terça-feira, 5 de abril de 2022


 

 

A QUE FICOU I – 31 MAR 22

MYRNA LOY

 

Tua imagem deixaste no espelhinho

quando foste refazer a maquiagem,

antes de ires para qualquer outra paragem:

perante o espelho deixaste-me sozinho.

O que é estranho é esse véu de linho 

que parece recobrir meiga miragem,

meu próprio rosto refratado em aniagem,

que permaneces no prato do cadinho.

 

Por que te foste, não sei bem a razão,

fosse por mim te impediria de partir,

mas era a hora de um beijo sossegar;

ficou no espelho só o verme da paixão

e o teu perfume posso inda sentir

nesse reflexo a tremer sem se apagar.

 

A QUE FICOU II

 

Foi tão casual o refazer da maquiagem,

não para mim, para qualquer estranho,

que te encontrasse sem sofrer acanho,

quando partias em tal veloz voragem.

Certamente só teu abraço de passagem,

não te arriscarias a outro amanho;

para beijar de novo ainda me assanho,

mas só tua face roço nessa aragem.

 

E para maior mal, fica o perfume,

junto ao rosto, no espelho refletido,

só não conserva a carne de teus traços.

Então te foste, transportando o lume,

ficou o vazio em meu olhar sofrido,

ainda no peito o calor de teus abraços.

 

A QUE FICOU III

 

Já não sei aonde estás, longa partida,

que nem ao menos saberei em que cidade,

já te afastaste por pequena eternidade

e só de ti uma ilusão trago na vida.

Mas o espelho aqui está e traz contida

a tua imagem, fosca de luminosidade;

aos outros mais só a mostrar opacidade:

algum diria que o espelho está vencido.

 

Pois não reflete mais os olhos de ninguém,

somente os meus conseguem atravessar

esse teu rosto gravado tão de perto;

face e perfume, que riquza que contém!

Mas não me animo mais a contemplar

e já há anos o conservo recoberto.

 

A QUE CHEGOU I – 1º abr 22

 

Por que, diz-me, vieste ver-me agora,

depois de ausência assim tão prolongada,

até mesmo das lembranças afastada,

por que chegaste a morder-me nesta hora?

Por que surgiste das brumas de um outrora,

após mil anos sob a Lua airada,

sem sequer nela te fazeres espelhada,

como um lêiser a queimar-me sem demora?

 

Por que teu rosto agora se reflete,

e em minhas pupilas como arcano espelha,

por que a meiguice em teu próprio olhar?

Por que esse dardo que meu corpo assete,

quando a memória, já caduca e velha,

no eremitério da mente eu fui deixar?

 

A QUE CHEGOU II

 

Não é dizer que te achasse pelas ruas,

num encontro para o acaso tão casual,

que só te conhecesse bem ou mal,

na multidão indiferente como gruas.

Não é dizer que te achasse nessas luas

de inverno claro como esquivo memorial,

uma súbita visão, meio um conto de Natal,

os teus cabelos desafiantes como puas.

 

Caso assim fosse, poderia até fingir

que não te houvesse sequer reconhecido:

tantos anos, afinal, haviam passado...

Ou então teria a opção de me iludir,

que tua visão não houvesse me assaltado,

dar-te um abraço e afastar-me, malferido.

 

A QUE CHEGOU III

 

Porém não foi assim.  Bateste à porta,

teu rosto claramente avelhantado

e contudo, todo inteiro relembrado,

tal e qual a sepultura solta a morta.

E a tua visão minhalma inteira corta,

como um alfanje surgido do passado,

mal pude te falar, ensimesmado,

nessa minha solidão que então se aborta.

 

Porque vieste ver-me, já nem sei,

mas que fazer, senão abrir cadeado

e humildemente receber-te de meu lado...

O que será doravante não direi,

não sei se emendarás meu coração

ou tão somente um remendo de ilusão.

 

A QUE CONSERVO I – 2 ABR 22

 

São tão falazes as imagens que concebo!

Já era tempo de as deixar de lado;

só o romantismo é que me tem cercado,

são apenas seus conceitos que hoje bebo.

Afinal, de tantas páginas me apercebo,

esses eventos sem ter testemunhado,

fico somente em estupor embaraçado,

queimando a mente qual vela de sebo.

 

Mas eu olho ao redor e vejo tanto

que me desperte amor e desencanto,

essas migalhas a desafiar o meu ardor

e em cada lasca de vida encontro pranto,

que me inspira ainda hoje o verso santo,

como a pureza enganadora de uma flor.

 

A QUE CONSERVO II

 

São para mim essas coisas pequeninas

que crescem de repente no meu peito,

qualquer farpa a me cobrar o seu direito

de lixar os instrumentos de minha sinas;

outros verão essas gotas quais meninas,

a brincar nas pupilas sem mais preito

ou olharão os canteiros no seu leito,

sem atentar no alaranjado das boninas.

 

Mas eu não sou assim, o mundo em volta

continuamente afeta minha quimera

e de minhalma requer satisfação,

inspiração que nem sequer me solta,

até o momento de sua hora mais severa,

quando os suores por meu sangue trocarão.

 

A QUE CONSERVO III

 

Ainda hoje me regozija essa tortura,

que me impele a levantar de madrugada,

que me interrompe qualquer tarefa alçada

e a luz consome nesta afeição escura.

E se o ímpeto constantemente me perdura,

até que a estrofe se exiba recortada

de um trecho de minha carne e assim colada

em folhas de cartão, de forma impura.

 

Porque apesar de quanto tenha feito,

quase nunca me envolve a perfeição

que alimenta o meu desassossego,

sempre a linfa perlada de meu peito,

escravo pleno desta dominação

que para a vida verdadeira me fez cego.

 

 

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