quarta-feira, 9 de novembro de 2022


 

 

CRIMES SEM SANGUE I (2008)

(Sheena, a Rainha das Selvas, Anos 50)

 

Se a água vem de Deus e o seu batismo

não necessita das mãos de sacerdote:

também o sangue transmite arcano dote,

e seu derrame traz da vida o niilismo,

mas não se mata a água em algum modismo,

ela escorre simplesmente para o lote

de outras águas, talvez em vasto bote

de uma cachoeira a lançar-se para o abismo,

mas não se mata a fonte ao se beber

e não se corta o rio ao se nadar,

nem a água da torneira a mão extingue;

cortado o ramo, seiva e linfa a escorrer,

nenhum jorro de água a se cortar,

se impede apenas que sobre a relva pingue.

 

CRIMES SEM SANGUE II 

 

O sangue é água vermelha em estiagem,

que à nossa vida a biologia indica,

ao osso anima e à carne purifica,

água roubada pela força da voragem,

da água a vida sempre quer tirar vantagem,

o sangue ferve e a água o purifica,

a artéria flui e o coraçao repica,

mas toda a água foi roubada da paisagem,

crimes sem sangue com egoísmo se comete

e por mais que a devolvamos para o chão,

por mais que seja trocada com frequência,

retorna a agua e a vida nos promete,

crime sem sangue em perene comunhão

com a água virgem a aguardar-nos com paciência.

 

CRIMES SEM SANGUE III

 

Tudo depende do conceito de voragem,

se da vida individual se faz questão

ou se o que importa é o imenso turbilhão

da vida inteira em sua imortal viagem,

se as vidas surgem do corpo em brotação

e no momento da dispersão se espargem,

seus elementos a ressurgir em cada vagem

e nos microorganismos em franca erupção,

se for a vida da alma o resultado

e passe a vida assim a um outro plano,

retemperada por qualquer reencarnação,

quando a consciência será posta de lado,

com todo o orgulho do animal humano,

para expandir-se em nova geração.  

 

CRIMES SEM SANGUE IV

 

E quando o sangue se asperge em rubras gotas

sobre as calçadas ou vertido numa pia,

que diferença ao universal faria

essa dispersa multidão de hemácias loucas?

Quantos micróbios se nutrem dessas poucas

luzes vermelhas tombadas na bacia,

nuvens de espuma o calor que se perdia,

como pagando de um holocausto as quotas?

Não existe assim ato pródigo, afinal,

somente impera sobre nós termodinâmica,

a vida inteira sendo um círculo fechado,

dentro do qual cada um é comensal,

nessa serpente que conserva a sua dinâmica,

com o rabo entre seus dentes bem firmado.

 

CRIMES SEM SANGUE V – 7 NOV 22

 

Melhor será então doar-se à terra,

no barro feito de umidade e areia,

decomposição mais rápida se esteia,

o corpo morto em mil vidas se encerra,

melhor ainda que se creme a veia

e seja a cinza esparzida nessa guerra

entre as dunas e o vento, sem emperra,

absorvida na paisagem que a permeia,

não encerrados os corpos em caixões

ou ataúdes em escuras catacumbas,

que é um crime cometido, com certeza,

crimes sem sangue de tantas multidões,

amortecidas no gelo de suas tumbas,

como múmias ressequidas de avareza.

 

CRIMES SEM SANGUE  VI

 

Querer que as almas corram ao Paraíso

ou que sejam no inferno encarceradas,

ou nesse limbo de espera conservadas,

é novo crime executado em pouco siso,

é furtar ao Devashan o seu juízo, (*)

que sejam outra vez experimentadas,

até estarem afinal purificadas,

após mil gerações sobre o chão liso,

pois qual a lógica de um castigo eterno

por uma vida que durou vinte anos,

que raramente ultrapassa seus oitenta,

que Criador forjaria um mundo externo,

para povoar com a insensatez de humanos,

que qualquer crime tão facilmente tenta?

(*) O lugar de aprendizado e escolha entre as vidas.

CRIMES SEM SANGUE  VII

 

Dante  Alighieri colocou Paolo Malatesta

e Francesca da Rimini em seu inferno,

porque somente uma vez, em dia de inverno,

trocaram um beijo de amor em breve festa;

até Alighieri afirma e não contesta

que não fizeram  nenhum sexo externo,

embora o desejassem em seu interno

e o pecado da cobiça assim os infesta;

Giovanni Malatesta, o assassino,

que apunhalou então esposa e irmão,

foi parar em um inferno mais profundo,

crime de sangue tornou justo seu destino,

mas um castigo de tal desproporção!

Seria um único beijo assim imundo?

 

CRIMES SEM SANGUE  VIII

 

Por certo seres humanos Deus criou,

mas foram eles que criaram o inferno

e até imaginaram o Rei do Averno

como um arcanjo que do bem se desviou,

pois afinal, tanta maldade se encontrou

em nosso mundo de pecado eterno,

que um castigo que dura sempiterno

para ímpios e réprobos se determinou;

mas é claro que são os nossos inimigos,

ou mesmo aqueles de quem temos inveja

que são lançados a essas profundezas,

enquanto destinamos os amigos

e a nós também, quando a morte nos enseja,

para gozar de paradisíacas belezas...

 

CRIMES SEM SANGUE  IX – 8 nov 22

 

Porém existe um crime mais sangrento

e que consiste em sufocar as emoções,

sem revelar a outrem as paixões

que nos percorrem em nosso sofrimento;

é assim que se trucida o sentimento,

que coagula em nossos corações,

vida após vida em tais sepulcros pões,

crime sem sangue é pó de um juramento.

Se assim ocorre, somos todos assassinos,

executores a mastigar filosofia,

quando podamos os excessos de lamentos,

os campanários a dobrar os sinos

por cada velha e defunta fantasia,

que procuramos exilar dos pensamentos.

 

CRIMES SEM SANGUE  X

 

Mas que dizer, quando se faz o oposto

e se expõe os sentimentos sem mais pejo,

quando se anseia manifestar desejo,

quando se queira proclamar desgosto?

O que fazer, quando nos é imposto

pela vida o opróbrio de um ensejo,

quando se vê perdido o puro almejo,

quando se falha em quanto se há proposto?

Expor ao mundo não será sacrificar

os sentimentos à alheia zombaria,

crimes sem sangue, cometidos a granel,

ante os alheios que irão nos desprezar,

ainda que igual sofressem algum dia

e disfarçassem em prazer sabor de fel?

 

CRIMES SEM SANGUE  XI

 

Sempre nos resta certa escapatória,

o transformar em arte nossa dor,

crimes sem sangue cometidos com amor,

quadros a óleo ou poemas sem história,

quer seja o verso anônima vitória,

ao se pintar de outrem o esplendor,

que se pretenda não ser nosso vigor,

ou que se finja não ser estranha glória

e ao ler os versos, quem se identifica,

como pode saber se esse escritor

alguma vez sentiu o que escreveu

ou se essas juras de amor por que suplica

foram somente o resultado do fervor

de breve instante de ilusão que o acometeu?

 

CRIMES SEM SANGUE  XII

 

Talvez não passe o poeta de açougueiro,

um magarefe sem sangue nos seus dedos,

crimes narrando sem quaisquer segredos,

mesmo inventando algum crime mais certeiro,

sacerdote oficiante em alvissareiro

altar para o holocausto de seus medos,

oficiante da morte em sonhos ledos,

um falso intercessor, mau conselheiro?

E mesmo assim a fazer versos me atrevo,

não pinto a óleo as unhas deste sangue,

que é menos rubra a tinta que ora emprego,

crimes sem sangue que na minha alma levo,

a despertar no coração exangue

a mais perfeita imagem para um cego!

 

 

 

 

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