sábado, 15 de abril de 2023


 

 

SOBRANCELHAS SALGADAS I (20/10/2009)

(Fay Wray, diva do cinema mudo)

 

Hoje sentei-me ao lado de uma dor

que nunca deveria ter havido;

não fossem desencontros, teria sido

bem ao contrário, um meigo e suave ardor.

 

Não que essa pena desventrasse amor

ou pranto blandicioso, que afinal

foi pouco mais do que um colateral

o efeito dessa mágoa em meu fervor.

 

O que doeu não foi a desilusão,

porém que precisasse de ter-se revelado

por tentativa quiçá de manipulação.

 

Só divisei a emocional chantagem,

sentado calmamente do seu lado,

enquanto ela chorava por bobagem...

 

SOBRANCELHAS SALGADAS II

 

Posso lembrar que ela chorava tanto

que ensopou os lenços de papel

de um pacote inteiro, tanto fel

que ardia e sufocava no seu pranto.

 

Fui tolo em consolá-la e nesse entanto

não passou para mim favos de mel,

fui eu que repassei bens a granel,

pelo retorno de um vazio espanto.

 

Assim, a consolei: tirei de mim

tranquilidade e afeto, na porfia

de nela despertar nova magia;

 

porém nem o destino quis assim:

tão logo consolada, foi-se embora

e apenas eu hoje recordo dessa hora.

 

SOBRANCELHAS SALGADAS III -- 4 abril 2023

 

Não foi uma só vez no meu passado,

talvez por meu aspecto paternal,

já escutei muitas a se queixar do mal

que lhes ferira o coração atribulado.

 

Não apenas mulheres, mas até cansado

coração masculino, o manancial

de um coração ferido em marginal

conversação foi sobre mim lançado

 

e a todos recebi com igual paciência,

muitos até com qualquer benemerência,

quando de fato os julgava merecer,

 

mas não ouvi aos aproveitadores,

a demonstrar-me seus falsos horrores,

querendo tempo e atenção só me reter.

 

SOBRANCELHAS SALGADAS IV

 

O que estranho é que em geral mulheres

não me pedem outro auxílio que escutar

e me disponho o ombro a lhes mostrar

como um porto seguro aos desprazeres.

 

Talvez algum me julgue todo, os quefazeres

deste consolo sem em troca aproveitar

qualquer favor que me pudessem partilhar,

mas dou apenas meus livres dispenderes

 

deste meu tempo, por si só já escasso;

há quem me busque ao longo da Internet,

há quem deseje na rua conversar

 

e aos quais atendo, ao suspender o passo,

sempre descrente de qualquer confete

de elogios que pretendam me lançar.

 

SOBRANCELHAS SALGADAS V

 

Algumas vezes enxuguei as sobrancelhas

com meus dedos, em suave palpitar;

não quero o sal das lágrimas provar,

antes guardá-lo junto a lembranças velhas;

 

em alguns pontos da mente eu ergui telhas

sobre um balcão de meigo sussurrar,

cada lágrima ali deixei a murmurar...

(Já a desconfiança para mim espelhas?)

 

Será tão raro assim que um conselheiro

a alguém escute sem segundas intenções?

(Ou tendo até terceiras, certas vezes.)

 

De qualquer modo, guardo em meu telheiro

o morno líquido de tais obtenções,

como água pura de regatos montanheses.

 

SOBRANCELHAS SALGADAS VI – 5 abril 2023

 

Tais lágrimas me bastam, realmente,

algum cílio talvez nelas misturado,

um fio superciliar embalsamado,

para guardar em bilhas, bem contente,

 

ao sofrimento talvez indiferente,

por mais tivesse simpatia demonstrado;

sendo sincero em tal momento asado,

máscara usando sobre o rosto, transparente...

 

Talvez existam de pele fragmentos,

esparzidos por entre grãos de poeira,

onda salina a habitar na comissura;

 

talvez revelem ali seus sentimentos,

obtemperados por confissão ligeira,

em suprassumo de pudor tornada pura.

 

SOBRANCELHAS SALGADAS VII

 

E assim confesso segundas intenções

nessa coleta de lágrimas num lenço,

cada careta e cada esgar mais tenso

ali colhido no ceifar dos corações;

 

são as mais contraditórias sensações,

algumas delas verdadeiro contrasenso,

outras de fato em sentimento denso,

umas às outras em objurgações...

 

O que eu desejo  é conservar no bojo

desses meus frascos de atenções neurais

as mil tristezas que vêm do nunca-mais,

 

as peremptórias revoltas do seu nojo

por aqueles que seus ardores desprezaram

a descartar depois que os consumaram!

 

SOBRANCELHAS SALGADAS VIII

 

Será como se guardasse em cem bujões

essas pequenas lágrimas retidas,

pelo meu próprio ardor reproduzidas,

até encherem por completo tais cambões

 

de vidro transparente de paixões,

leves retratos de tais alheias vidas,

em suas leves confissões assim colhidas,

para as guardar além das mutações.

 

De tantas delas os nomes já esqueci;

algumas outras mesmo ultrapassaram

os limites carnais de meu sacrário,

 

mas permanecem parcialmente ali

restos mortais que meus dedos roubaram,

antes que fossem prosseguir em seu fadário!

 

SOBRANCELHAS SALGADAS IX – 7 abril 2023

 

Assim às vezes, no ceifar de inspirações,

eu me dirijo a tal lagrimoteca;

tocar os vidros por fora em nada seca

os sentimentos das velhas prospecções;

 

por suas paredes me chegam percepções;

minhalma empresto apenas e não peca,

tal qual o pó de minha biblioteca,

em mim provocando só esternutações

 

que para o mundo explodem em sonetos:

guardo os bujões em olvidado canto,

talvez nas brenhas de meu hipotálamo;

 

às vezes beijo por fora os mais diletos

receptáculos dos femininos prantos,

para depois copiá-los com meu cálamo!

 

SOBRANCELHAS SALGADAS X

 

Que eu saiba, até hoje não quebrei

sequer um só de tais receptáculos;

não preciso por enquanto andar de báculos,

se bem bengala, só por farra, já usei!

 

Quando era adolescente, me adonei,

na inocência de meus tímidos cálculos

de meu bisavô a bengala, em animálculos

vagares com que o mundo desafiei.

 

Mas faz um quarto de século se queimou,

só seu castão de prata conservei,

reduzido, porém, a massa informe.

 

Mas meu depósito cada vidro ainda guardou

dentro da mente aonde os coloquei,

onde se agita cada sonho que ali dorme!

 

SOBRANCELHAS SALGADAS XI

 

Qual será então o mais infame sedutor?

Aquele que consegue amor carnal

e logo desfrutado, tal como animal,

já se retira em busca de outro ardor

 

ou aquele que só tem esse pendor

de guardar para si o espiritual

e que pretende, mais além do temporal,

conservar como tintas de pintor

 

e o empregar no tempo que se esfia,

como motivo para seu gentil labor,

tal multidão de sonhos esfaimados,

 

sem a qual, em verdade, nada cria,

por mais artificial sendo esse amor,

pelos farnéis de quimeras desfrutados?

 

SOBRANCELHAS SALGADAS XII

 

Destarte deixo para ti a decisão,

se por acaso arriscares chegar perto

desse que tem o coração aberto

para a menor promessa de emoção

 

e que faz de só palavra o galardão

e lírios faz brotar em seu deserto,

bem mais temendo achar um bom acerto

que uma recusa que lhe parta o coração.

 

E assim confesso sofrer de leucemia

pelas hemácias que de outrem furtei

e que na mente conservo ainda escondidas,

 

pois preferi recolher cada agonia

que as palavras de alegria que escutei

e transformei nas estrofes mais sofridas.

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