sábado, 15 de outubro de 2022


 

 

GÁRGULAS I  (2008)

(Diane Keaton e Woody Allen)


Nasci com o dom da espera dolorosa,

mencionado por Andersen, que leva,

através de longas marchas pela treva

até a consecução da busca airosa.

 

Não significa não possuir vida ditosa,

mas uma longa jornada, que nos ceva

de trabalho, mas demonstra-se longeva:

a espera é grande pela bênção dadivosa.

 

Distante o pote fica ao fim do arco-íris:

precisamos andar muito até alcançá-lo,

mas no horizonte, é certo que reluz...

 

Eu só espero que no fim de meus pedires,

por recompensa, não receba o dote ralo

de um "fragmento da verdadeira cruz"!...

 

GÁRGULAS II  (20/1/2009)

 

Amor é coisa séria.   Já se fala

a seu respeito desde a Antiguidade.

"Roma me tem amor", é bem verdade,

que nossa história repete e jamais cala.

 

Todavia, isso de amor, em tal escala,

é coisa de europeus, na realidade.

Os demais povos pensam, sem maldade,

que amor é bênção tal que pode dá-la

 

somente a divindade: amor a Deus,

amor às artes, amor pela ciência,

amor de mãe ou mesmo amor de irmão. 

 

Mas os dotes de Cupido, cujos véus

lhe cobrem a visão, sem complacência,

não passam de um lampejo de ilusão...

 

GÁRGULAS III

 

Chega o calor e os deuses careteiam

felizes, sobre mim, inafetados

por essa densidão, bem-humorados

(e sobre a Terra os bosques se incendeiam).

 

Outros que a vida no calor semeiam

são os insetos, no verão multiplicados,

as larvas brotam de ossos mil, largados

ao deus-dará e os campos se recheiam...

 

Deuses e insetos... Ficamos nós no meio,

pobres-diabos sem direito a inferno,

ansiando pela brisa, quais sandeus...

 

São os insetos alimento e esteio

para as aves retornadas de outro inverno;

e o Sol dá o bote, feito um louva-a-deus!

 

GÁRGULAS IV – 9 jan 2021

 

Nada queria, afinal.   Só preservar-me,

para manter a longa verborreia

de meus versos estultos, melopeia,

que sem lira, para mim, irei cantar-me.

 

Que sejam versos bons, vou enganar-me;

meus amigos dirão, gentil plateia,

que apreciaram essa medíocre odisseia

e seguirei a mandar-lhos, sem alarme.

 

Mas de que servem tais versos, senão lumes

ajudar a acender...?  Quem eu mais queria

que os apreciasse, nem ao menos lê...

 

Ficam perdidos, mortos vagalumes,

cuja pilha acabou...  Só a fada espia

na mente triste de quem tudo vê. 

 

GÁRGULAS V

 

Pela calha de minha vida algo escorreu:

algum trabalho, não mais do que podia,

alguns amores, não mais do que eu queria;

água servida depois por mim desceu...

 

Sempre aceitei a posição que Deus me deu

da catedral no alto, de onde via

o bem e o mal, quanto nas ruas escorria;

havia ar puro nesse espaço que foi meu.

 

Talvez seria melhor me misturasse,

a partilhar do odor da humanidade,

toda a tristeza, mas também toda a bondade

 

e à torre de marfim então voltasse,

podendo os canos melhor desobstruir,

o meu terraço deixando a reluzir...

 

GÁRGULAS VI

 

Eram as gárgulas pouco mais que calhas,

sobre os cantos esguios de catedrais,

toda a água a recolher dos chuvarais,

para lançá-la às calçadas sem mais falhas.

 

Ou algerosas a captar suas malhas,

quando os terraços se enchiam por demais,

lançando às ruas as nuvens siderais,

sem de Caná tentar encher as talhas,

 

para que fossem em vinho transformadas...

com certa sorte, encher algibe vai,

como reserva para a aridez do estio,

 

sólidas fauces de monstro escancaradas,

alguma parte das quais às vezes cai,

quando em torrente se transforma o fio!

 

GÁRGULAS VII – 10 jan 2021

 

Bem singular essa expressão, “derrame”,

puro efeito de figura de linguagem,

que a gente emprega sem notar bobagem:

corte de galhos é o sentido que proclame!

 

Durante a poda em montoeira então se trame,

antes de ser recolhida essa galhagem,

guardada para o fogo em uma garagem

ou num galpão, antes que o fogo a clame,

 

junto a animais recolhida nos celeiros...

Mas a água escorre em queda vertical,

não se “derrama” ao redor, salvo em repuxo

 

e logo secam tais respingos sorrateiros,

ficando as poças então na horizontal,

ou descendo coleando em novo fluxo...

 

GÁRGULAS VIII

 

Popularizou as gárgulas o Quasimodo,

descrito em francês por Victor Hugo,

de uma corcunda submetido ao jugo,

na Notre-Dame sobrevivendo de algum modo.

 

Sem ter amigos, estabeleceu seu nodo

com as estátuas de granito, em amor rudo,

sem a resposta da boca de um ser mudo,

salvo em vômitos de água como engodo.

 

À sua maneira, tais gárgulas esguias

menos disformes que o pobre sacristão,

perfeitamente servindo à sua função,

 

enquanto ao homem produziram zombarias

da Natureza, quando em si proclama

o direito de troçar da forma humana!...

 

GÁRGULAS IX

 

Conosco ocorre formato semelhante,

a Natureza do exterior boa escultora,

mas do humano interior vil zombadora:

quanta loucura em gargular desplante!

 

Quanto rancor e mágoa nos implante,

que no corpo e na face não demora!

Só após décadas, quiçá, o nosso outrora

Se manifesta em qualquer ruga constante.

 

Mas em geral, é do Sol o resultado

ou então do vento que resseca a pele

e não do bem ou mal no coração;

 

há face lisa de um peito atribulado,

face marcada que feia se congele

de alguém que só demonstre compaixão!

 

GÁRGULAS X – 11 jan 2021

 

Há quasimodos e gárgulas nas ruas,

poucos capazes de demonstrar amor,

corrompidos no geral por algum rancor,

que os corações perfura como gruas!

 

Nem sempre a inteligência em faces nuas

se manifesta, lembra mais santo de andor,

com o rosto indiferente ou a provocar temor,

talvez seus olhos reluzam como puas!

 

Helmholtz tinha o corpo deformado,

na alfândega quase não teve permissão

para ingressar nos Estados Unidos,

 

como cientista a ser depois saudado,

pela sua mente tão só a admiração,

por seu aspecto desprezos incontidos!

 

GÁRGULAS XI

 

As aparências enganam a nós mesmos,

nesse desgosto da imagem especular,

sempre um defeito ali vamos achar

e sem cautela, o mencionamos esmos.

 

A nossos olhos, elaboramos termos

como critérios para alguém nos aceitar

e ditos termos nos vêm atormentar,

provocando para nós mil dias ermos...

 

Não são os deuses que gárgulas nos tornam,

mas o nosso próprio olhar envergonhado,

que de algum modo, é por outrem captado,

 

cujas más emoções mais nos deformam,

talvez mesmo por quasimodos se sentirem,

qualquer beleza ou qualidade a ressentirem.

 

GÁRGULAS XII

 

E retornando à calha, ainda espero

ter os meus dias maus, outros melhores,

iguais doses de prazer e dissabores,

igual que todos, nem um dez, nem zero...

 

mas por velhos defeitos não me altero:

gárgula fui, porém não das piores:

água dos versos, dentro em mim escorres,

de mim lavando o Quasimodo fero!...

 

E assim és tu, não te canses da jornada,

no fim do arco-íris não se encontra nada,

mas há pomares ao longo do caminho.

 

Se foste gárgula, já cumpriste o teu jornal,

sem permitir inundar-se a catedral

e as tempestades transformaste em vinho...

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário