segunda-feira, 13 de novembro de 2023


 

 

BOTÕES COLHIDOS I – 31 outubro 2023

(Catherine Deneuve)


Dizem que amor é uma flor e desabrocha

bem fundo nos alvéolos do pulmão,

raiz estende até chegar ao coração,

onde floresce, vermelho como tocha;

toma a caixa torácica por choça,

contudo espia, curioso de emoção,

através de nosso olhar, tonta ilusão,

que raramente o mundo externo endossa;

que amor pode ser breve ou duradouro,

mas sempre é de nós mesmos a extensão,

que há certo egoísmo oculto em cada amor,

seu alvo queremos para ser nosso tesouro

e assim em ciúme se transforma sem razão,

quando o encaramos como posse de valor.

 

BOTÕES COLHIDOS II

Mesmo que alguém nos ame integralmente,

o seu amor engloba igual egoísmo,

nos deseja para si em exclusivismo

e o desaponto lhe chega facilmente;

que o amor mútuo precisa estar presente

de modo tal que não tema algum abismo,

nem se deixe corromper por saudosismo,

que amor real é a devoção mais permanente;

que o mais comum é a emoção se confundir

do amor por outrem com o amor por objeto,

pela pátria, por religião, pela riqueza,

amor de coisas, que não se pode permitir

que seja amor igual ao amor por ser dileto,

amor por carne a ser somente em tal vileza.

 

BOTÕES COLHIDOS III

Destarte amor, essa flor desabrochada

bem no fundo das artérias da paixão,

não se encarcera tão só no coração,

nem se permite por cansaço emurchecida;

bem ao contrário, quem alma encontra amada,

mais do que um corpo, ainda em plena comunhão,

quer seu reflexo ver no olhar de compleição,

enquanto seu olhar reflete a face ansiada.

Mas como é raro se encontrar o que se espera,

que durar possa assim por vida inteira!

Tão somente quando a pétala derradeira

possamos despencar e mergulhar na esfera

de um mútuo olhar compondo nova flor

que nunca murche, mas conserve seu frescor!

 

ESTERNUTARES PERDIDOS I – 1º NOVEMBRO 2023

Minha pobre alma saiu esternutada,

porém segundo espirro não brotou,

sem sua presença o corpo assim ficou,

depois que a alma projetou-se descuidada;

jogou-se ao acaso, sem à âncora enlaçada

e nas traves do teto se agarrou;

em vão a traqueia de novo a convocou,

permeio à poeira ficou desorientada;

quase sempre esternuta-se um segundo,

que para a alma funciona qual farol

e então retorna num voo em caracol,

até as narinas de que veio ao mundo,

para acolher-se em seu pouso necessário,

segura assim em seu antigo ovário.

 

ESTERNUTARES PERDIDOS II

Mas quando o alma segundo espirro escuta,

no caso de ocorrer longa demora,

talvez tenha até adormecido nessa hora

e só desperte ao final de certa luta,

emaranhada no forro como em gruta;

a pobre alma de medo nem mais chora,

crava no teto filamentos como espora,

já desistindo para a final permuta...

Mas se descer com pressa demasiada,

entra na boca aberta, feito um giz

e não encontra as entradas do nariz;

ao invés de encontrar caminho aberto,

tomba no esôfago em destino incerto

e só no estômago descobre-se instalada!

 

ESTERNUTARES PERDIDOS III

É bem verdade que a alma é um ser permeável

e de algum modo encontra o seu caminho,

até chegar, enfim, ao seu cantinho

em qualquer ponto da mente imponderável

e que a sabe recolher, afável,

mas no estômago não tem qualquer carinho,

no suco gástrico encontra algo daninho,

não se corrói, mas se vê desconfortável!

De alguma forma, as membranas atravessa

e vai subindo até seu ninho cerebral,

por mais que o fígado mais próximo a atraia!

Mas se acolher-se em demasiada pressa,

ante as narinas perde-se, afinal,

e em novo espirro é expulsa, como em vaia!

 

CONTRAFINADOS I – 2 NOVEMBRO 23

Nossa vida é como um continente,

constantemente assediado pelo mar,

contra os penhascos protetores a quebrar,

em maremoto às vezes bem frequente,

ou tsunami, qual agora fala a gente,

o seu idioma materno a desprezar,

abarca as praias, vai na vida penetrar,

o enfraquecer a nos causar frequente...

Em nosso orgulho de cunho narcisístico,

nós nos julgamos os seres superiores,

mas os insetos e as bactérias nos devoram;

sem recorrência a qualquer símbolo místico,

os continentes vão perdendo os seus lavores,

a cada embate anos vêm que nos descoram.

 

CONTRAFINADOS II

Um certo dia, as praias são tomadas

e os rios se enchem com cem enxurradas,

é natural que as montanhas desfalecem

e se transformam em planícies areiadas;

o continente é forte em alvoradas,

por certas décadas, os montes até crescem,

os assaltos do mar então se desmerecem,

sobre as areias, as árvores florescem...

Mas dos milênios no eterno recorrer,

onde era mar, projetam-se as montanhas,

do que era terra, as águas se apoderam;

depois os vulcões, suas carnes a fender,

os montes passam, atônitos em tais manhas,

osteoporizados pelas lavas que perderam.

 

CONTRAFINADOS III

 

Mas bom seria que amor nos transformasse

de continentes em praias ou no mar,

de um oceano cordilheiras rebrotar

e que esse amor por milênios perdurasse;

mas bom seria que ao menos nos durasse

por esta curta vida que nos vem tocar,

sem que em cansaço se fosse transformar,

mas que esse tempo até nos ampliasse;

talvez amor nada mais seja que poesia,

no imaginar de tantos romancistas

ou dos aedos da inspiração nas pistas,

um tal amor dois continentes reuniria,

na longa vida de um eterno retornar,

tornados unos pelo amor do próprio mar.

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