quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CEPAS DE LUA


CEPAS DE LUA I

eu sou veículo
tão automático
como a causa incausada cria a Terra
como sem causa o homem cria a guerra
qual bactéria provoca a infecção
retalho fibra a fibra o coração
inquietação          inquietação
quietação          quietação
tração          tração
num tal impulso
se me abre o pulso,
na tendinite dos versos marchetados
pela linfa das feridas consagrados
esses versos porejam como pus
minhas entranhas e nervos estão nus
doce alcaçuz          doce alcaçuz
dos guabijus          dos guabijus
na luz          na luz
e não controlo
o estranho fluxo:
sou como estrela que em brilho se irradia
e se desfaz no fulgor de sua energia
mas caso não brilhar não sou estrela
e pode haver talvez morte mais bela?
e a sentinela          e a sentinela
sob a janela          sob a janela
gela          gela
furado o peito,
o meu fantasma escorre
na multidão do vício solitário
na solidão do ordálio multifário
no dicionário sou ladrão de tumba
mas é a meninge de meu crânio que retumba
e a catacumba          e a catacumba
profunda          profunda
afunda          afunda

CEPAS DE LUA II

você que me lê
falando sobre a morte
não conclua que isso seja obsessão
somente que das nuvens o trovão
nos ronca generoso e coriscante
no seu mapa de foice triunfante
da negra amante          da negra amante
o delirante          o delirante
infante          infante
teimosamente,
se insere a ideia,
não é que eu queira criar um novo norte
nem triunfar sobre azar ou boa sorte
a morte vem e vai nessa sansara
que me completa e que me desampara
sem antepara          sem antepara
compara          compara
e para          e para
eu me sinto obsedado
é pela vida
que mata os sonhos logo que acontecem
que trucida meus versos quando crescem
tenho um patíbulo sobre a escrivaninha
de originais e a pilha se avizinha
do meu telhado          do meu telhado
meio estilhado          meio estilhado
de mau olhado          de mau olhado
e nesta obsessão
eu nunca posso
passar a limpo a vida em que empilhara
tantos planos e projetos nem trilhara
tantos caminhos quantos desejaria
do teto a pilha me canta uma elegia
em romaria          em romaria
de sintonia          de sintonia
fria          fria

CEPAS DE LUA III

em palavras esfarinho
calcários sentimentos
depois de bem ralados tomo sal
ovos batidos manteiga natural
açúcar e canela e faço sonhos
porém não sei fazer saem medonhos
derrisonhos          derrisonhos
risonhos          risonhos
sonhos          sonhos
se justifica até
sua abatumabilidade.
se fossem melhor feitos deixariam
de ser sonhos e concretos se fariam
até quem sabe partejando seus afanos
desenganos          desenganos
haraganos          haraganos
enganos          enganos
se permanecem
porém apenas sonhos
que nem sequer procurem vir à luz
seu recheio polvilhado mais seduz
não se destinam afinal a ser vividos
são sonhos certamente sonhos cridos
sonhostidos          sonhostidos
retidos          retidos
tidos          tidos
pois nunca no concreto
sonho ideal se realiza,
que não passa de um espectro desconforme
projeta lanças de cor e é dardiforme
mas abstrato é o sonho verdadeiro
quanto mais quando apenas passageiro
seringueiro          seringueiro
parilheiro          parilheiro
oleiro          oleiro

CEPAS DE LUA IV

eu sou gaúcho
porque nasci aqui
até experimento simpatias gaúchescas
mas não pelas paixões mais barbarescas
nem churrasco nem canha ou carreteiro
nem mateadas nem tava ou rinhadeiro
busco primeiro          busco primeiro
esse brejeiro          esse brejeiro
cheiro          cheiro
o alecrim me agrada
ou danças mais antigas
como essas que ensinam os cetegês
muito embora naturalmente tu não crês
que dançassem desse jeito nas fazendas
ou vilarejos os peões e antigas prendas
presas nas fendas          presas nas fendas
com tantas rendas          com tantas rendas
e escassas rendas          e escassas rendas
mas os trajos são bonitos
são simpáticos
e ver dançar os pares é agradável
por mais que se perceba inaceitável
que usassem chiripás sobre as bombachas
enquanto mastigavam suas bolachas
esculachas          esculachas
borrachas          borrachas
rachas          rachas
porém é engalanada
essa que mais me agrada
embora às vezes importada da argentina
ou do uruguay junto com a lã mais fina
e os poemas também na surpreendente
inspiração do sul independente
impertinente          impertinente
pendente          pendente
dente          dente

CEPAS DE LUA V

a nova primavera
me esfria o peito
não é que na emoção ache defeito
só em realização sou contrafeito
meu feito é o marechal do rei das águas
gelado o peito me transpira mágoas
desmágoas          desmágoas
em fráguas          em fráguas
páduas          páduas
eu vejo os outros
a tremer de frio
mas nada sinto que assim muito me custe
não há inverno nem frio que hoje me assuste
resisto muito bem sou do minuano
e lembro muito mais feroz arcano
algozarcano          algozarcano
róseo cano          róseo cano
meu dano          meu dano
se tais palavras
te causam arrepio
é porque não amas ao frio nessa total
entrega ao vento e à geada na fatal
saraivada que matou antepassados
e não de balas mas granizos ampliados
implicados          implicados
azarados          azarados
fados          fados
pois muitos mais
morreram de calor
do que de frio ao menos no meu pago
o poncho é fraca proteção mas trago
sem me entregar facilmente aos embates
dentro de mim o calor de meus combates
que açafates          que açafates
em rebates          em rebates
mates          mates

CEPAS DE LUA VI

tabela atômica
tem mais segredos
nem me aproximo dos actinídeos
mais simpatizo com os lantanídeos
porque são raras as rimas que redijo
que o diverso eu torne multirrijo
semirrijo          semirrijo
plurirrijo          plurirrijo
redijo          redijo
são monazíticas
as minhas areias
reserva pátria e tesouro nacional
no poema que redijo é racional
o formato por estranho que pareça
e a métrica não se impede que aconteça
desaconteça          desaconteça
reaconteça          reaconteça
e teça          e teça
em caprichosa rima
existe o ritmo
por mais que te pareça diferente
é apenas variedade simplemente
das poéticas e práticas antigas
em que as palavras constituíam vigas
se não consigas          se não consigas
ter quadrigas          ter quadrigas
usa bigas          usa bigas
apenas um capricho
até diria
querem que o darmstádtio seja ouro
que o rutherfórdio te cause mais desdouro
tão depressa se torna degradado
quanto o unumhéxio será abandonado
e o tecnécio          e o tecnécio
será promécio          será promécio
do aécio          do aécio

CEPAS DE LUA VII

da vida às regras
em breve tornarei
mas por enquanto me afoguei neste formato
que é mais intelectual que caricato
não obstante é o formato da semana
em que posso zombar da forma humana
desumana          desumana
inumana          inumana
irmana          irmana
pois me sinto
decomposto
qual se olhasse para um quadro de miró
em que cada elemento fica só
mas no conjunto é a grande sociedade
sem sentimento e abstrata à saciedade
salacidade          salacidade
lassidade          lassidade
da idade          da idade
por isso digo
que retornarei
a essas regras da vida que determinei
descrever nos cem sonetos que farei
mais coda e comentário caloroso
afinal se meu texto é pretencioso
blandicioso          blandicioso
indicioso          indicioso
cioso          cioso
isso é porque
sempre é escrito
com o mesmo pó de giz de meus pulmões
com o vazio de tantos corações
que me contemplam na incredulidade
de que eu seja o que sou na realidade
da impiedade          da impiedade
sem piedade          sem piedade
seu abade          seu abade
         
CEPAS DE LUA VIII

falo de mim
só para ti
porque ninguém fala mesmo de outro modo
e é pretensioso afirmar com mais denodo
que se fala dos outros só se sabe
o que está dentro de nós e inteiro cabe
menoscabe          menoscabe
nos cabe          nos cabe
e acabe          e acabe
tão só há percepção
da própria sensação
é o que se pode descrever total
é impressão nossa o mundo natural
colorido pelas cores interiores
devolvido para as trevas exteriores
controladores          controladores
traidores          traidores
amores          amores
por mais que finja
ninguém conhece
o que os outros pensam ou que sentem
apenas dizem aquilo que pressentem
irá agradar ou então desagradar
não é o que se diz de fato amar
mas reclamar          mas reclamar
e patamar          e patamar
tomar          tomar
porque não sei falar de ninguém mais
e nem tu sabes que a pretensão jamais
transpõe as pontes sobre tais barreiras
por mais que existam ânsias condoreiras
ou derradeiras          ou derradeiras
seresteiras          seresteiras
esteiras          esteiras
e se redijo
mais uma estrofe
é que não quero esperdiçar papel
que para mim outra estrofe tem quartel
neste rascunho tolo em que rascunho
do testemunho do que eu mesmo testemunho
que estremunho          que estremunho
e com punho          e com punho
eu unho          eu unho

CEPAS DE LUA IX

o que eu desejo
com maior folia
é tocar a estrela que tens no céu da boca
e prosseguir tocando em ânsia louca
até sentir tua língua em minha estrela
que igual cintila embora menos bela
numa organela          numa organela
que me sela          que me sela
e mela          e mela
o que eu desejo
é por o meu boné
para cobrir as estrelas de teus olhos
e descobrir as estrelas dos refolhos
eu quero estar em ti e te cobrir
com meu boné e que possas me cingir
no perquirir          no perquirir
ao referir          ao referir
ferir          ferir
o que eu desejo
sem qualquer pejo
é cintilar ao longo de teu ventre
nesse relâmpago com que teu eu adentre
que trovejemos juntos num orgasmo
de estrelas cintilantes no igual casmo
contra o espasmo          contra o espasmo
de teu espasmo          de teu espasmo
eu pasmo          eu pasmo
o que eu desejo
é que as estrelas
minhas e tuas em só constelação
perdurem no vermelho coração
e no ventre vermelho se incendeiam
nessa fusão que estrelas ressemeiem
contrassemeiem          contrassemeiem
se esteiem          se esteiem
teiem          teiem

CEPAS DE LUA X

quão messiânica
percebo esta certeza
de que fizeste o mundo e me criaste
de que sou fragmento que quebraste
desse teu sonho e me fizeste crer
que fora de ti eu tenha o próprio ser
espairecer          espairecer
padecer          padecer
poder          poder
e quão profética
esta certeza
de que me voltarás para buscar
para de novo em tua carne penetrar
e ser um só contigo estarrecido,
no mesmo instante de ter haver possuído
entretecido          entretecido
tecido          tecido
sido          sido
sonho de aedo
esta certeza
que nem existo longe de teus olhos
penso estar longe só e sou restolhos
dessa luz que irradiaste em pensamento
do qual não formo mais que fragmento
contentamento          contentamento
integumento          integumento
alento          alento
e quão perpétua
a derradeira
mágoa de tudo ser apenas sonho,
que de ti fui no máximo um medonho
pesadelo auricular de frio suor
que gotejei de ti no teu calor
imperador          imperador
exaltador          exaltador
da cor          da cor

CEPAS DE LUA XI

em tuas artimanhas
eu sempre me abandono
na flor-aranha que me martiriza
na hemerocálide dourada que desliza
na teia iridescente que me acolhe,
na malha carmesim da luz sedosa
pundonorosa          pundonorosa
mas ardilosa          mas ardilosa
rosa          rosa
na sorrateira
tocaia que me assombra
essa ariranha que me devora o sono
nessa penumbra que me envolve o devaneio
não me contento com sonhos de permeio
a longas tranças de altiva rapunzel
trago de mel          trago de mel
sutil burel          sutil burel
   favo de fel          favo de fel   
que mais prazer lhe dou do que me traz
que o tempo todo eu sou o mais capaz
de transportar afinal a dupla carga
nos laços mornos da lascívia amarga
descarga          descarga
que alarga          que alarga
a adarga          a adarga

CEPAS DE LUA XII

toda rosa tem botão
mas não tem casa
são as sem-teto de cada jardim
mas têm raízes nesses seus canteiros
todas vestidas de folhas serrilhadas
melhor fechassem as roupas com espinhos
de rosmaninhos          de rosmaninhos
alvos pelinhos          alvos pelinhos
de arminhos          de arminhos
enquanto os cravos
não possuem cravos
tem acúleos o espinho-de-carneiro
e toda urtiga ardimento mais certeiro
mas o mesmo não se diz do coração
inútil rosa presa no botão
sem comunhão          sem comunhão
fechados são          fechados são
frágil razão          frágil razão
doce miragem
não tens espinho
mas rosa inútil és sem dar carinho
nos corimbos da hortênsia se descansa
amentilhos lilás dão sombra mansa
mas de que serve a decantada rosa
pundonorosa          pundonorosa
garbosa          garbosa
airosa          airosa
quando o botão sequer solta perfume
e cada folha é cheia de azedume
ácido lume          ácido lume
te esfume          te esfume
o gume          o gume
ferrenha fechas fina flor formosa
fácil ferida fácil melindrosa
que não se abre
pois não quer ser rosa

CEPAS DE LUA XIII

porém a lua
que não tem casa
vai à casa do sol fazer visita
por hospedagem aos planetas grita
pede as casas ao zodíaco um instante
mas dois quartos ainda tem não obstante
mesmo inconstante          mesmo inconstante
prossegue avante          prossegue avante
argênteo guante          argênteo guante
e assim paga aluguel
a qualquer cometa cor de mel
que risca o espaço em sua luz de gel
ou de saturno se aloja em um anel
ou em júpiter procura seu quartel
talvez em vênus coberta de um burel
de nuvens brancas          de nuvens brancas
da chuva as trancas          da chuva as trancas
certezas mancas          certezas mancas
e vai buscar
entre as galáxias
o véu de andrômeda para se cobrir
as escamas da serpente de perseu
pagando ao sol por acomodações
quando ele ocupa suas outras locações
fortes razões          fortes razões
percepções          percepções
tensões          tensões
e assim componho prece à luz do luar
que já aparece com o sol ainda a brilhar
e vou roubar          e vou roubar
o farfalhar          o farfalhar
sem par           sem par
dos meteoros que caem em minha rua
de joelhos, a minhalma toda nua
que assim flutua
querendo ser o mar

CEPAS DE LUA XIV

mas como a lua
não me escuta as rezas
eu vou fundir um machado de rocio
como forma usarei crânio vazio
e cortarei a árvore do sol
para usar a sua lenha em dia de frio
 fio afio          fio afio
 pio alio          pio alio
 mio espio          mio espio
adio
do vento a semeadura
para colher a tempestade pura
cultivo nuvens qual um algodão
para fazer o forro do edredão
será o luar a enxada de meu eito
com luz de estrelas meu roçado ajeito
       peito a peito          peito a peito        
       preito aceito          preito aceito        
leito estreito          leito estreito
colocarei atravessado
nessa rua
chicotearei meus cavalos contra a lua
em represália do pouco que me deu
farei viagem mais longa que o judeu
errante através toda a terra nua
pua e grua          pua e grua
          jura crua          jura crua         
          vida sua          vida sua         
e cortarei a lua em doze cepas
doze moedas de prata como aletas
metas secretas          metas secretas
         setas excretas          setas excretas         
        poetas pretas          poetas pretas        
os doze meses logo comprarei
sessenta e cinco dias comerei
e outros trezentos
eu lançarei aos ventos

CEPAS DE LUA XV

reunindo as cepas
eu criarei donzela
de cabelos tão negros como a noite
e a pele clara como luz de estrela
sem as marcas da lua em sua procela,
sem a foice da lua em seu açoite
pernoite           pernoite
acoite          acoite
afoite          afoite
far-lhe-ei a corte
do coito à sorte
e a tornarei por todo um ano minha
serva obediente e a mais feroz rainha
possui-la-ei com quanta fúria tinha
até a última gota que sustinha
na bainha          na bainha
a rinha          a rinha
vinha          vinha
vou desgastar
ânsia carnal
nesse seu ventre não mais virginal
a lua é a amante gasta do jogral
mas ainda oferta seus seios generosos
e seus mistérios mais pundonorosos
sonhos formosos          sonhos formosos
perenes pousos          perenes pousos
gozos famosos          gozos famosos
ajoelhada assim por entre as águas
acumulada por seus rios de mágoas
desce a prece          desce a prece
se compadece          se compadece
e a teia tece          e a teia tece
e de novo os doze meses geraremos
até que a lua embriagada de venenos
se afogue na minha alma
em palma e calma

2 comentários:

  1. seu poema é mto especial, assim como seu modo de o construir/expor... parabéns!!!!!!
    felicitações tb pela biografia mencionada ao perfil, William
    tdo de bom/bem pra vc sempre!!!

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  2. william, se deseja postar um fragmento deles ou qquer outra mensagem em meu blog, será mto bem-vindo...

    *add tb o link de seu blog no próprio corpo do comentário...

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