PARCENIA I
Cortei a noite em duas e usei
cada pedaço em diferente fim.
Metade dessa noite foi pra mim:
por entre os alfarrábios a empreguei.
Mas a outra metade te mandei,
enrolando sonetos de carmim,
envelopando mágoa carmesim,
que à soleira de tua porta então deixei.
Melhor me fora deixar em teu umbral,
ao vento balançando, estranha trouxa
de retalhos de noite e desamor.
Escorreria assim em manancial
sobre tua mente a meia noite frouxa,
a derramar sobre ti o seu frescor.
PARCENIA II
A manhã então cortei em quatro partes,
para passar manteiga nas fatias;
mais tarde, um ensopado fiz dos dias
catados diariamente em mil descartes.
E recolhi cada hora em que te fartes,
para lavá-las com cuidado, em minhas pias;
descasquei em espiral, tomei as guias,
para com elas renovar as Sete Artes.
E fiz sanduíche com as obras da pintura,
pus o cinema no liquidificador,
uma salada preparei com a escultura;
depois grelhei a má literatura,
o teatro assisti, com certo amor,
só guardando para mim poesia pura.
PARCENIA III
A tarde novamente retalhei,
para coser meu manto desses talhos;
os panos costurei com doze malhos
e para a forja minhas mãos levei.
Quando vermelhas as horas eu deixei,
os minutos transformei em atos falhos
e pendurei os segundos pelos galhos
das árvores neurais que elaborei.
E transformei a tarde em três saudades,
porém a quarta parte ainda guardei,
envolvida numa paina de piedades.
E assim as horas perdidas espalhei,
nessas dolências de puras veleidades,
buscando te agradar, porém falhei...
PARCENIA IV
E desse modo, com um jato de ar frio,
tomei as mil fatias desse tempo
para fazer pão-de-ló nesse retempo:
fiz rocambole com recheio de arrepio.
E esses mil doces que na memória crio,
enquanto mexo a panela do destempo,
só me serviram para contratempo:
foram ácidos demais, em seu desvio
dessas receitas contidas em meu sangue.
Ao invés de doces, fiz um sarrabulho,
ao molho pardo, com linfa de desoras...
Porém a noite se tornou exangue,
enquanto os dias se perderam nesse esbulho
da longa procissão de tuas demoras.
PARCENIA V
Mas não é sempre que o tempo se devora
impunemente, seja nosso ou alheio.
Os meus minutos são filhos do receio
e meus segundos derretem-se na aurora.
Cada detalhe embutido num embora,
enquanto rezo preces que não creio,
nessa esperança vã pelo teu seio,
em seu sabor sutil de mosto e amora.
Porque o tempo se vinga, certamente,
e de algum modo, e nisso não me iludo,
a cada hora que passa, eu envelheço.
Porque em todos seus andares é inclemente
e se não tenho teu amor de escudo,
definho a cada instante em que padeço.
PARCENIA VI
Tornou-se inútil retalhar a aurora,
em pequenos fragmentos e fatias,
na esperança de cortar diversas vias,
com que possa compensar a tua demora.
Em minha mochila, eu trago os bens de outrora,
porém já se acham mofados esses dias,
minhas refeições outras tantas desvalias,
minha bebida um coquetel de embora.
Por mais que ansiasse contigo a parcenia,
vi os minutos fluírem pelos dedos
e roídos de traças meus segredos.
Pois essa refeição, que assim queria
contigo partilhar, mostrou-se oca,
como o sabor das fadas em minha boca.
LEPIDÓPTEROS AZUIS I – para Márcia Tigani
O para sempre às vezes é mais curto
do que pode durar um por enquanto:
é lavado facilmente pelo pranto
ou se revela nada mais que um surto...
O para sempre às vezes é um furto
das condições transitórias do conquanto:
logo se embuça sob o grosso manto
ou silva a se esguichar em farto espurto.
O para sempre às vezes é apressado,
bem mais estreito que a trilha do jamais
e se reduz a insinceras juras...
Mas esse para sempre é um bem dourado,
enovelado nas chamas dos torchais,
em que os nuncas se retorcem em loucuras...
LEPIDÓPTEROS AZUIS II
Eu te percebo como dionisíaca,
teus versos escorrendo sem recato,
na doce mágoa do mais amargo fato,
em tal condensação plena e zodíaca.
Eu vejo o teu jorrar que vem da ilíaca
manifestação do sexo; do prato
em que pões o alimento do amor nato,
na embriaguez do verso quase etílica.
Quando o poema assume o teu controle
e tu nem sabes para aonde vai,
mas se retorce nos dedos qual serpente...
Ofídico esplendor, que a mente enrole
nessa poesia, que ardilosa sai
e tudo mais carrega pela frente.
LEPIDÓPTEROS AZUIS III
Eu te percebo como tsunâmica,
vital em majestosa inundação:
não são Apolo e as musas que aqui estão,
mas Anfitrite que demonstra sua dinâmica.
Eu te percebo em tal criação mânica,
os versos escorrendo de emoção,
sem a branda interferência da razão,
porém sob a influência dessa pânica
avalanche sutil, versos de lava,
de nuvem piroplástica irresistível,
versos de sol a descair no mar...
E te percebo como a musa brava,
que tange na minhalma, inexaurível,
essa suspeita de nunca te encontrar.
LEPIDÓPTEROS AZUIS IV
O para sempre tem sabor de por enquanto
nessas questões de amor, porque não dura:
só sobrevive qual lembrança pura,
quando for desarraigado pelo pranto...
Felizes para sempre, doce espanto,
conduz rapidamente até a fartura,
enquanto a convivência canelura
vai rasgando das colunas no recanto.
O que persiste certamente é a amizade,
forjada por carinho e compreensão,
ao longo desses anos em que estão
a esforçar-se por mentir amor,
mas que o demonstram, com tenacidade,
até quebrar o próprio coração.
LEPIDÓPTEROS AZUIS V
O para-sempre tem sabor de vinho,
que se bebe, lentamente, até esgotar.
O para-sempre sempre foi mesquinho,
seu fundo mostra e vê-se terminar.
O para-sempre só pode definhar,
como resseca, afinal, até o azevinho.
O para-sempre se torna um disputar,
manso e suave, pelo amor vizinho.
O para-sempre constrói o seu jazigo
com o mármore do sêmen coagulado.
O para-sempre jaz em seu abrigo,
no teu ventre, depois de fecundado.
Ah, para-sempre, do amor tão inimigo,
servindo à raça no teu ideal sagrado...
LEPIDÓPTEROS AZUIS VI
Eu te percebo para sempre vasta,
em teu vasto perfume arrasador.
Eu te percebo a destilar amor,
destilada a esperança e inteira gasta.
Eu te percebo em visão de desamor,
uma mistura de mágoa que a si empasta,
intensidade que depressa se desgasta,
pela falta de controle do calor.
Mas eu percebo em ti, nessa entropia,
puro rescaldo que leva à distropia,
em cada verso concentrado de saudade.
E vejo em ti a própria humanidade,
que em si concentra laivos de magia,
em seu furtar do Sol a claridade...
Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
Caro Bill, teu blog tem muito estilo e bom gosto, sem falar nos ótimos versos; sou suspeito porque sou seu maior fã, mas saiba que estarei sempre apreciando teus versos. Te desejo muito sucesso... Graldo Rodrix...
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