PASSAGEIROS (DRIVERSBY)
Duodecaneto de William Lagos, 28
jul 2010
PASSAGEIROS I
Eu vejo o mundo em
múltipla vidraça,
pelas vidraças me
contempla o mundo;
contemplo o mundo com
olhar profundo,
o mundo passa em
majestade e graça...
Ante meus olhos, todo
mundo passa,
em seu trânsito tão
feroz quanto iracundo;
com minha imagem, meu
olhar confundo,
o reflexo do rosto ao
rosto enlaça...
Me avista o mundo no
ônibus da vida,
a vida passa e corre
onde quiser,
não tem os trilhos
fixos do bonde...
Percorre o ônibus as
ruas, em sua lida;
sentado à espera do
que der e vier,
eu vejo o mundo correr
Deus sabe aonde...
PASSAGEIROS II
Há outro mundo por que
a memória passa:
era um mundo cujos
trilhos estalavam,
a cada vez que as
rodas alcançavam
um intervalo que à
dilatação se espaça.
Aquele espaço breve,
que ultrapassa
essa trilha de
dormentes, que formavam
o leito ininterrupto e
apoiavam
a dupla linha de uma
só carcaça.
Amei os trens, em
minha juventude:
o cheiro da fumaça me
atraía,
das pedras de carvão,
negro diamante...
Carbono igual que a
nossa vida ilude,
enquanto as curvas o
comboio percorria
e degolava a terra, em
manso instante.
PASSAGEIROS III
Eu cheiro o mundo
enquanto o mundo passa:
cada parada tem o seu
sabor;
a cada ponto em que
freia com ardor,
esse ônibus novo mundo
me repassa.
Abrem-se as portas
para tal devassa
e os novos passageiros
tem valor
de um arco-íris de
cheiros, como cor,
que minhas narinas
plenamente enlaça.
Mas se abro
simplesmente minha janela,
os cheiros também
querem viajar
e não esperam o
momento das paradas,
quando a metrópole
inteira se revela,
em lancherias, no
suor, no trafegar
da multidão de almas
apressadas...
PASSAGEIROS IV
Como é estranho que a
estrada seja igual
enquanto mudei tanto internamente;
parece até ser o tempo
indiferente
a quanto causa em mim,
por ser mortal!
Sei muito bem que a
paisagem natural
também se modifica,
lentamente,
mas em mim a mutação é
mais frequente,
passando o tempo como
um figadal
inimigo de minha vida,
que me leva,
tranquilamente, mas
sempre de vencida,
enquanto as árvores,
as casas, a avenida
parecem sempre iguais,
sem que se atreva
o mesmo tempo a
transformar o seu espaço,
de que a memória
conserva em seu regaço!
PASSAGEIROS V
Por outro lado, quem
conquista o espaço
sou eu mesmo, que o
tempo não mo impede;
para onde quer que
vou, o espaço cede,
enquanto o tempo se
firma em embaraço;
é o tempo que prepara
o meu baraço,
que mais cedo ou mais
tarde o corpo mede
e o estrangula, não
importa o que se pede,
e então nos vamos, sem
deixar um traço.
Pois nesta vida somos
passageiros,
no trem do tempo todos
assentados;
lá fora o espaço corre
para trás;
quer sejam os freios
fortes ou ligeiros,
chega a estação a que
fomos destinados
e o trem da vida de
imediato se desfaz...
PASSAGEIROS VI
O trem do mundo sobre
trilhos corre,
avança firme, suas
rodas paralelas;
às vezes brotam
fagulhas, como estrelas,
às vezes se condensa o
ar e escorre
por entre os vidros
que humano sopro forre
e tão somente se
limparmos as janelas,
usando a mão ou a
manga sobre elas,
podemos ver a paisagem
que não morre...
Assim é a vida, em
paralelas trilhas:
as janelas embaciadas
de cuidados,
uma fagulha, quiçá, de
liberdade,
ao longo da prisão de
tantas milhas
em que permanecemos,
mal sentados,
sonhando apenas em ter
felicidade!
PASSAGEIROS VII
Eu vejo o ônibus que
passa pela rua,
enquanto eu mesmo
caminho, calmamente:
chegado ao ponto, vejo
o entra e sai de gente,
em meu andar sobre a
calçada nua.
E vou furando as
filas, como pua,
para cruzar a quadra
inteira mais à frente;
tomo a dianteira, sem
esforço ingente;
contra as vitrinas o
meu passar flutua...
E então o ônibus
completa a lotação
e avança bem depressa,
suspirando
a mágoa de seus freios
para mim
e me ultrapassa, sem
precipitação,
até que noutro ponto
vai parando
e nos cruzamos por
meia tarde assim...
PASSAGEIROS VIII
Então vejo os
passageiros nas janelas
e sei pretendem chegar
a algum lugar,
que mais depressa que
eu hão de alcançar:
talvez a morte...
Talvez paisagens belas.
Porém me deixo guiar
só por estrelas
ou pelas luzes nos
postes a brilhar;
prefiro em tais
calçadas caminhar:
mulheres passam e
desejo vê-las...
Se estivesse em um
veículo sentado
nada seriam, senão
visões fugazes
que talvez só me
alcançassem na parada...
No mesmo vaivém tão
apressado,
somente agora em
diferentes bases,
que não conduzem
realmente a nada...
PASSAGEIROS IX
Sento tranquilo em um
assento vago,
dou preferência ao
início do trajeto;
não preciso segurar a
alça do teto
e na quietude de tal
lugar me apago;
sentado ante a janela,
não esmago
com indiferença, qual
se fosse inseto
o passageiro, meu
vizinho quieto;
somente ocupo o espaço
que foi pago.
Talvez algum se
comprima contra mim;
se for mulher e bela,
será bom,
quiçá me deixe um
gosto de perfume;
sei bem que descerá;
mas mesmo assim
sou breve proprietário
desse dom
e dela sinto até um
laivo de ciúme...
PASSAGEIROS X
Para onde terá ido a
passageira
que se assentou a meu
lado, sem falar?
Talvez eu nunca mais a
venha achar,
mesmo que cuide a
parada em que, ligeira,
ela desceu. Talvez da vez primeira
eu apenas me contente
em aspirar
o aroma triste que me
quis deixar
em sua visão inicial e
derradeira...
E se eu descesse atrás
dela, na parada,
só para ver se
conseguia descobrir
onde ela mora e
depois, até tentar
transformá-la em minha
doce namorada?
Mas segue o ônibus e
já deixei fugir
essa mulher que para
mim não vai voltar...
PASSAGEIROS XI
Então senti por ela um
passageiro
amor impuro e
totalmente egoísta;
não quis sequer a
busca da conquista
de outra ave a colocar
em meu viveiro...
Eu quis somente o
mistério condoreiro,
essa desculpa em que a
poesia insista;
somente quis imaginar
o que se avista
durante um sonho que
me animou primeiro...
Não quis lhe dar amor,
nem o amor dela:
por um fantasma
ansiei, sem mais razão
que em novos versos o
pudesse descrever;
tão somente em
minhalma pus estrela,
sem lhe dar um só
momento de emoção,
neste soneto que sei
nunca irá ler...
PASSAGEIROS XII
Pensando bem, não fez
igual comigo?
Só de me olhar, em seu
piscar furtivo
pelo canto das
pálpebras... Foi esquivo,
avaliador olhar? E assim guardou consigo
ao peneirar-me pelo
mesmo crivo,
igual egoísmo, amor
nosso inimigo,
perfume às soltas, sem
buscar abrigo,
mas que darei,
enquanto ainda for vivo?
E quantas vezes também
soprei miragem
para os olhos de quem
nem sequer via,
mas que em instante
fugaz me percebeu?
Tua própria vida é
feita dessa aragem!
Mil transeuntes que
nunca mais se iria
reencontrar, em um
sonho que é só teu!...