quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CORDAS DE AREIA & BYZANTIUM


CORDAS DE AREIA I  (24 OUT 11)

Istambul é uma cidade de muralhas,
que foram com cuidado derrubadas...
Ou descuidadamente restauradas,
para darem a impressão de mais antigas...

Istambul é a cidade das intrigas,
mil facções em pelejas digladiadas,
mil rancores por cem pequenos nadas,
grossos caibros a desfazer-se em maravalhas,

nesses restos de torreões que ainda vemos,
às vezes só uma esquina sobranceira,
outras vezes extensões de longos panos,

com velhas casas que nelas contemplemos...
E se não tocam as buzinas, é por que a areia
não se espalhe a provocar maiores danos... 

CORDAS DE AREIA II

Istambul é um caso único na Terra,
uma cidade a abranger dois continentes,
uma cidade de multidões frequentes
na goela aberta com que a todas ela encerra.

Istambul já de há muito não vê guerra,
vistas lançadas para os ocidentes,
frouxas raízes ainda nos orientes,
em que a Ásia se esvai e a Europa emperra...

Já os sultões o queriam ser da Europa
e tinham os Bálcãs inteiros conquistados,
sendo detidos às portas de Viena,

mantendo vastas terras sob a copa
dessa árvore frondosa que condena
os ortodoxos a serem dominados...

CORDAS DE AREIA III

Mas todas essas são cordas de areia,
ergástulo e prisões para turistas...
Nessas ruínas, fantasmas não avistas,
nem sequer um fogo-fátuo se incendeia...

Em Hágia Sófia a sabedoria não se ateia,
não é mais do que um museu de gastas vistas.
Em Hágia Irene a paz dessas conquistas
é a paz dos mortos em sempiterna ceia.

Até as crianças são bem disciplinadas,
em longas filas sob um guia prepotente
a lhes mostrar o passado com rancor...

E elas percorrem as salas intrincadas,
enquanto os anos passam, alegremente,
como crianças num escorregador...


CORDAS DE AREIA IV

Contudo, na amplidão desses jardins,
elas sorriem e acenam cordialmente,
para esses rostos da estrangeira gente,
vinda do mundo inteiro a seus confins.

Vejo a frescura clara dos jasmins
nesses rostinhos, europeus inteiramente.
É muito rara a criança, realmente,
que algo de asiático mostre nos seus jeans...

Afinal, a Turquia vem dos berços
de outras dezenas de civilizações,
são hititas, panfílios, nicomedas,

são mísios, lídios, e bitínios tersos,
jônios e frígios, em grandes multidões,
macedônios, capadócios, persas, medas...

CORDAS DE AREIA V 

Houve tempo em que das turcas os cabelos
se espalhavam ao vento, alegremente;
mas hoje é o Islamismo restringente
e assim reprime de muitas os desvelos...

Mas de todas as turistas posso vê-los,
e para muitas ainda, a prepotente
exigência da shariya é indiferente:
não é o Islã que assim imprime os selos.

Isso é mais imposição sacerdotal
e os pés cobrimos dentro das mesquitas,
com invólucros azuis de frio plástico...

Sem dos pisos o desgaste ser fatal,
pois dos mosaicos as preservadas fitas,
não são de areia, porém cordas de elástico...


CORDAS DE AREIA VI

E nisso tudo o que mais chama a atenção
é como o povo demonstra semelhança,
desde os velhos, até qualquer criança,
sem destoar essa inteira multidão

da gente de minha terra...  A vastidão
geográfica é só de areia a trança
e até a vegetação traz à lembrança
de nossas árvores a verde brotação...

E vejo a hera sueca nas muralhas,
igual à que plantamos no jardim
e mil bordos imensos e altaneiros

e mesmo os prédios, de parelhas falhas
e o brilho desse olhar lançado em mim
é o mesmo que me lançam brasileiros...

BYZANTIUM

BYZANTIUM I   (25 OUT 11) 
Mas não somos o que viram realmente,
nem realmente vimos deles o que foram.
Nossas imagens são ventos que descoram,
Nossos reflexos são vidro e Sol ridente.

Há gatos em Istambul.  Constantemente
encontramos com eles.  Nada imploram,
mas tampouco se escondem.  Ali moram,
acostumados com a mais estranha gente.

Porém os cães são de fato bem mais raros,
até escutei alguém que perguntasse
se turcos comem cães, como os chineses...

E nosso guia lhe mostrou um de seus claros
olhares de rancor, qual se indagasse
se eram canibais seus camponeses...

BYZANTIUM II

Santa Sofia se quedou desfigurada,
na irreverência de tantas multidões,
contaminada por tais exalações,
a maioria dos afrescos desbotada...

Em seus redondos broquéis é ensinada
a sabedoria que provém dos alcorões,
mas há mosaicos a cair, constelações
de velhas tésseras vazias de alvorada.

Sua rampa, porém, ainda é encantada,
naquelas lajes de quina arredondada
pelos pés de peregrinos seculares,

pedras macias, penitência de milhares,
líquida pedra, pela mágoa preservada
de tantos olhos desfocados para o nada!

BYZANTIUM III 

Santa Sofia, santuário dessacrado,
só nessa rampa preserva a santidade.
São poucos os que a galgam, na verdade,
só os penitentes e a juventude airada.

Ou os poetas de peito iluminado,
os peregrinos de toda a humanidade,
que nesses cantos pingaram sua vaidade,
muito mais pura que a contrição fanada.

Só dessas pedras me olham os fantasmas
que desvendaram já tantas virilhas,
na vã contemplação de órgãos sexuais,

ingenuamente escondidos em miasmas,
arredondadas fendas que essas ilhas
congregam em arquipélagos mortais...


BYZANTIUM IV

O que nos mostram nessas excursões
são apenas armadilhas de turistas.
Ergue o Grande Bazar as velhas cristas,
deglutindo sem pudor as multidões.

Os corredores não levam a salões,
mas a covis de espertos prestamistas,
tudo te vendem, bastando só que insistas
que o preço é caro até para ilusões.

Aqui dominam a pechincha e a barganha:
quem aceita qualquer preço é desprezado;
até perguntam quanto se quer pagar...

E sua blandícia chega a ser tamanha
que as mãos te beijam, com olhar vidrado,
sabendo que no fim vão te enganar!...

BYZANTIUM V

Tampouco aqui eu encontrei fantasmas,
embora os meus deixasse para trás.
Nenhuma alma aqui encontra a paz,
são mil reflexos a costurar miasmas.

Seu comércio tem abismos, neles pasmas;
diariamente se achega Satanás,
no fim da tarde... e a colheita faz:
leva amarradas as ilusões que orgasmas

para qualquer inferno requintado,
moeda falsa desses mercadores,
ânsias vazias de mil vazios amores...

Cordas de orgulho se vê por todo lado:
vermelho estofo das cores nacionais,
luas rasgando os seus órgãos genitais...


BYZANTIUM VI

E nas praças se acumulam vendedores
de todo o tipo de quinquilharias:
vendem postais, moedas, porcarias
para os turistas, sorrindo seus rancores,

enquanto fingem cordialidade em flores,
mas cospem pelas costas zombarias,
virado o rosto, pensando que não vias,
voraz vingança de tais espoliadores!...

Quase nada comprei nessa excursão,
apenas meia dúzia de cedês,
um chapéu turco, somente dois piões,

enquanto as liras me corriam da mão,
de tal forma escabrosa, que nem vês,
rumo aos esgotos de tantas gerações!...


Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
Edição e postagem: Andréia Macedo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

COROMANDEL & SANDRIGO


COROMANDEL

COROMANDEL I  (23 out ll) 

Chegou o momento das recordações.
Vejo as nuvens em pilhas de algodão;
durante a noite, almofadas de tição,
pouco me resta a lembrar dessas tensões.

Quente viagem, longa e sem paixões,
assentados de permeio à multidão,
adormecida do aeroplano no salão,
enquanto eu cato piolhos de ilusões...

Atrás de mim, alguém teve um ataque,
provocado pelo excesso de calor:
por um momento, quase o invejei...

Meu coração batendo, em atabaque,
pela loucura desse condicionador,
mas vi a ironia e então me controlei...


COROMANDEL II

À minha frente, uma mulher trazia
uma criança de berço, que chorava
e meus farrapos de sono atrapalhava,
enquanto o povo a meu redor dormia...

E nos momentos em que um pouco conseguia,
a comissária vinha e atrapalhava,
com refeições que eu nem sequer buscava,
ou atenções a que recusar eu preferia...

Também à frente, uma pequena tela
mostrava meu percurso digital,
alívio único para meu desconforto...

Os contra-alíseos assoprando feia vela
nas costas da cadeira, que era, afinal,
imagem falsa de meu espaço morto...

COROMANDEL III 

Até que enfim se completou essa viagem
e foi a busca intensa das bagagens.
Se aqui for pobre a rima das imagens,
mais pobre foi o meu rito de passagem...

Os aeroportos decretavam avassalagem,
nos corredores infinitos, com mensagens
contraditórias ao longe, mas sem pajens
que nos mostrassem os pontos de triagem.

Não era a Meca, mas foi peregrinação
pelos caminhos sem fim e indiferentes,
até um trem tivemos de tomar!...

Sem que mostrasse real indicação,
acompanhando ao terminal outros presentes
talvez diverso destino a demandar...


COROMANDEL IV

Num descaso total do passageiro,
esse imenso aeroporto tumular,
a altura de DeGaulle a superar,
pobres formigas encarando sobranceiro...

Até chegar à esteira, em que ligeiro,
ficavam nossas malas a jogar,
pouco ligando a seu danificar
e novamente o calor vem, por inteiro...

E me ensopa a camiseta e a camisa,
enquanto puxo malas por rodinhas,
certamente melhor que antigas alças...

Minha própria mala pequena em nada pisa,
trocada por essas malas de rainhas,
a imaginar, quiçá, recepções falsas...

COROMANDEL V 

O tempo dos poetas é diverso
desse tempo que entretém gente comum.
É diferente também do tempo algum:
é o brevelongo tempo de meu verso.

Portanto, o recordar é mais disperso,
pois na viagem, não escrevi nenhum
e se os dato agora, é que o assun-
to realmente corresponde ao dia terso,

em que corremos pelos corredores,
que para isso servem, certamente,
no falso mármore a que meu pé se apega,

nessa busca de pelourinhos constritores,
alagado de suor, incontinenti,
mas que posso fazer, se a noite é cega?

COROMANDEL VI 

Fico a pensar em viagens mais antigas,
esses veleiros indo até Coromandel,
sem ar condicionado e sem quartel,
para banhos, abluções e outras intrigas...

Contudo, o vento lhes soprava doce mel
e embora as ondas balançassem inimigas,
as tábuas do convés em breve amigas
                  se tornavam, mesmo a água sendo fel...

E tantas coisas ouvi desse passado,
sei quais imagens posso hoje esperar,
que a tais destinos místicos nem parto...

Bem confortável em meu casulo alado,
que me permite à imaginação voar,
nesta "viagem à roda de meu quarto"...

SANDRIGO

SANDRIGO I  (24 OUT 11)

 Em Istambul, uma nossa companheira
perdeu as malas, deixadas para trás...
Nesse descaso que a companhia traz,
não nos surgiram nunca sobre a esteira...

Premonição decerto derradeira
que a avisou, talvez, que nesses lás,
por essa vez, não encontraria a paz,
que havia intrigas e a inveja costumeira...

Ficamos largo tempo no aeroporto,
eu sentado, cuidando das bagagens,
minhas familiares saíram a fumar...

Enquanto a outra, em sala sem conforto,
empreendia a sua busca com coragem,
sem sua mala conseguir localizar...

SANDRIGO II

 E não queria o guarda do aeroporto
à minha esposa de novo permitir
que entrasse, para me substituir:
pitar cigarro parecia outra viagem!

Queria que passasse o desconforto
de uma nova revista, outra triagem,
qual transportasse granada na bagagem
e o imenso prédio quisesse destruir!...

Foi necessária a intervenção do guia,
Hassan Enki, a quem muito agradeço,
antes que ao prédio retornar pudesse.

Pois só depois que me substituiria
eu poderia localizar, com meu apreço,
tal bagagem mais perdida que uma prece!

SANDRIGO III 

Fomos depois levados pelo guia
até um hotel, de nome venerado,
pois Venera certamente era chamado
e tratamento bom se recebia...

Tomei o banho que já tanto queria,
prestei tributo a Caco, já cansado...
Já era tarde e o sono perturbado
foi por exótica e bela gritaria...

Pelas seis da manhã, um muezim,
seu chamado eletrônico ampliado,
se pôs a convocar fiéis à prece...

Nessa cidade de ocidental jardim,
em cujo povo fracamente islamizado
a proteção de Alá ainda desce!...

SANDRIGO IV

 Alegava o hotel ter quatro estrelas;
o café da manhã era excelente;
ofereceram banho turco à gente
e instalações de spa para as donzelas...

Naturalmente punham preço nelas,
seriam extras bem caros, claramente.
Eu não buscava artifícios, certamente,
são as mulheres que anseiam ser mais belas

e acreditam que tais coisas ajudam...
A mim bastava olhar pelas janelas,
pelas quais via anúncios luminosos,

figuras digitais, que sempre mudam,
quase antes que se possa percebê-las,
enquanto os carros se moviam silenciosos.

SANDRIGO V 

Foi a coisa que me chamou mais a atenção,
esses veículos quase a se tocar,
que quase nunca se ouvia buzinar...
Só os megafones alertavam a multidão,

quando de novo na almenara estão
os muezins, mais uma prece a convocar.
Que coisa incrível esses carros a ocupar
o espaço inteiro e sem contestação!...

Ninguém gritava para pedir passagem,
apenas ocupavam o lugar...
Mais tarde vi, para meu divertimento,

que os transeuntes ali também se engajem,
pelas ruas, sem nunca se empurrar,
mas avançando em constante movimento...

SANDRIGO VI

E nas calçadas havia escadarias
conduzindo a ocultas aberturas...
Vasta ameaça em noites mais escuras,
possíveis quedas ao longo dessas vias!...

Assim se abriam, junto às paredes frias
e lá no fundo, sob luzes duras,
filas de roupas, mas que por loucuras
só em atacado adquirir podias!...

Só mais tarde descobriram novas lojas,
em outras ruas já um tanto afastadas,
em que a venda peça a peça era normal.

Enquanto nas primeiras já te enojas
pelas ofertas mil sendo mostradas,
nesse comércio sem nada de oriental!...


Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
Edição e postagem: Andréia Macedo