sexta-feira, 4 de março de 2022

 

 

GLÓRIA TERRENAL I – 23 FEV 22

 

“Os céus declaram a glória de Deus

e o firmamento anuncia a obra de Suas Mãos”,

disse o salmista há tantas gerações,

nos velhos tempos do reino dos Hebreus.

 

Talvez já nesse período os Saduceus,

que não acreditavam em ressurreições,

pensassem antes nas próprias intenções

e se esforçassem tão só por lucros seus.

 

Já os Fariseus, que nelas acreditavam,

só pela letra da Lei as procuravam,

sem qualquer crença na graça ou na bondade.

 

E desse modo, uns e outros mais buscavam

sua própria honra e sua trivialidade,

em desespero, mais que por vaidade.

 

GLÓRIA TERRENAL II

 

Em grande parte, a glória que buscavam

não era em absoluto a luz divina,

mas qualquer luz visível que os fascina,

que para eles só brilhar consideravam.

 

Os céus assim aos homens declaravam

cada tendência que sua própria vida inclina;

para os Judeus, qual pecado se destina,

sem sentir culpa, os demais povos os louvavam.

 

Eram outros tantos deuses que temiam

e aos quais ofereciam holocaustos,

de que os deuses, em poderosos haustos,

 

respiravam o “suave cheiro” e o apreciariam;

mesmo na Bíblia se repete esta expressão,

tal qual se Jeová apreciasse essa ilusão!

 

GLÓRIA TERRENAL III

 

Mas quando sacrifícios se enviavam,

era uma forma de aos deuses dominar:

os céus declaram o quanto podem desejar

e suas volúpias distantes se acalmavam.

 

Em seu primevo entender os enganavam

e assim os céus poderiam controlar.

(Mesmo Abraão julgou poder argumentar

com Jeová e os dois que O acompanhavam!)

 

Assim a glória terrena prosseguia,

ficando os deuses só a cochilar,

os seus pulmões satisfeitos da fumaça.

 

E a negociata diariamente se fazia,

a Terra dos homens a glória a declarar,

julgando assim se afastar toda a desgraça.

 

GLÓRIA TERRENAL IV

 

Foli desse modo que surgiu a astrologia:

os céus dos homens a declarar a glória,

o seu destino, suas tristezas ou vitória,

consoante a hora e a data em que nascia.

 

Cada figura do Zodíaco mostraria

o seu futuro já em registrada história,

nos decanatos dominada e merencória

e nem um deus transformá-la poderia!

 

O firmamento à sua obra o prenderia;

assim a glória humana manifesta!

(Sendo um Deus Único mais fácil dominar!)

 

Ainda mais que a Sua Lei já nos dizia,

enquanto a multidão que os céus empesta

era preciso diariamente propiciar!...

 

OLOR DE AMOR I – 24 FEV 22

 

o perfume do amor sinto no rosto,

em cada poro penetra lentamente,

em minhas lágrimas se esfrega redolente,

nas comissuras dos lábios ainda posto.

esse perfume de amor não traz desgosto,

mesmo esvaído em fumaça iridescente,

em minha memória sempre onipresente,

sem o ressaibo que nos deixa o mosto.

 

o perfume do amor me torna vivo,

mesmo durante minha pequena morte,

essa modorra que se chama sono;

ainda percebo nos poros o seu crivo ,

ainda me orienta, minha bússola, meu norte,

por mais longínquo que seja o abandono.

 

OLOR DE AMOR II

 

o perfume do amor é meu tambor,

o meu surdo, meu bombo, minha tarola,

o meu ritmo cardíaco controla

e marcho avante ao ritmo do odor;

esse perfume de amor é meu vigor,

mesmo dentre a tempestade me consola,

fios amolgados constantemente amola,

nesse perfume metálico do amor.

 

o perfume do amor é a sedução

que me entra nos ouvidos e ressoa

em minhas cocleias e cada tímpano estremece;

o perfume do amor é minha visão,

que no quiasma ótico não se escoa,

mas faz teu rosto tremeluzir em prece.

 

OLOR DE AMOR III

 

já nem sei quantos, através da vida

foram os milhares de poemas que escrevi,

para estrofes de amor me transferi,

em sua semente plúmbea e incontida.

cada palavra que de meus dedos é vertida

dá-me a impressão de que por ela escorri,

que o derradeiro soneto concluí,

tudo foi dito, a ilusão foi desvarida.

 

e então, como em fúria de alvorada,

o teu perfume retorna-me às narinas

e algo começa de novo a coalescer,

versos novos a assoviar em disparada,

quais esmeraldas de olvidada mina,

sobre meus dedos glaucas a escorrer.

 

BICO DE CHALEIRA I – 25 fev 22

 

a água da chaleira forma um arco

quando na térmica vai se projetar;

diariamente eu me ponho a meditar:

por que não forma um retilíneo marco?

quando bem cheia, começa a formar charco,

cobre o tampo do balcão no seu pingar;

com pano de prato em vão busco secar:

logo se empapa o velame desse barco!

 

não me recordo se no tempo antigo,

quando cada chaleira tinha um bico,

se era reto o jato ou se era curvo;

há dias mexo na memória e não consigo,

com outras coisas ensimesmado fico:

perde-se a imagem no passado turvo!

 

BICO DE CHALEIRA II

 

as coisas mudam através da vida,

não foi escolha por mim deliberada,

mas com frequência pelo uso mutilada

caía o bico da chaleira desvalida...

soldar de volta era coisa até querida,

mas raramente ficava bem pregada,

por uma fenda era a água resvalada,

talvez os dedos se queimassem em seguida!

 

abandonado o bico da chaleira velha,

hoje a chaleira sem bico triunfou,

com bicos quase não mais se fabricou

e na memória a lembrança não se espelha:

será que o jato com o bico era mais reto

ou a gravidade o entortava já completo?

 

BICO DE CHALEIRA III

 

de igual modo, acabou abandonado

o tampo opaco de sua cobertura:

ficava ele a tremer de forma impura,

como um sininho de natal apalermado!

dizem que james watt foi por ele inspirado

a imaginar uma potência mais segura

de transportar sem cavalos viatura,

mas que faria se por olhar atravessado?

 

decerto logo se perceberia a fervura,

mas hoje em dia o tampo é transparente,

para a inspiração de watt já não serve!

mas a chaleira ainda tem resposta dura:

não quer ficar sendo espiada pela gente,

porque chaleira cuidada nunca ferve!..

 

O OLOR DA PALAVRA I – 26 FEV 22

 

a Bíblia é clara mas pouco compreendida:

“o Verbo se fez carne e habitou entre nós”

ou a Palavra se tornou em humana voz:

como em um ventre se tornaria reduzida?

já é difícil a natalidade concebida

por deeneá bordado em tal ilhós,

mas não houve carne antecedendo o cós

dessa fazenda humana assim tecida.

 

há quem imagine como pomba a divindade,

ou que Maria sozinha concebesse

ou que houve algo de laboratorial

ou até José a gerar paternidade,

quando a semente do Espírito nele desce,

como algo de incontestável material.

 

O OLOR DA PALAVRA II

 

Deus é a Palavra derramada sobre nós,

toda palavra a transmitir alguma prece;

Deus é a canção que sobre nós aquece,

todo o poema que se segue empós.

Deus é a palavra, por mais que seja atroz,

toda a palavra de esperança que nos tece,

cada palavra infeliz que te entristece,

cada grito e maldição de teu algoz.

 

pela Palavra é revestida assim,

qual servidora trajada de arlequim,

cada palavra com direito a ver a luz,

por mais pareça ser tão só verborragia,

toda palavra na mente humana cria,

que para muitas veredas nos conduz.

 

O OLOR DA PALAVRA III

 

mas nada disso pode ser por ti criado,

mesmo apelando à imaginação sutil,

ou a um deboche perfeitamente vil,

quando nada havia por matéria limitado;

ao encarar-se o que foi claro ensinado,

foi o Verbo como um som, nada viril

que encarnou nesse corpo feminil:

a voz do Verbo assim transmogrifado.

 

bem reconheço que não é o que se ensina

por toda a terra, em teologias cristãs,

por ser difícil o seu entendimento,

mas isso que concebeu carne divina

vai muito além de nossas paixões vãs,

sendo a pura encarnação do Entendimento!

 

EM SONHO UM ROSTO I – 27 FEV 22

 

Eu tive um sonho claramente iluminado

pelo teu rosto em cintilar de estrela,

mais que o zodíaco em tal faísca bela,

meu sonho inteiro por teu rosto perolado;

eu tive um sonho de cores compassado:

o arco-íris todo em teu rosto se congela,

cada anel saturnino em ti se anela,

cada cometa em colar aveludado.

 

Eu tive um sonho e vi-me dominado

pelo esplendor suave de um semblante,

delineado ali apenas nesse instante,

só a silhueta, como um véu alado,

mais que qualquer noção do firmamento,

para à luz de meus olhos dar alento.

 

EM SONHO UM ROSTO II

 

Eu tive um sonho claramente dominado

pela tua voz em conselho bem sutil,

pelo teu canto contra o céu de anil,

todo o meu sonho por tua voz sonorizado;

eu tive um sonho por faixas recruzado

em ouro e ciano formado num redil,

voz sussurrante em ressonâncias mil,

por microfones de estrelas ampliado.

 

Senti no sonho a força do recado

de onde veio para mim a redundância,

qual a miragem de toda a onirosfera,

qual foi o beijo que me foi soprado,

qual o carinho silvado em abundância,

qual a promessa contida nessa espera.

 

EM SONHO UM ROSTO III

 

Eu tive um sonho claramente sopesado

por outro sonho forjado de platina,

pesada jóia que ao coração destina

a margem pura de tal sonho marchetado;

não foi um sonho debruado de pecado,

nem a malsina de minha futura sina,

sonho afilado por boca feminina,

na luz, na voz, seu peso confinado.

 

Pois tive um sonho assaz crepuscular,

todo em dilúculo envolto matutino,

foi sonho meu em desejo peregrino,

decerto eu mesmo tudo a imaginar,

na luz de opala de um anseio pequenino

de contigo habitar em real sonhar.

 

EM FAUNA A DEVOÇÃO I – 28 FEV 22

 

Ouso dizer que a devoção felina

é bem menor que a mostrada pelo cão;

este é capaz de total abnegação,

enquanto aquele a bem menos se inclina;

também se diz que a gata é feminina

e assim requer cuidado e proteção,

enquanto o cão tem diversa posição,

numa atitude talvez mais masculina.

 

Dizem que a amante fará por seu marido

qualquer coisa enquanto esteja apaixonada,

mas que a paixão não se conserva inteira,

enquanto o cão, até sua hora derradeira,

sua devoção mais e mais será ampliada,

nessa paixão que foi de início concebida.

 

EM FAUNA A DEVOÇÃO II

 

Costuma o cão caçar em sua matilha,

sempre aos demais mostra colaboração,

igual que os lobos em idêntica atuação,

à alcateia lealdade em toda a trilha.

porém desde que um filhote se perfilha,

surge a amizade já ancestral do cão;

cessa dos lobos a feroz competição,

forma-se o elo que ao dono o cão encilha.

 

Fica o cachorro em torno ao amo a orbitar,

como o cão-alfa em sua nova dependência;

e o caçador ou pastor, em seu lugar,

igualmente a depender desse liame:

nenhum amor a ter mais consequência

que esse laço de amor com que nos ame.

 

EM FAUNA A DEVOÇÃO III

 

Mostra-se o gato mais individualista,

hipnótico a lançar-nos seu fitar;

somente aos poucos irá se aproximar,

fingindo não querer que a gente insista;

e desse modo, seu bel-prazer conquista,

com a meiguice de criança em seu olhar,

amor materno facilmente a inspirar,

mas falso é o amor que em tal olhar se avista.

 

Pois dificilmente um gato morrerá

para salvar a dama que o criou,

busca vantagens nessa dependência,

enquanto o amor não empalidecerá

nesse animal que a um homem adotou

como um deus a quem adora com paciência.

 

EM ARCO O CORTE I – 1º MAR 2022

 

O arco da lua pode cortar o humano arco,

aos homens despojando de potência;

há nesse arco uma constante impermanência,

sempre seu brilho interminente e parco;

o arco da lua, do firmamento o barco

que te carrega, sem ter benemerência,

nunca te busca demonstrar leniência,

nem te oferece um luminoso marco.

 

Tampouco odeia, em sua condescendência,

o arco da lua, minguante quer crescente:

em lua cheia tão só te desafia

e quando a Terra lhe interpõe sua agência,

cobrindo a Lua em halo indiferente,

o seu contorno astuto ainda vigia.

 

EM ARCO O CORTE II

 

O arco da lua simplesmente passa,

sem se cuidar de teus planos ou desejos;

embalde aos céus enviarás teus beijos,

nem bem nem mal tal arco te repassa;

não esperes se torne o arco teu comparsa,

que a silhueta a flutuar nos seus adejos,

perante o albedo terrestre sinta pejos

ou agradeça, sequer por qualquer farsa.

 

O arco da lua não nos traz feitiçaria,

é apenas belo porque é belo em si,

quando se apaga não requer teu mal,

quando se acende não devolve a tua magia:

é só o milagre que habitava em ti,

em sua placidez argêntea de coral.

 

EM ARCO O CORTE III

 

O arco da lua se move compassado,

por milênios iluminou os teus avós,

esmaga estrelas qual pilão em mós,

o arco da lua em mausoléu mostrado;

nunca Selene ou a Astarteia de pecado

em sua alvura se interessou por nós,

pende dos céus como um brilhante ilhós

o arco da lua, triste raio desbotado.

 

Contudo eu amo essa Lua indiferente,

tal qual no antanho foi amada por poetas,

sem esperar ter seu amor correspondido,

de modo igual que o olhar mais indulgente

de uma mulher tem afeições secretas,

pelas quais tantos poetas tem morrido!

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário