domingo, 2 de abril de 2023


 

 

ALMOFARIZ I (8/7/2009)

(Mijanou e Brigitte Bardot)

 

vou-me entranhar nas paredes, como insetos,

entrar por uma fenda ou rachadura.

talvez exista sociedade pura,

ungida de argamassa, sob os tetos...

 

talvez existam templos mais diletos

entre as gretas dos tijolos, sem loucura,

sem automóveis, sem maldade dura,

sem leitura sobre crimes ou panfletos...

 

espiarei através da fechadura,

meu espírito livre da prisão

dessas paredes que esquece a atmosfera.

 

sem a graça clerical dessa impostura

que perverte e contamina o coração

pela mentira dessa longa espera.

 

ALMOFARIZ II

 

entre as calçadas e paredes, eu me estendo

e a cada dia vejo fenda nova,

por onde a alma penetra e assim renova

conhecimento antigo e então compreendo

 

e em cada greta, eu percebo que estou sendo

espelho e cópia de quem já está na cova,

as imagens permanecem, mesmo mova

o corpo à sepultura e então, entendo

 

felicidade e dor, passos das vidas

desempenhadas por entre estas paredes,

imagens tênues de quem foi visita,

 

imagens firmes de tantas despedidas,

imagens presas em eternas redes,

onde uma réstia de alma ainda se agita.

 

 ALMOFARIZ III

 

a imensa multidão assim me aguarda,

e não apenas a egrégora local,

o gnômon da raça em seu fanal,

na mesma estrada que o destino albarda.

 

olhos sem luz, a lã que não se carda,

animais mortos, em fúria canibal,

almas partidas, em alas de hospital,

velhos soldados, esquecida a farda.

 

os sacerdotes, impuros ou sinceros,

famintos operários, fazendeiros,

medíocres vidas ou ricas de opulência,

 

todos me esperam, esqueletos meros,

engavetados em horizontais sendeiros,

todos iguais na partilha da impotência.

 

ALMOFARIZ IV – 21 mar 2023

 

às vezes, tenho pena de pisar

por onde as sombras, tanta vez, passaram:

nas tijoletas seu calor deixaram,

enquanto o sol impediam de pousar.

 

essas sombras não apenas se evolaram,

correram pelas gretas, a buscar

refúgio permanente no sonhar,

sob os ladrilhos então se refugiaram.

 

e, como os novos amos, pisoteiam

as sombras secas de velhos proprietários

que assim fazem gemer... porém recebem,

 

também elas, novos passos que as tonteiam

e geram, por sua vez, espectros vários,

que sob os mansos pisos se concebem.

 

ALMOFARIZ V

 

deste modo, é melhor sair à noite,

que toda sombra será filha da luz

e a luz só brilha a partir da escuridão,

salvo quando na camisa de um lampião,

 

quando o percorre, agitada por açoite,

dela a sombra é arrancada e reproduz

uma silhueta na parede lisa,

que ao longo do reboco assim desliza,

 

até encontrar um lugar em que a argamassa

já se quebrou  por salitre ou umidade,

os dois irmãos em constante altercação

 

e de repente a sombra já não passa,

escondida sob as gretas sem idade,

não mais querendo ser tão só reprodução.

 

ALMOFARIZ VI

 

não te surpreendas, portanto, se tua sombra,

bem mais fiel até que um velho cão,

subitamente te abandone à solidão,

indo esconder-se entre os irmãos que ombra

 

e formam na cidade longa alfombra,

um cortinado espesso de emoção,

fibra detida em plena brotação,

conservada no temor que nos assombra,

 

qual o que resta dos mortos nesse escuro,

em que não rasga sequer réstia de luz,

por chapas de concreto recobertos,

 

suas sobras para trás, em ato puro,

que as tentações do mundo não seduz,

mas permanecem em ovários sempre abertos.

 

ALMOFARIZ VII – 22 mar 2023

 

outras sombras se refugiam nas pestanas,

algumas vezes disfarçadas de fantasmas

e quando piscas, alguma vez te pasmas,

em sobressaltos das figuras mais insanas,

 

depois suspiras ou tomas tuas tisanas,

para acalmar o coração que orgasmas,

num palpitar de expandir as plasmas

e as sobrancelhas levemente espanas,

 

com um riso de desculpa pelo rosto,

pensando que afinal não fora nada,

qual ilusão de ótica transiente,

 

enquanto a sombra se aninha no teu busto,

por algum tempo assim reencarnada,

bem mais real do que suponha a gente!

 

ALMOFARIZ VIII

 

outras sombras se difundem nos sprays,

quando os borrifas a afugentar mosquitos

e se projetam em vapores esquisitos

e julgas serem, de tua razão nas leis,

 

só girotear de tais insetos, que malditos

te esbatem pelo rosto em vastas greis,

não mais as sombras de defuntos reis

que se espalharam nos espaços infinitos

 

e que de noite se encontram mais aflitas,

ao se verem dissolver na escuridão,

mas outras dançam de uma vela no morrão

 

e nesses pontos em que as luzes são restritas,

saem dos velhos espirais de proteção,

esses “boa noite” de esverdeadas fitas.

 

ALMOFARIZ IX

 

pequenas sombras igual valsejam ao redor,

sombras redondas de migalhas de confete,

partilhas que provoca o “mata-inset”,

sombras dos dedos, das unhas, de um odor,

 

as sobras dos cabelos, furta-cor,

esguias dançarinas de alfinete,

as sombras pixeladas da internet,

cada letra pintalgando seu valor, 

 

sombras minúsculas das eructações,

as sombras lânguidas emitidas em bocejo,

as sombras assustadas de um espirro,

 

mil devaneios em sombras de emoção,

as cem sombras carmesim de teu desejo,

contra os tetos condensadas como um cirro.

 

ALMOFARIZ X – 23 março 23

 

as minhas sombras são tear de largo manto,

que sobrenadam e revoam ao redor,

algumas delas que conheço já de cór,

outras ressoando somente no meu canto,

 

sombras salgadas das lágrimas de pranto,

cada sonho assombreado em multicor,

refrações de fogo-fátuo em esplendor,

qual um fogo de santelmo em nada santo,

 

as sombras do passado bem lavadas,

engomadas e dobradas em alfazema,

as sombras do presente em amaciante,

 

sombras da máquina em giro delirante,

as sombras do futuro ainda aguardadas,

cada uma delas igual pequena gema.

 

ALMOFARIZ XI

 

vejo mil sombras moldadas em santuários,

escondidas da vista mais mundana,

coros de sombras das novenas da semana,

sombras de santos de gesso em seus sacrários,

 

sombras de antigos carros funerários,

sombras dos cânticos que procissão proclama,

a sombra das serragens que derrama

cada tapete em seus desenhos perdulários,

 

sombras do incenso que no ar evola,

cada turíbulo embriagado de tontura,

como crianças a brincar em longos giros

 

e das coroas cada sombra que se esfola,

enquanto não vão roubar da sepultura

os mil lamentos engastados em suspiros.

 

ALMOFARIZ XII

 

e as sombras que não queira mais estranhas,

adormecem pelas gretas das calçadas,

permanecendo em rua aprisionadas,

sombras das rimas que solitária sonhas,

 

mas me vejo tolhido em emaranhas,

sobras de sombras também por ti deixadas,

entre teias de aranha entrincheiradas,

donas tais sombras de sábias artimanhas,

 

mas enquanto a casa velha ainda perdura,

moem-se as sombras dos antigos moradores,

no almofariz da veraz repetição,

 

em sua aguardança de ocasião futura,

em que se perderão seus estertores

sob os martelos da final demolição.

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