quarta-feira, 4 de outubro de 2023


 

CONTINUIDADE I – 21 SET 2023

 

Dizem que Anchieta escreveu rimas na areia,

Na inspiração de místico momento,

À Santa Virgem, causando o impedimento

Da subida da maré, até findar sua teia,

Mas de outro fato a história nos permeia,

Que Anchieta presidiu ao enforcamento

De um pastor calvinista e o sofrimento

Do infeliz foi concluir, quer-se que creia.

 

Ele o findou, ao puxá-lo pelos pés,

Para partir-lhe o pescoço, finalmente,

Para evitar-lhe a lenta sufocação;

Porém se opunham de ambos as suas fés

E esta ação impediu, coerentemente,

Durante séculos, a sua canonização.

 

CONTINUIDADE II

 

Tempo houve em que as escolas ensinavam

Esse milagre de Anchieta sobre a margem,

Quando seus versos com vigor se espargem

Como verdade em que então acreditavam;

Era o domínio dos padres, que afirmavam

Os mil milagres de cândida roupagem

E nos espíritos criava-se essa imagem,

Pois que dos púlpitos tais fatos se pregavam.

 

Talvez até algum sacerdote por real

Tivesse o fato que na igreja decantasse,

Sem se dar ao trabalho de um exame,

Para a maioria, porém, era vital

Que a congregação em tudo acreditasse,

Mais facilmente controlando o seu enxame.

 

CONTINUIDADE III

 

Passado o tempo, esvaziado o poderio

Da Santa Madre Igreja, outras ideias

Passaram a difundir em epopeias,

Com conteúdo por igual vazio;

Ideologias políticas do mais tolo brio,

A congregar imensas assembleias,

Seus comícios nas esquinas às plateias,

A defender dos políticos o cio

 

Pelo poder, sendo o povo só escada

E qualquer um que pudesse ser sincero

Era englutido pelo estabelecimento,

De suas promessas realizando quase nada,

Na ignorância conservado o povo vero,

Sua liberdade relegada ao esquecimento.

 

CONTINUIDADE IV – 22 set 2023

 

Sempre prossegue o jogo do poder

E as hierarquias a ele sempre adaptavam,

Umas com as outras sempre conspiravam,

Era, afinal, a sua maneira de viver;

E se mesmo futebol ao povo leva a crer

E em qualquer torcida assim se organizavam,

Seus oponentes tantas vezes massacravam,

Qual a surpresa de tal resultado se obter?

 

Os índios viram do alto do barranco

Enquanto as ondas da maré se acumulavam

E de Anchieta o longo poema apagar evitavam,

Porque tinham ao jesuíta como um santo

E não importa que no final fugisse às pressas,

Enquanto as estrofes eram por vagas dispersas.

 

CONTINUIDADE V

 

É muito fácil se reagir como criança

E afirmações aceitar passivamente,

Mesmo o contrário a ser mais evidente,

Guarda-se a crença num assomo de esperança,

A subserviência sendo forma de bonança,

Sobre os versos de Anchieta veio a enchente,

Mas sua batina secou-se no sol quente

E a congregação conservou a sua confiança.

 

Muito mais fácil obedecer que decidir,

Nessas escolhas diárias do momento,

Que por nós sejam prontamente feitas

E fica o povo infantil em seu agir,

Sem o esforço de seu próprio pensamento,

Leis e ordenanças prontamente aceitas.

 

CONTINUIDADE VI

 

Mas como ser criança, sem ser velho,

O tempo deixa para trás todo o futuro

E o passado se integra em sonho puro,

Marcha dolente, como escaravalho;

O tempo é caco, porém, de vasto espelho

E os tempos do presente então conjuro,

Que os tempos do porvir somente auguro

A pouco e pouco a enfrentar seu feroz relho.

 

Por mais que tenha sido o antanho duro,

É o meu antanho e sou sua consequência,

Caso o mudasse, seria outra pessoa,

Talvez fosse uma dessas de quem juro

Seus versos receber em grã potência

E às décadas de suas vidas faço a loa...

 

CONTINUIDADE VII – 23 set 23

 

Mas por mais que vivamos no presente,

É o passado que nos prende pela gola,

Para o porvir nos lança igual que mola,

Todo o atual a nos rugir indiferente,

Que não podemos calar, por mais potente

Seja o esforçado questionamento que o degola,

As esteiras correm e seu piso nos esfola,

Chega o futuro com exigência ardente.

 

Só nos prende, mas sem nunca se firmar,

O que existe é o temporário e o indeciso,

Só o passado a fingir-se de imutável,

A atualidade nada mais que o deslizar,

Em sua premente velocidade do impreciso,

Sem para nós por um momento ser amável.

 

CONTINUIDADE VIII

 

Assim o ato de amor, se começado,

Também corre para trás, inverso rio,

A mente e a alma deixando em corrupio,

Jamais duas vezes o mesmo corpo é abraçado!

Mesmo depois de havê-lo penetrado,

Escorre o tempo do amor em veloz brio;

Quando do orgasmo nos toma o calafrio,

Já é outro o corpo junto a nós deitado!

 

E nosso corpo também se transformou,

Correu seu tempo tal qual correu o dela

Enquanto mútuo acalentamos o calor,

Pois o primeiro instante já passou,

Cada movimento no antanho se encastela,

Nesse passado que congela o nosso amor!

 

CONTINUIDADE IX

 

Não é absurdo se pensar em coisa assim,

Quando estes versos a ler tu começaste,

Para teu próprio passado os entregaste,

Todo o começo a gerar seu próprio fim.

O clímax cega como um toque de clarim,

Mas toda a música de tua vida já escutaste,

Para o passado em inocência a entregaste,

Não podem ré ou dó guardar-se enfim.

 

A escala corre em sete toques de jasmim,

Porém o dó jamais abraça o ré,

Quando um ao outro segue em consequência,

Só um acorde irá adubar o teu jardim,

Mas na memória o conservas só por fé,

Que a melodia é só um sonho de impaciência.

 

CONTINUIDADE X – 24 setembro 2023

 

E quando se recorda o meigo amplexo,

Por mais que mantenhamos nosso ardor,

Já é memória em seus laivos de estertor,

Depositada em qualquer antigo nexo;

Passado o orgasmo, embora o odor do sexo

Escorra ainda das narinas em vigor,

Já se esgotou do ato o seu fervor,

Por entre novas impressões então me vexo.

 

Sempre posso descrever quanto passou,

Porém não posso jamais manter nos braços

Esse momento que se foi e foi sagrado,

Mesmo quando meu sêmen fecundou

E de nova criatura formou os traços,

Enquanto cresce, já faz parte do passado.

 

CONTINUIDADE XI

 

Enquanto cresce, também vai se transformando,

Os biólogos o classificam como gástrula,

Em um instante posterior será a blástula,

Depois amora como mórula se nomeando.

Em libélula poderia ainda ir-se mutando,

Indefinido esse ser que foi gerado,

Para o passado tão depressa transportado,

Célula em células feroz multiplicando.

 

E quando chega o parto em vasta glória,

Guardou o antanho o total da gestação,

Vazio o ventre antes rotundo e tão formoso!

Por isso a ânsia de gravarmos nossa história,

Muito além do que a memória tem noção,

Numa armadilha a tornar o tempo vagaroso...

 

CONTINUIDADE XII

 

A vida inteira não mais que consequência

Do dia morto que em noite se tornou,

Da noite morta que o Sol iluminou,

Das horas duras de perder-se em impotência,

Das horas longas na ânsia da impaciência,

De cada hora de amor que se finou,

De algum desejo que então se renovou,

 Beijos guardados tão só na inteligência.

 

Desses filhos que nascem no passado

E que nos fogem diariamente no presente,

Nessa impertérrita caçada do futuro,

Sem importar que feliz seja ou atribulado,

Pois nada temos nas mãos em firme assento,

Senão esse invadir de um fado obscuro!...  


 

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