quinta-feira, 22 de janeiro de 2015





AUTO DE FÉ – Duodecaneto de William Lagos

AUTO DE FÉ I – 01/08/2010

Enquanto a vida nos conserva vivos,
a sensação constante conservamos
da própria eternidade e suportamos
os males deste mundo mais ativos,

na esperança secreta que, incisivos,
se afirmem os recursos que gozamos,
com que sempre, no passado, superamos
as dores e os ataques mais esquivos.

De tal modo, permanece essa ilusão
de que a doença passará e que o prejuízo,
cedo ou mais tarde, será recuperado,

nessa urdefesa de nosso coração,
mesmo em oposto a todo e qualquer siso:
que a própria morte tenhamos superado.

AUTO DE FÉ II

Nunca se sabe o que trará o futuro
e contudo se vive qual tal fosse,
tão garantido como o sol que pôs-se
irá surgir após um breve escuro.

Ninguém espera qualquer evento duro
que à mente a morte dos parentes trouxe,
vindo cortar o destino que supôs-se
ser doce ou amargo neste mundo impuro.

Mesmo que “a morte é para todos” alguém diga,
de certo modo, dela se acha a salvo;
“vem para todos”, se afirma, quando em pé,

mas lhe parece que a viver prossiga,
enquanto a foice gira em torno a outro alvo
e assim nos poupe, em puro ato de fé.

AUTO DE FÉ III

Contudo, antigamente, Torquemada
chamava “auto de fé” o auto de morte,
queimando vivos aos que tinham a pouca sorte
de submeter-se à sua tortura malfadada.

Não só judeus e protestantes, a enfiada
de quem andava com diferente porte,
todo qualquer que a sociedade corte,
enquanto a Inquisição era chamada

de “Santo Ofício”, porém, de qual igreja?
que um deus de amor não era, com certeza,
quem mantinha e autorizava essa loucura.

Não há argumento ou convicção que seja
que se possa coadunar a tal vileza,
vasto exercício de maldade pura...

AUTO DE FÉ IV

Auto de fé é a natureza humana
que muito bem se sabe transitória,
por mais que finja permanente história,
tão diferente dessa que proclama

a razão; quando sincera nos inflama
com a esperança de pena purgatória,
na verdade, pouco mais do que irrisória,
porque o morrião acaba e apaga a chama.

Mas resta o impulso pela sobrevivência:
os outros que se vão, porém que eu fique:
há certo gozo em assistir a funerais...

Conosco ainda terá a morte mais paciência,
é o que se pensa, por mais respeito indique
nossa presença nas exéquias dos demais...

AUTO DE FÉ V

Por isso é que se mata e se condena:
são sacrifícios à deusa portentosa;
e quanto mais for a morte pavorosa,
mais atenção despertará tal pena.

Por isso essa atração em ver a cena
em que ocorreu a execução famosa;
dar a morte a quem teve vida honrosa
deixa nossa mediocridade mais amena.

E assim nos ajuntamos nos velórios,
afirmando ser a última homenagem,
quando de fato é alívio que sentimos;

quem sabe nesses vagos peditórios,
para cuja afirmação falta coragem,
a nossa vida mais longa usufruímos...

AUTO DE FÉ VI

Porém a morte, afinal, sempre é inquietante,
seja doença, acidente ou por velhice,
ainda mais quando, cheia de ledice,
alguma jovem sofre  um golpe impactante.

Nesse momento em que a morte é triunfante,
sejam lágrimas sinceras ou pieguice,
pequena voz dentro de nós nos disse:
“talvez não tarde muito o teu instante”.

Ele se foi e eu fico: mas um dia
outros verão a mim no meu esquife
e hão de pensar de forma semelhante;

da vida a gente, de fato, não se fia
e a morte alheia sempre alegra algum patife
em sua trapaça sobre o tempo delirante.

AUTO DE FÉ VII

Li certa vez que Himmler e os nazistas
autos de fé igualmente pretendiam,
como preciso para o ideal que urgiam
de alcançar sua gama de conquistas.

Pagando aos deuses sacrifício às vistas
de todos que esse ideal também nutriam;
pensavam em deuses famintos, que exigiam
como holocaustos as mais extensas listas.

Não era simplesmente por maldade
que provocavam a morte dos judeus,
mas propósito enxergavam no massacre,

que seus deuses aspiravam o odor acre
dessas fornos de ossos que eram seus
e assim poupavam os da germanicidade.

AUTO DE FÉ VIII

Por cada um que nos campos perecesse,
um processo que bem claro foi chamado
de “holocausto”, a vida de um soldado
seria poupada na batalha em que estivesse.

E cada corpo que a fumaça convertesse
protegeria do bombardeio aliado
essas cidades do povo consagrado,
para que o mundo dominar assim pudesse.

Tudo era fruto de um pensamento mágico:
milhões de vítimas seguiam para a morte
e o próprio Hades assim superlotavam;

porém de tudo isso o final trágico
é que acabaram por ter a mesma sorte
ditos heróis que a outro povo executavam...

AUTO DE FÉ IX

Mas os nazistas tiveram outra visão:
se cremassem os corpos dessa gente,
libertariam as almas, certamente,
Himmler era adepto da reencarnação.

Pois nasceriam em uma nova geração
de milhares de arianos, consequente
dessa doutrina brotada de sua mente
e assim os judeus alcançariam redenção...

Porque esses alemães reencarnariam
para glória maior da humanidade
e ele julgava prestar-lhes um favor;

purificados, todos logo voltariam
nos belos corpos que tem a arianidade:
seu holocausto era, afinal, ato de amor!

AUTO DE FÉ X

Fora o mesmo que fizera Torquemada,
quando lançava os hereges na fogueira;
queimá-los vivos bênção era certeira,
para as almas subirem em revoada,

direto ao Paraíso, superada
a maldade do diabo, corriqueira,
pois fugiam os demônios, nessa esteira,
o seu poder derribado para o nada!

Assim pensava o nobre sacerdote,
mas sem pensar em reencarnação:
era “holocausto de suave cheiro”!

E quem a pira acendia com archote
o fazia na maior abnegação,
ao libertá-los do pecado derradeiro!

AUTO DE FÉ XI

Bem semelhante era a crença dos aztecas,
quando arrancavam dos peitos coração;
era uma bênção conferida à multidão
da qual acharam as caveiras secas...

Segundo acreditavam, todos vão
para inferno de extermínio e de tormento;
para escaparem de tal padecimento
era preciso ter dos deuses proteção,

sem importar o que se faz na vida;
o que importa é a maneira que se morre;
quando em batalha, nos aceita o deus da guerra,

quando afogado, o deus da água dá guarida...
por tais motivos, da morte não se corre,
somente é a forma de escaparmos desta Terra!

AUTO DE FÉ XII

Mil bênçãos semelhantes se encontraram
em outros povos, com igual teor;
nos fornos de Moloque, em pleno ardor,
crianças às centenas se lançaram...

Por isso eu louvo as hordas que avançaram
Europa a dentro, semeando o seu horror:
não precisavam de pretextos, só do amor
pelo massacre e estupros que espalharam...

Nos extermínios foram mais sinceros,
matando os outros por simples prazer,
de vê-los mortos e assim sobreviver...

Enquanto os civilizados usam meros
disfarces, em cem hipócritas razões
para explicar o cruel de suas ações...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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