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Alva dos Jacarés I
Um dia, eu recebi diapositivos
de uma praia que chamaram Jacaré.
Bucólica e pacífica ainda é
essa visão de marulhares vivos.
Há duas silhuetas neles, velhos crivos
de humanos seres em recorte até,
contra esse sol nascente já de pé,
seus nebulosos raios semiativos...
Pois lá não pode ser o pôr-do-sol,
que no Brasil se esconde nas montanhas
e só se põe no mar do coração.
É muito belo viver sob o arrebol,
nessas bênçãos fantásticas, tamanhas
quanto a promessa da eterna criação.
Alva dos Jacarés II
É realmente efeito da poesia,
porque este sol, a uma primeira vista,
já parece cansado da conquista
e como a descansar se percebia,
tal qual se mergulhasse em maresia,
porém não é assim. A loura crista
emerge dessas águas, hedonista,
a converter a praia em harmonia.
E essa silhueta que mal se descerra
sugere até tocar um saxofone,
em saudação ao deus que se desvela,
a colorir de ouro toda a terra,
nessa trombeta que, sem soprar, ressone
em cada alma em que a alba se revela.
Alva dos Jacarés III
O sol escorre sobre a água, manso,
timidamente, um triângulo a ampliar.
As nuvens se defendem do avatar,
que renasce a cada dia, sem descanso.
No horizonte há uma ilha e nela lanço,
em pleno atrevimento, o meu olhar.
O Sol não pode ainda requeimar
as meninas de meus olhos e não canso
de apreciar a panóplia desse parto,
quando Anfitrite, que Netuno engravidou,
permitiu que essa luz desvencilhasse
da placenta das águas. Vivo e farto
está o Sol do sal que o alimentou,
para que a Terra toda acalentasse.
Alva dos Jacarés IV
E à beira desse cais que se projeta,
há um vulto de mulher, silhueta escura,
saudando a morte da madrugada pura,
expulsa pela força desse atleta.
Loura figura, em missão nada secreta,
o Sol ergue a coluna em canelura,
mas não se apóia nela, apenas fura
a atmosfera, na luz que assim excreta.
E a negra imagem toca um violino,
na flébil mescla do aceno e da elegia,
que à noite ela pertence, em seu negror.
Mas quando o Sol ascender a seu destino,
será somente dele a melodia,
enchendo essa mulher de luz e cor...
Alva dos Jacarés V
Enquanto o braço se arqueia, suavemente,
na saudação tão só crepuscular,
do dilúculo, em que o Sol vem a rasgar
os véus da noite, estremunhada e quente,
a melodia brota, em som dolente:
longos cabelos dessa dama a ondular...
Serão negros, talvez, como o trajar
seminoturno, que a envolve rente...?
E o som que assim respinga sobre a praia,
nessas gotas de luz de cada nota,
mui brevemente, no céu, se calará.
Enquanto a luz do Sol, cálida saia,
nessas gotas de som que a aurora dota,
em estrondoso fragor se espalhará...
Alva dos Jacarés VI
E é sempre assim... Passado o tempo, o Sol
irá cobrir a Terra inteira de amarelo:
gotas de pranto em seu tanger singelo,
trocando o violino por farol...
Pois no corisco sutil desse arrebol,
cumprida a sinfonia do desvelo,
emergirá das águas brando selo,
a refletir cada onda, em girassol...
Eu só indago é se cada jacaré,
que deu o nome à praia tão bonita,
ergue a cabeça para a melodia...
Ou se prefere, muito mais até,
esse calor que o sangue frio incita
dos mil raios de Sol em harmonia...
HEOTONTIMORUMENOS I
(Heautontimorumenos [O Atormentador de Si Mesmo], peça do dramaturgo romano Terêncio; o título foi tirado de um diálogo do filósofo grego Platão e, mais recentemente, Charles Baudelaire incluiu um poema em As Flores do Mal, com a grafia do título supra.)
Meu verso é esperma como tinta branca,
lançado a fecundar a branca mente;
penetra o verso em labirinto e sente
qual se a cocleia, até então estanca
se inundasse de líquidos e a frialdade manca
se aquecesse de mim, verso potente,
como o ventre se aquece no inclemente
momento em que tudo se destranca...
E como vibra então o teu estribo!
O martelo se esbate, firmemente
sobre a bigorna e ainda mais ressoa
o tímpano sob os golpes desse antigo
ressoar de rimas e então, furiosamente,
num orgasmo de métricas se escoa!...
HEOTONTIMORUMENOS II
Meu verso é sêmen, como negra tinta
que os olhos te fecundam, de repente:
ao leres o que escrevo, incontinenti,
imagem nova por si só se pinta
em qualquer ponto sideral da mente
e ordena à adrenalina, numa finta,
que te acione o coração, para que sinta
uma emoção, que é igual e diferente
dessa que pus, como semente, em verso,
para que se reproduzam as ideias
e sobretudo, que retinam harmonias
e que esse canto, em teu ceifar disperso,
produza espigas quais as epopeias
que se travaram nas minhas fantasias.
HEOTONTIMORUMENOS III
Meu verso é sangue vertido pelas veias,
coagulado assim em tinta preta;
cada sangria uma missão secreta,
cada segredo mensagem que receias.
A minha palavra é tessitura e teias,
ao te envolver em maldição dileta:
cada ferida outra ilusão excreta,
bem claramente ou por palavras meias.
E desse modo, me torno infeccioso,
contaminando em cada transfusão
com esta minha doença da poesia,
que me domina, no rufo tendencioso
da diástole e da sístole, em paixão
por esse mundo além da fantasia...
HEOTONTIMORUMENOS IV
Meu verso é soro a insuflar-te vida,
as gotas pingam, tão só uma por vez:
mas se acumulam, em sua sensatez
e tuas tristezas levam de vencida,
nesse momento de erudição contida,
nesse combate lento e sem dobrez,
contra toda depressão que nalma vês,
proclamação de coragem desabrida!
Porque estes versos são escritos para ti:
são apenas arcabouço e esqueleto,
a carne é tua sobre o manequim.
Só faço o esboço daquilo que sofri,
nessa esperança de alcançar o teu afeto
e que teus versos retornem para mim.
HEOTONTIMORUMENOS V
Teu verso que ainda espero, é ventre puro.
No encéfalo se contém frasco cinzento,
em que se gera diariamente o pensamento,
onde se vaga muita vez no escuro...
Teu verso eu quero que seja mais seguro,
em minha pretensão de julgamento:
eu te darei mil temas, a contento,
capazes de cruzar o vasto muro
das gerações que viram falsos versos,
sem verdadeira poesia; em tais paúis
só se avistam fogos-fátuos ardilosos...
Que à perdição te levam, nos dispersos
poços de lama, em que gênios azuis
apenas troçam de teus sonhos mais formosos.
HEOTONTIMORUMENOS VI
Em teu verso, caso eu gere essa intenção,
deves buscar um toque de beleza,
até no desencanto e na tristeza,
no melancólico ritual da depressão...
Quero que saibas que mil poemas vão
sobrevoando a Terra, com nobreza,
apenas a aguardar a breve reza
de teus dedos no teclado em que hoje estão.
Mas não esqueças que há quatro portais
para o universo dos poemas mais perfeitos:
métrica e rima, o ritmo e a cesura...
Quando os aceitas, os versos naturais
assim se formam e quase sem defeitos,
para escorrer de teus dedos com ternura...
Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
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