domingo, 24 de abril de 2022


 

 

CLEPTOESPELHO I  (12/4/22)

 

A cada vez que te olhares ao espelho,

metade dessa luz é refletida

e assim vês a tua imagem conhecida,

ao contemplares a figura nesse velho

 

artifício que a vaidade, há tantos anos,

inspirou inventar...  Porém, metade

da luz que vem de ti, na realidade,

é absorvida pelo vidro, sem que danos

 

aparentes te cause.  Mas só vês parte de ti,

a outra parte nos meandros se dispersa

porque o espelho te corta pelo meio.

 

Então, evita de olhares no seu seio.

Eu já olhei demais e assim perdi

essa metade que em vidro foi conversa!

 

CLEPTOESPELHO II

 

E se te olhares em bacia, novamente,

fica essa imagem na água dispersada;

até é possível ver tua face confirmada,

se não moveres a vasilha de repente;

 

teu coração se confundiu no recipiente:

não só a água, mas a onda provocada

rouba teu rosto de forma inesperada:

foi-se o teu antes, em círculo imanente.

 

Podes dizer que a água, bem depressa

se tranquiliza e devolve a tua feição,

mas é deste novo momento esta visão.

 

Aquela imagem primeira inteira cessa,

toda roubada por tal agitação,

talvez no fundo da bacia algo se esqueça...

 

CLEPTOESPELHO III

 

E se mirares sobre as vistas de alguém,

especialmente de quem tenhas confiança,

parte de ti se rouba sem tardança:

algo de outrem receberás também,

 

que a vida é assim.  Os olhos de ninguém

que te atreveres a fitar trarão bonança,

mas se olhares quem te fita como lança,

nada devolvem como troca de teu bem.

 

Cada olhar que se capta é um ladrão,

por mais que seja inocente de atitude

e que, de fato, nada queira se tirar,

 

mas é mecanismo isento de afeição,

sempre tua imagem em tal vissicitude,

será extraída para nunca mais voltar.

 

CLEPTOESPELHO IV – 13/4/2022

 

Quando olhares para alguém, roubas também

essa imagem de luz como um reflexo;

para teu imaginar trazer seu nexo,

ali guardado, para mal que seja ou bem.

 

E se te agrada o que então viste em alguém,

para teu coração vem tal amplexo,

de certo modo, a influenciar teu sexo,

por essa parte feminina que te vem,

 

ou pela parte masculina, que contém

agora inteira teu olhar cleptocrata,

entrelaçadas nossas vidas sem querer,

 

ainda que seleciones o quanto se retém,

todo o restante se classifica em hora e data

dentro de ti se arquiva, até mesmo sem saber.

 

CLEPTOESPELHO V

 

Mas é importante saber que, no geral, se perde

tão só o reflexo da luz em nossa pele:

não é nada que um mau desino sele,

nem a genética carga que se herde.

 

E afinal, cada instante que se guarde

de tais reflexos, só se espera que congele

no interior da mente e ali se atrele

aos milhões de seus afins sem mais alarde.

 

Mas quando olharmos para o olhar de alguém

que é realmente importante para nós,

os pais, os filhos, os demais parentes,

 

ou algum par que em nosso íntimo se tem

como importante para se seguir empós,

já os reflexos se vão trocar incandescentes.

 

CLEPTOSPELHO VI

 

Porque agora não é mais a luz do Sol somente,

mas essa lâmpada que se acende no interior

e nos transmite ricamente o seu calor,

enquanto nós o transmitimos igualmente.

 

Filhos do Sol nós somos, realmente

e nosso olhar so capta o astro-senhor,

mas nossa mente já rouba outro fulgor:

amor se busca no ideal subjacente.

 

E que seria de nós se não houvesse

esse furto de amor pela visão,

nossa entrega de vigor nessa ilusão,

 

essa relíquia que não depende só de prece,

mas que se adora quase inocentemente,

enquanto o incenso se queima lentamente...

 

CLEPTOSPELHO VII – 14/4/2022

 

E assim arquivamos tais momentos,

marcados por anseio e por carinho:

são retirados para os lados do caminho,

em relicários de veludosos pensamentos;

 

guardam-se todos quais se foram condimentos,

para aplicar numa receita, qual cominho,

como orégano e açafrão, panos de linho

como um sudário do antanho em seus portentos.

 

Se então houver entre nós separação,

se a vida ou se a morte trouxe o guante,

fica ali dentro amortalhado esse tesouro,

 

cada lembrança um fragmento de emoção,

um memento qualquer que nos garante

que algo de outrem conservamos sem desdouro.

 

CLEPTOSPELHO VIII

 

Olhando para dentro, damos graças

por todo o saque que de outrem furtamos,

suas imagens inteiramente recordamos,

mas as vivências são o que mais abraças.

 

Nos relicários de diorita é então que caças

cada dia e cada hora que roubamos.

Talvez se foi, porém sempre a guardamos

E nesses véus de teu passado então te enlaças.

 

Mas será que essa metade assim perdida

levou de nós um tesouro semelhante

ou perdeu tudo de nós nessa sua ausência?

 

Tal questão não posso dar por respondida,

porque o tempo do amor seguiu adiante,

sem respostas para nos dar em complacência.

 

CLEPTOSPELHO IX – 15/4/2022

 

O cleptoespelho é até menos complacente:

não nos devolve o que de nós levou,

que em alguma face de vidro se tornou,

imiscuído entre as feições de tanta gente;

 

também a água da bacia é indiferente,

nesse momento em que se derramou:

foi para o esgoto o quanto nos roubou,

apenas nos mirou, foi-se igualmente.

 

Será que esse fio de água misturado

com outros tantos mil regatos ainda pode

conservar um fragmento de teu rosto?

 

E se o conserva, até que ponto é partilhado

com os demais turbilhões a quem acode,

durante as longas ausências do sol posto?

 

CLEPTOSPELHO X – 15/4/2022

 

Pois vou buscar algumas horas no passado,

que guardei em mil caixinhas de memória;

estão trancadas de forma peremptória,

bem firmemente tudo foi classificado!

 

Tantos dias que perdi, desanimado,

mas que não desperdicei de forma inglória:

fui recolhendo tais segundos como escória,

para os guardar em escaninhos, com cuidado...

 

Essas horas, se as trouxer para o presente,

podem tornar os meus dias mais compridos

para o registro de pensamentos desabridos.

 

Mas não posso ir ao passado, simplesmente,

ao recobrar de minhas horas seus abraços,

terei de trocar-lhes os tempos por espaços.

 

CLEPTOSPELHO XI

 

Alguma coisa alcançarei dessa maneira,

que meu passado no tempo não é achado,

mora em espaço e deverá ser recortado,

para seu tempo congelar sobremaneira,

 

mediante pua e uma sovela furadeira,

lá de dentro de minha mente congelado,

conseguirei destacar um sonho alado,

que então perdi, trazido assim à beira

 

pela sovela, que o passado como pua

perfurar vai, todo está dentro de mim,

não é preciso procurar mais nada assim.

 

Só empregar a memória como grua,

feita presente em alterna realidade,

sem que o tempo percorra mais a eternidade.

 

CLEPTOSPELHO XII

 

De fato, se roubei com minha visão

essas memórias de ti, eu as conservo;

são para mim somente que as reservo,

são combustível para meu velho coração.

 

O que eu queria era fazer a captação

dessas memórias de ti em alheio acervo,

que te furtaram.  No meu íntimo ainda fervo,

sei impossível ser tal recuperação.

 

Do mesmo modo que entrar não poderia

no teu espelho para cleptar de ti

as cem imagens que sua prata congelou

 

e muito menos recobrar de uma bacia

essas figuras que jamais eu vi

e que por certo a simples água nunca amou.

 

 

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