quinta-feira, 11 de dezembro de 2014







O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS
William Lagos, 7 nov 14
(Adaptado de “João Esperto”, folclore português recolhido na Paraíba por Sílvio Romero e recontado por Monteiro Lobato em prosa, versão poética de William Lagos.  O trecho em cordel está no original.)

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS I

Certa vez, um casal de camponeses
criava um filho, batizado João;
sua mãe morrera e vivia com a madrasta,
lábios de coelho, dentes de torqueses,
que o odiava pela única razão
que para os três a comida nunca basta.

Quando cresceu, João ia comer fora
frutas do mato, alguma pescaria,
a bodoque caçando umas perdizes,
que trazia para casa, sem demora;
era a madrasta dos três que mais comia,
língua ferina, tornando a todos infelizes.

O pai era bem velho e adoentado
e sua terrinha era pequena e pedregosa,
razão por que produzia nela pouco;
da pobreza, João era tido por culpado;
mesmo trazendo caça, a invejosa
o maltratava, igual que faz um louco.

Desde pequeno, ele criara cachorrinha,
que pelo nome de Pitanga respondia,
única amiga que tinha do seu lado;
dormia na rua, toda encolhidinha
e a madrasta afirmava que algum dia
a mataria para fazer um ensopado!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS II

Um dia em que fazia uma caçada,
chegou João bastante longe de sua casa
e encontrou no caminho um viajante;
sentaram os dois no barranco junto à estrada,
batendo papo, numa conversa rasa,
até que o outro contou coisa interessante.

“Do outro lado daquelas montanhas
se encontra o País das Três Princesas,
porque o rei seu pai só teve filhas;
a mais velha é mulher cheia de manhas
e causa ao pobre pai grandes tristezas:
para casar-se o fez cair em armadilhas...”

“A coisa é assim.  Fez com que prometesse
que só daria a sua mão em casamento
a quem algum enigma apresentasse
a que a princesa nunca resolvesse;
Tarsila possui excelente julgamento
e nada surgiu que não adivinhasse...”

“O problema é que decretou pena de morte
para quem a sua mão lhe pretendesse,
sem insolúvel lhe apresentar adivinhação;
muitos príncipes já enfrentaram essa sorte
sem que a princesa perdão lhes concedesse:
vão ao patíbulo sem qualquer apelação!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS III

“Tarsila já tem vinte e cinco anos;
vinte e um e dezenove as suas irmãs,
que tampouco conseguem um marido,
porque a lei do reino traz insanos
dispositivos e por mil razões malsãs,
sem a mais velha casar, lhes é proibido!”

“Todas as duas têm pretendentes certos,
que há anos a corte já lhes fazem;
todos dois nobres de excelente qualidade;
mas os casórios continuam incertos;
ao rei seu pai herdeiros nunca trazem
e todos vivem na maior infelicidade!...”

“Naturalmente, o marido da mais velha
será o herdeiro do trono, temporário,
até que um filho atinja a maioridade;
só por isso, a ambição ainda se espelha
e muitos nobres fizeram o itinerário,
para arriscar-se ao teste, por vaidade!”

“Mas já tantos ali se encontram enforcados
que o rei determinou que seus burgueses
também ao teste se poderiam apresentar;
mas depois de outros tantos supliciados,
autorizou que até mesmo camponeses
a mão da filha tentassem alcançar...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS IV

“Mas camponeses são gente mais prudente
ou, quem sabe, sejam menos ambiciosos
e só uns dois ou três se apresentaram...
Sempre a princesa foi mais inteligente
e já não chegam sequer os mais vaidosos
depois que a esses primeiros penduraram!...”

De imediato, João quis fazer a tentativa:
tinha certeza de que venceria a princesa
e que com ela, finalmente, casaria!...
Foi junto ao pai fazer a tratativa:
“Eu quero correr mundo e, com certeza,
tendo sua bênção, boa sorte alcançaria!...

“Claro, meu filho, que te abençoarei
e Deus, por mim, te abençoará também!...
Tua madrasta também se alegrará,
que o alimento que na roça plantarei
só para os dois é mais do que convém!
A tua partida prazer lhe causará...”

Pobre é o cego que tem bom coração!
De sua mulher nem percebia a maldade
e foi-lhe dar a notícia, alegremente...
Mas a madrasta, embora sempre a rezingar,
sabia muito bem que, na verdade,
João enchia as suas panelas bem frequente!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS V

E assim, longe de sentir uma alegria,
ela ficou a mastigar maior rancor!
Não teria carne para encher sua pança!
E lastimar a sua partida não fingia,
mas com o enteado firme em seu pendor,
a mulher arquitetou grande vingança!...

“Vou te fazer um pão para a viagem!”
disse ela, escondendo sua maldade
e misturou veneno na farinha!...
João despediu-se, cheio de coragem
e partiu logo, em busca da cidade,
só acompanhado pela cadelinha!...

Levou uma muda de roupa na trouxinha
e saiu a caminhar, alegremente;
em um riacho fez boa pescaria,
que dividiu com sua cachorrinha:
“Cara Pitanga, nos livramos, finalmente,
dessa madrasta, que só mal nos queria!...”

Levou a tarde subindo uma montanha
e lá no alto toda a noite ele acampou,
comendo as sobras de seu peixe assado.
No outro dia, de novo a fome se arreganha,
caça ou frutas ele acharia ali pensou;
ao meio-dia, porém nada havia encontrado!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VI

Sentou-se à sombra de uma pitangueira;
não achou frutas, mas pegou seu pão;
um bom pedaço deu para a amiguinha,
que abocanhou a comida, bem ligeira;
ele comeu menos e com grande precaução,
vendo ser árida a região que se avizinha.

De repente, Pitanga teve convulsão,
pôs-se a babar e depois estremeceu,
sacudiu as patinhas e apagou!...
Salvou-me a vida! – pensou o pobre João,
que vomitou depressa o que comeu
e com os dedos uma cova lhe escavou...

Louco de pena, enterrou a cachorrinha;
Disse: “Pitanga, este lugar é o certo:
pois vais dormir sob uma pitangueira!”
Mas a seguir, o veneno que ele tinha
ingerido, vendo a morte bem de perto,
causou-lhe dores, tremuras e canseira!...

João foi deitar-se um pouco mais adiante
e passou horas dormindo, até sarar.
Quando acordou, viu que haviam desenterrado
Três urubus a cachorrinha e num instante,
espernearam e estremeceram a piar,
cada um dos três morrendo envenenado!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VII

João reenterrou de Pitanga o que restava
e com um galho lhe aprofundou o buraco;
vendo os urubus, pensou vender-lhe as penas
e logo a seguir, pela senda ele marchava,
os urubus às costas, parecendo negro saco,
sem ver comida ou um riachinho apenas!...

Então, em uma curva do caminho,
viu sete homens, encolhidos e esfomeados:
“Que comida trazes nesse saco preto?”
“São só três urubus, meu bom vizinho!”
“Então os passa cá para os meus lados,
sempre é uma carne para jantar completo!”

E como os sete traziam espingardas
e logo para ele as apontavam,
João nem tentou ao assalto resistir!
Os sete tinham de fome as caras pardas
e os urubus num instante devoravam,
antes que aviso lhes pudesse transmitir!

E logo os sete pelo chão rolavam,
espumando pela boca e estremecendo...
Como era forte o veneno da madrasta!
Os sete ladrões gemiam e uivavam,
mas bem depressa, um a um, foram morrendo!
Meu pai, tua bênção o mal de mim afasta!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VIII

João escolheu das roupas as melhores
e igualmente a melhor das espingardas
e toda a munição que ele encontrou;
num buraco enterrou os salteadores
e os recobriu, a pedir dos anjos guardas;
com a própria arma uma pá improvisou!

Mas o trabalho o deixou muito cansado...
Mesmo assim, não quis ficar nesse lugar
e continuou ao longo do caminho,
até achar um matagal cerrado...
Uma perdiz se ergueu para voar:
João atirou, mas só passou pertinho!...

Com bodoque é que estava acostumado
e assim não teve a mira suficiente,
mas nos espinhos ouviu um piado e espiou:
uma pomba-rola ele havia acertado!
Melhor que nada para matar fome da gente!
Agradecido, sua rolinha depenou...

Mas não havia lenha e nem espeto!
E já pensava até em comer crua,
quando enxergou uma cruz abandonada!
Com um tiro, quebrou-a e fez graveto...
Pediu desculpas ao morto e, à luz da lua,
uma fogueira acendeu, bem preparada!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS IX

Mas sentiu sede, depois de bem comer
e não havia nem poça ali por perto!...
Viu então um burro pastando na macega;
montou depressa e o animal pôs-se a correr
por toda a extensão do areal deserto:
lambeu o suor igual vinho de adega!... (*)
(*) Ai, que nojo! J

Então o burro, exausto, tropeçou,
caindo ali, na beira do caminho;
João pulou no chão, sem se pisar
e viu o objeto em que o bicho tropicou:
uma caveira que fazia um barulhinho!
Ficou com medo, mas foi ao morto consultar...

Mas não falava!  Era apenas um vespeiro!
Teve mais medo que as vespas o picassem!
Ergueu o burro e saiu em disparada!
Porém o animal despencou depois ligeiro
e como as patas para a frente se esfregassem,
uma panela ele viu ser desenterrada!...

Estava cheia de tostões de cobre!
João outra vez à bênção agradeceu
e colocou as moedas na trouxinha...
E tão logo outra curva o passo dobre,
viu uma venda, em que bebeu e comeu
e lhe indagaram a que destino vinha...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS X

“Estou em busca do País das Três Princesas,
para propor-lhes minha adivinhação...”
Mas logo todos tentaram dissuadi-lo:
“Essas forcas engordaram de tristezas
e ninguém mais vem à tal competição,
que a princesa tudo adivinha sem abalo!...”

“Por favor, nem experimente, meu rapaz!”
“Mas a princesa, ao menos, é bonita?”
“Ah, sem dúvida, tão esperta quanto bela!
Mas sua esperteza a todos o mal traz;
suas duas irmãs empacaram em sua data:
passa-se o tempo e cada qual fica donzela!”

Porém João não permitiu-se dissuadir...
Ao longe já avistava a tal cidade
e no caminho, achou princesa muito bela:
“É com a senhora que preciso discutir?”
“Não, sou Drusila, forçada por maldade
de minha irmã Tarsila, a ser donzela!...”

“Também você irá morrer, viajante!
E é um rapaz tão bem apessoado!
Se já não fosse noiva, até o queria...
Mas observe as forcas, logo adiante:
de língua de fora quem pensou ter triunfado!
Bem que você a derrotasse eu gostaria!”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XI

Chegou ao patíbulo, muito mal cheiroso:
Vinte enforcados ali se balançavam
e João sentiu uma pontinha de receio...
Veio o carrasco, com ar bem tenebroso:
“Pensei que hoje minhas cordas descansavam!
Mas outro tolo agora vejo, assim o creio!...”

João ao carrasco até cumprimentou,
porém seguiu a caminho da cidade,
com certo nojo até de olhar pra trás!
De outra princesa então se aproximou,
muito bela e ainda bem na flor da idade:
“É com a senhora que a adivinhação se faz?”

“Não, eu sou Djamila, a mais moça das três,
mas antes de casar, vou ficar velha!...
Meu pretendente talvez canse de esperar...
Porém vejo que da forca é outro freguês;
nesses lá atrás não tem medo e não se espelha?
Daqui a pouco também estará a balançar!...”

“Meu interesse é que Tarsila, finalmente,
se case, para que eu possa me casar...
Mas você é jovem e bem apessoado...
Se eu já não fosse noiva, francamente,
de tê-lo por marido iria gostar...
Assim lhe digo: você vai ser derrotado!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XII

“Não, minha princesa, eu serei o vencedor:
trago comigo a bênção de meu pai,
que no caminho até aqui me protegeu...”
“Então vá, pobre diabo!   Meu amor
de qualquer modo hoje consigo vai
e vou rezar por bom destino seu...”

Chegou João às portas do castelo
e interpelado foi pelo porteiro;
mas depois de explicar o que queria,
o funcionário lhe fez mais um apelo:
“Bom rapaz, vá embora bem ligeiro,
por que razão a morrer se arriscaria?”

Contudo, João insistiu: “Tenho certeza,
sou abençoado e vou vencer a prova!”
Então o porteiro o levou perante o rei,
a cujo lado sentava-se a princesa.
“Meu filho, veio em busca de sua cova?”
“Não, Majestade, que vou vencer eu sei!”

Até Tarsila esforçou-se em dissuadi-lo:
“Meu bom rapaz, você é bem apessoado
e até gostaria de tê-lo por marido,
mas não desejo para a forca conduzi-lo!”
“Princesa, por ambição eu fui chamado,
e por vaidade cheguei aqui induzido...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XIII

“Mas agora que eu a vi, tenho certeza
de que jamais quererei outra mulher!
Minha vida vale menos que seu beijo!”
Ruborizou-se então a linda princesa:
“Belas palavras, mas não sabe que qualquer
enigma eu resolvo neste ensejo...?”

“Não importa, o meu lhe vou apresentar,
tão somente pelo bem de sua presença;
depois de ouvi-la, então eu morrerei!”
“Pois bem, se quer assim, pode arriscar,”
disse a princesa, sua voz um pouco tensa,
“Ao vê-lo morto, não me alegrarei!...”

“Mas eu me alegro por tê-la visto em vida!
E assim um enigma lhe irei apresentar...
Existe, acaso, alguma condição...?”
“Não, pois toda a pergunta de saída
eu sempre consegui solucionar
e já lastimo sua morte de antemão!...”

Então o jovem encheu de ar o peito
e com voz firme, começou a recitar,
a corte inteira muito surpreendida...
E repetiu três vezes, sem defeito,
a princesa sem conseguir adivinhar
esse cordel que lerá logo em seguida:
        “Saí de casa com massa e pitanga;
        a massa matou pitanga
mas pitanga matou três;
esses três mataram sete
e das sete, escolhi a melhor;
atirei no que vi e matei o que não vi;
com madeira santa assei e comi;
bebi água sem ser do céu;
vi o morto carregando os vivos
e o burro sabendo
o que os sábios não sabem;
resolva agora, princesa,
ou me dê cá sua mãozinha!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XIV

Pediu Tarsila um dia mais para pensar,
mas suas irmãs se puseram a protestar:
“Assim não vale!  Responda logo, Tarsila!”
Porém João apressou-se a concordar:
“Princesa, eu deixo, se a puder contemplar
Mais umas horas...” “É errado”, diz Drusila!

“Ele ganhou!” – Djamila reclamou,
porém João concedeu um dia e uma hora
e repetiu, para que tomassem nota;
hospedá-lo com honra, o rei mandou;
deram-lhe banho e roupas novas, sem demora,
embora ainda temessem sua derrota!

Nessa noite, no palácio pernoitou
e decorrido, então, o dia e a hora,
foi de novo ao salão encaminhado,
quando Tarsila sua derrota confessou...
Três casamentos celebraram, sem demora,
depois de tanto tempo ser adiado...

A lua-de-mel durou uma semana,
João e Tarsila se amaram com carinho
e então ele se ofereceu para explicar,
mas sua esposa, num sorriso, lhe proclama:
“Foi sua viagem que descreveu, bobinho!
Eu que fingi não conseguir adivinhar!...”

EPÍLOGO

O pobre João ficou um tanto atrapalhado,
mas ela disse: “Não sei os pormenores,
mas se eu dissesse que era a sua viagem
que eu acertara, você teria concordado
e lá estaria, no patíbulo dos horrores,
se não falei, foi por falta de coragem!...

Eu me agradei de você para marido;
as minhas irmãs não podiam se casar
e francamente, eu já passei da idade!...
Nenhum dos outros a mim tinha querido,
mas só o trono é que pretendia herdar.
Porém nós dois... nos amamos de verdade!



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