CADEADO I (30/11/2009)
(Mistanguett, cantora e atriz do
cinema francês)
Como posso ser feliz, se não estás
comigo?
Se não vejo teus olhos, arqueados de
ameixa,
se a impressão de teus beijos minha
boca não deixa,
se teu ventre não tenho, em favor de
perigo?
E posso ser feliz, no mesmo ideal antigo,
sem teus lábios macios, sem teus
lábios de gueixa,
se teu punho crispado minha carne não
enfeixa,
nessa ânsia voraz, nessa ausência de
abrigo?
E posso ser feliz, sem nem estar
contigo?
Se tuas passas maduras não tenho
entre meus dedos,
se teus pelos de névoa não beijo em
segredos,
se teu ventre colmeia adentrar não
consigo,
nem ouço teu grito de ardores tão
ledos,
que a carne nos templos do orgasmo
persigo?
CADEADO II
Sentimento é uma lagarta no meu peito,
que me rói lentamente o meu pulmão
e que me faz prender respiração
a cada vez que te encontro no meu leito.
E se lá não estás, em meu despeito,
fico a buscar qualquer compensação
na música ou poesia, meu rincão,
em que essa ausência, sem querer, aceito.
O sentimento me devora, lentamente,
e meu próprio interesse assim anulo:
meu coração goteja e não se veda,
porém nutre essa lagarta permanente
e lhe retira os fios de seu casulo,
com que redijo meus mil versos de seda.
CADEADO
III
Estou
a repetir-me. Já te disse
que
meu desejo é que acordes a meu lado.
Há
anos durmo só, neste isolado
mister
de quem persegue quanto visse
de
trabalho a seu alcance e que descansa
o
mínimo que pode... Mas lugar
sempre
busca nos teus braços, sem deixar
de
te querer, em sua revolta mansa.
Por
não achar em ti a compreensão
que
tanto desejava, um ombro amigo
e
não bengala de caule carcomido,
que
em meu labor, não vejo mutação:
não
é outra que quero, somente estar contigo,
buscando
em ti meu único perigo...
CADEADO IV –
25 NOVEMBRO 2023
Depois de te
amar tanto, o tempo foi-se
em que tanto
te amei. Só resta agora
o rancor
desbotado em longa hora,
com que
cortaste amor em aguda foice.
Se amor não
se demonstra, o amor rói-se,
como traça
vicejando em nosso outrora.
Pois te
demonstro ainda, muito embora
suspeite
estar-me expondo a novo coice.
Mas sou
assim: um tolo sem remédio,
que tendo
amor por dar, o distribui,
mesmo que
nada receba em recompensa.
E lanço minha
alegria sobre o tédio
que na tua
alma existe e me compensa
notar que
amor assim não se dilui.
CADEADO V
Amor é fruto de plena galhardia,
que ante o sol se apresenta, exuberante;
amor é um pêssego dourado e fumegante,
perante o sol que assim o evaporaria.
Amor é o seio para mim aconchegante,
que por capricho então me abraçaria;
amor é o colo que às vezes me pedia,
noutro capricho apenas instigante.
Amor não é somente a flor do instante,
em que se perde o ser em serodia
curva mortal, que se move tão depressa,
mas a acolhida paciente do inconstante,
como triste e calada melodia,
que nos chega do passado, sem ter pressa...
CADEADO VI
Amor, às
vezes, é como formigueiro,
que nos
excita por dentro, com ardor,
cada célula
respigando em tal calor,
cada grão que
balança no terreiro.
Amor assim
comicha por inteiro
o coração e comove
o seu pendor,
na alheia
busca por dedos de amor,
alívio único
quando deles me abeiro.
Amor se torna
em perfeita embalagem
para meu
coração tão vulnerável,
a recebê-la
igual que uma garagem
em outro
coração menos friável,
que o recolhe
no meio da paisagem,
em que a
geada o feriria de passagem.
CADEADO VII – 26 novembro 2023
Ter amor é avistar desfiladeiro
que se erga algures na distância
e se procura alcançar em plena ânsia,
rastros de sangue deixando no
sendeiro.
Ter amor é esforçar-se por inteiro
nessa busca composta de cansância
e prosseguir apesar de cada instância
tornar mais longo o alcance
derradeiro.
Ter amor é encarar com um binóculo,
visto às avessas, o espaço a
percorrer,
que só está perto por meio da ilusão.
Ter amor é ver o mundo com monóculo,
um olho míope e o outro a perceber
o amargo fruto que nos traz
desilusão.
CADEADO VIII
Amar é se jogar sem garantia
que esteja firme nessa corda elástica,
num salto de bungee, em
ânsia espástica,
sem cogitar se afinal rebentaria!
Mas lançar-se assim mesmo, numa orgia
de espera e desconsolo, nessa drástica
inversão de um abrasivo, em piroplástica
nuvem escura que nos talvez destruiria.
E mesmo assim, sem pejo, buscaria
o amor achar após a escuridão
e ter o salto sustido na ocasião
em que mais se rebentar pareceria
e surpreender-se, no meio da fumaça
na acolhida desse amor que nos abraça!
CADEADO IX
Amar é entregar-se à exposição
de cada sentimento arboriforme,
mostrar-se ao mundo como ser
disforme,
bufão ridículo em ridícula ocasião!
Mas esse bobo é inspirado por razão
de se fazer de tolo pluriforme
e se mostrar ao rei sempre conforme
a seus desejos, na mais cruel
condenação!
Amor é ser um tolo aos olhos do
objeto
dessa paixão, que nos aceitará,
muito embora o mundo inteiro faça
troça,
na esperança de granjear todo esse
afeto,
sem temor de que o peito quebrará,
mesmo guardando um coração de louça!
CADEADO X –
27 NOV 23
Pois quem ama
só se acha em inquietação
e não se
satisfaz em liberdade,
mas tão
somente encontra saciedade
quando for
preso na gaiola da paixão.
Tem grande
sorte quem encontra aceitação,
mesmo que
seja um gesto de piedade
e é encerrado
por liberalidade
dentro das
grades de outro coração...
Mas quem
frequente entra sozinho na gaiola
e mesmo fecha
por dentro o seu cadeado,
sem ter as
chaves para o abrir de novo,
em vão depois
as duas mãos esfola,
tampouco tem
a chave o ser amado
e nem alpiste
lhe dá para o renovo!
CADEADO XI
Amor é um passarinho que se avança
contra a luz da clarabóia, apavorado:
penetrou num coração despreparado
para a ele receber e assim se cansa,
projetando-se nos vidros como lança
mas sem ter força nem o peso desejado
para tal vidro ver enfim quebrado
e se projeta malferido em desperança!
Já percorreu o inteiro coração,
sem encontrar de amor acolhimento,
sem receber sequer sua simpatia, apenas
e quando alcança afinal libertação,
só o consegue após largo sofrimento,
abandonando nos cacos sangue e penas!
CADEADO XII
Também eu
invadi o seu castelo,
igual penetra
que não foi convidado,
para ver-me
em tais quartos encerrado,
sem encontrar
a luz de meu desvelo...
Piei em vão,
trinando o meu apelo,
sem ter
sequer em seu ombro me apoiado,
mas não
queria sair, por mais magoado,
buscando o
seu amor, porém sem vê-lo!
E não queria atravessar
outra janela,
dando
passagem para ir-me embora
desses
confins de seu vasto coração,
não querendo
ter vida longe dela,
em cada
instante de minha final hora,
sem perceber
que meu cadeado era a ilusão!