quinta-feira, 25 de agosto de 2011

iKLAWA




iKLAWA I  ("lança" em zulu)
(cumprimentos a Donald Mead)

minha lança corta a nuvem.  Vem a chuva.
minha lança corta o sol.  E vem o raio.
minha lança corta a égua.   Vem o baio.
minha lança corta o fogo.  Vem a lava.

minha lava corta o verso.  Vem a lança.
minha lança corta a lava.  Vem a chama.
minha chama corta a terra.   Vem a lama.
minha lama corta o tempo.   E não se cansa.

minha lança corta os  dias.  Lança aguda.
minha lança corta a carne.  Vem amor.
minha lança corta o sonho.  Vem verdade.

minha lança corta o tempo.  A mente escuda.
minha lança corta a mente.  Vem pavor
de que minha lança corte minha saudade.

iKLAWA II

a história inteira é iludibriação.
se o termo não existe, então o crio:
ser aedo exige ter mais brio
que o da gramática classificação.

exige saber mais que a inspiração,
por mais que esta estruja como um rio:
significa tomar da vida o fio,
qual no tear de hábil tecelão

e com ele forjar a nova lança,
que afastará o velho e o desgastado:
sei que antes ninguém fez o que hoje fiz.

lançada ao espaço a luz da nova usança,
sem me perder em pendor estereotipado,
eu só escrevo aquilo que bem quis!

iKLAWA III

na minha lança de luz existe estigma:
mácula pura de estridente afeto;
no fígado dos deuses eu a espeto,
inverso prometeu, abutre e enigma.

na minha lança de luz, força benigna
se insurge contra a sorte, em dom secreto:
busco do aborto ressurgir o feto,
nesta defesa que à raça me consigna.

eu quero a humanidade, em sua maligna
dominação do mundo, minha etnia,
qualquer que seja a cor que traz minha pele,

usando uma só voz, na antiga sigma,
liberta de babel, na luz tardia,
que seu destino finalmente sele!...

iKLAWA IV

nossa lança tem destino manifesto:
deve empreender a conquista do Universo,
em fálicos foguetes tem converso
negra fumaça em deslumbrante gesto.

abracadabra refulgindo em Presto!
que seja ao cosmos o DNA disperso,
em galática conquista, cujo verso
pretendo ainda compor, em canto lesto,

no pleno encanto de minha fantasia,
forjada desde a infância, em nostalgia
das astronaves em que não pisarei.

ao deflorar do espaço eu cantarei,
nos detalhes sangrentos da agonia
com que esse império não contemplarei.

iKLAWA V

há uma tenda erguida no Ocidente,
em que o Sol, diariamente, se recolhe,
fugindo à escuridão, que não o molhe
com suas ondas de negror evanescente.

suas lanças ao redor, circunjacente,
envia o Sol e a Noite não o tolhe:
é o descanso de umas horas que ela escolhe,
até mostrar-se de um lado diferente.

é de um banho de luz que ela precisa;
a Noite trata seus cavalos como auriga:
o carro é limpo em seu fulgor lustroso.

assim, quando no Oriente a chama pisa,
será lança de luz que a aurora abriga
e banha a Noite de luar esplendoroso.

iKLAWA VI

há uma tenda erguida no Poente,
na qual, ao fim da vida, me recolho
para fugir ao mundo:  assim escolho
e minhas lanças enristo, consequente.

Todo o negror do mundo, incontinenti,
não pode me manchar e não me molho,
por mais espesso seja o seu antolho,
minha vida tudo enfrenta, permanente.

mas como o Sol, preciso de um descanso,
enquanto as fendas são calafetadas,
minhas vestes são cerzidas e os reparos

nas tábuas da existência tal remanso
permitem completar, para as jornadas
até os lares dos que me foram caros.

iKLAWA VII

como retorna o Sol, eu voltarei,
meu manto costurado e a rota lança
reforjada em ferraria de abastança,
haste de freixo que eu mesmo cortarei.

ao mundo inteiro, assim, espantarei,
na irradiação que meu poema alcança,
não no fervor do Sol: é a Lua mansa
que a me emprestar sua prata eu sentirei.

então, após banhado pelo escuro,
meu coração tal prata tangerá
e minhas veias cantarão em coro,

meu cérebro regando o verso puro,
brilhante, em seu frescor de tangará,
na luz da morte transmutada em ouro.

iKLAWA VIII

sobre o deserto projetei meu dardo,
dupla azagaia sobre o teu olhar:
em duplo escudo, para te evitar,
haste feita de espinhos, como um cardo,

a reluzir perfume, chispa em nardo,
cabo de freixo para mais durar:
cipós duráveis para conservar,
leve essa lança - como pesa o fardo,

sem  que busque em teu peito se encravar,
porque esse dardo quer fisgar tua alma
e te manter bem firme em meu anzol,

arpão de som, ouvidos a emprenhar,
nesse zurzir de vento que te acalma,
zarabatana projetada ao Sol!...

iKLAWA IX

perdido encontro-me no hiperespaço:
na rede vi emaranhar-se a lança:
até o ponto em que a memória alcança,
puxei em vão com a força de meu braço.

então lancei-me, em peculiar abraço,
puxando com vigor e com pujança:
não se abalou a rede, nessa mansa
resistência do frágil contra o laço.

então, em nova lança transformei-me:
e a teia cortei com emoção,
afastando de mim os paradigmas.

recuperei minha lança, mas tornei-me
nova estrutura de elétrica indução,
no cibernético esplendor de meus estigmas. 

iKLAWA X

nessa lança de mim, me jorro ao espaço,
espuma mercurial, tornado impune,
neste raio lançado ao plenilune,
nesta nuvem que escorre de um abraço.

eu me ergo nos céus, deixo meu traço
em todo o multicor vulcão que brune
tanto meu rosto como o mundo e pune
qualquer indagação do globo lasso.

o clima modifico, o tempo eu faço,
escolho com cuidado a alternativa,
que é meu futuro que vou determinar,

até ver refletido um olhar baço
no espelho dos oceanos, luz esquiva,
a que minha bruma se há de misturar.

iKLAWA XI

na minha lança de chuva, mil colheitas
derramo pelas terras e nações:
lança vermelha de elocubrações,
lança falida de promessas feitas.

na minha lança, resumo antigas peitas,
juras de amor de falsas intenções:
planos desfeitos sem pedir perdões,
ânsias de amores por piedade aceitas.

jogo minha lança pelos canaviais,
açúcar queimo contra a obesidade,
mas o álcool eu consumo com malícia.

meus motores parados no jamais,
alternativa para a humanidade,
em seu pendor final de impudicícia...

iKLAWA XII

secam-se os anos e vejo ressequida
a lança entre meus dedos, triste sorte:
tanta vida gerou e tanta morte
angariou para si, na despedida.

talvez alcance outra melhor guarida
essa azagaia e alguém melhor escorte,
que tenha chances até de maior porte:
minha lança leva o tempo de vencida.

outro dardo virá, como um foguete,
lançado ao cosmos, em fálico esplendor,
ejaculando à galáxia minha gente,

na geração que a geração repete.
não viverei de um astronauta o ardor,
porém minhas cinzas hão de seguir em frente.

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