o corso?

tudo depende do tipo desse esforço,
essa pobre criatura que se esmaga,
essa pocinha de sangue que se alaga,
esse cadáver reclinado no seu dorso,

que não se move mais, perdeu a graça,
restam somente a gula e a ambição,
tranquilamente devoro o derrotado.

mas esse é só o fim e o gozo embaça:
o que de fato traz fascinação
é o inútil espernear do assassinado... 

gatos hesitantes III

abro a janela do quarto para os gatos,
conforme me pediram, aos miados...
mas então eles ficam, bem parados,
como sem nada a ver com esses fatos...

lambem o pelo, se roçam nos sapatos,
fingindo não estar interessados...
dão voltas ao redor, até que, alados,
saltam ao peitoril, sem mais recatos...

e se vão para a noite ou para o sol,
ao longo dos telhados, triunfantes,
com olhares veludosos de criança...

talvez querendo lamber o arrebol,
esses formosos gatos hesitantes,
pretendendo me honrar com sua confiança.

gatos hesitantes IV

sapphira me apresenta seu miado
como se fosse ordem senhoril...
parece até ofendida, se a servil
obediência requerida do criado

eu não lhe mostre, mas antes meu enfado.
se lhe abro a porta, é por razão sutil...
se a prendo dentro em casa, em gesto vil,
talvez um canto acabe defecado...

são bem treinados, estes dois gatinhos,
sempre pedem acesso à sua bandeja,
onde a areia os espera, acolhedora...

mas não me iludo com quaisquer carinhos:
apenas os atendo... que não seja
responsável por jogar seu cocô fora!...

gatos hesitantes V

ela se move por entre um mar de flores,
cercada de seus gatos, que não temem
a explosão da água com que gemem
as folhas, em gangorras e estertores.

ela protege as plantas dos calores,
escudadas por essa chuva e sêmen,
por mais que sóis do estio aqui se extremem,
o jardim enverdece e seus cantores,

na maioria pardais, mas bem-te-vis,
almas-de-gato, puros beija-flores,
quero-queros e pombas e corujas,

os grilos e cigarras que assistis,
toca-violas, joaninhas dos amores,
sendo lavados dessas folhas sujas...

gatos hesitantes VI

não amo gatos.   por qualquer motivo
eles me buscam... ou, talvez, me amem;
os miados, quiçá, com que me chamem
poderão ser somente o tom altivo

dos amos desta casa, um lenitivo
para qualquer desejo com que clamem...
mentalmente, creio até que me difamem
se não os atendo logo, porque vivo

para mim mesmo.  não sou servo de gatos:
deixo que esperem até que me disponha;
mas não os trato mal, de modo algum.

abro-lhes portas, alcanço-lhes os pratos,
nunca perturbo esse animal que sonha
com passarinhos para o seu jejum!...

gatos hesitantes VII

com a gata enrolada no pescoço,
adentrou o salão, airosa e bela:
navio de armada ao arrostar procela,
carro blindado, rainha do alvoroço.

quantas a viam, nesse corpo moço,
com olhar "mui antíguo" dentro dela,
a mente a um tempo complexa e singela,
mordiam lábios de sabor insosso...

na boá se enroscava, viva e quente,
da gata bem treinada, que sabia
o quanto não se faz na multidão.

e assim trazia, de seu corpo rente,
esse olhar, mudo ardor de nostalgia,
menos irônico que os olhos dela são!...

gatos hesitantes VIII   

não acredito que gatos nos contemplem
com mais que indiferença ou altivez;
as mulheres já domaram, certa vez:
são longas as histórias que isto exemplem.

pode haver muitos que desmentir me tentem,
com referência a amizade que se fez
entre velhas senhoras sem bebês,
e o grande amor que por gatinhos sentem.

mas esse sentimento é unilateral,
aceito em fidalgal condescendência
pelo espírito aristocrático e divino,

que considera muito natural
que o alimentem e tratem com paciência,
qual se fosse seu direito de felino!...

gatos hesitantes IX

...............como receita de felicidade
não me serve a ausência de teus beijos;
não desisti do desejo dos desejos,
por uma vida de total opacidade.

não me propus a desistência dos ensejos,
nem abrir mão de toda a liberdade,
até alcançar a plena unicidade,
em que não há mais sonhos nem almejos.

assim eu fico, sem crer que qualquer deus
vá lançar sobre mim falsos arpejos,
que a pouco e pouco me levarão ao nada,

em ciúme a reduzir prazeres meus............:
permaneço em minha nuvem, sem ter pejos,
tranquilo como um gato de almofada.

gatos hesitantes X

eu abro a porta e os dois gatos penetram,
jade, com a displicência de ser dona;
arthur, fingindo não querer, se adona;
cheios de majestade, os dois se aprestam

a tomar conta da casa e defenestram
os maus espíritos que o pesadelo toma,
fazendo nascer sonhos na redoma:
são dois guardiões que para tal se prestam.

eles nos domam, esses tais felinos,
de longos pelos, barbas senhoris,
aristocratas cheios de vaidades...

não temos ratos, por isso tais divinos
caçadores de mágoas, sem fuzis,
se satisfazem em perseguir maldades...

gatos hesitantes XI

tenho em casa sapphira, uma gatinha
de puro sangue persa, mas selvagem,
que recusava colo com coragem
e repudiava os contatos da vizinha...

porém, ultimamente, essa bichinha,
talvez carente, talvez por traquinagem,
vem a roçar-me as pernas... numa imagem
de submissão, deita e mostra a barriguinha.

mas eu recordo das vezes em que a via
passando a língua no pelo e no rabinho
e só lhe atendo o pedido em gestos vãos,

num verdadeiro amor de assepsia,
porque depois que lhe faço algum carinho
a gata se sacode e eu lavo as mãos!...

gatos hesitantes XII

quanto a arthur pendragon, filho dela,
um gato grande e gordo, foi castrado
por maldade de um vizinho mais frustrado,
com ferro em brasa, esse matusquela!...

depois que o gato lhe pulou pela janela,
marcou-lhe o lombo qual se marca gado,
pelo único prazer de tal pecado
que a alma espanta e o coração congela.

tivemos de o levar ao veterinário,
que precisou completar a operação
nesse animal, que reprodutor seria...

está vivo e saudável, no ordinário
viver de um felino de boa educação...
mas nunca será pai de qualquer cria!...


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