sábado, 14 de janeiro de 2023


 

 

sangue coagulado  I  (8/2/2009)

(Fat Wray, na famosa cena de King Kong)


 

partiu a morte, num avião a jato

para não mais voltar e nem sequer

encontrarás seus restos ou qualquer

peça de roupa, ao menos um sapato.

 

sumiu assim, no seu maior recato,

em cremação sutil, como quem quer

evolar-se para sempre, luz-mulher;

suas cinzas peço ao vento, em desacato.

 

perdeu-se pelas nuvens, pura flor,

os fragmentos fizeram-se botões

e fecundaram as algas pelos mares.

 

e nem desceu do céu, por tanto ardor,

consumida num lago de emoções,

acrisolada no espanto dos pesares...

 

sangue coagulado  II

 

a morte serve como roupa feita

ou sapatos escolhidos à medida.

(quando nos vamos, ainda têm guarida

nos guarda-roupas, em poeira de desfeita.)

 

a morte nos aguarda e nunca peita

aceitará para apressar a lida;

(nunca nos leva antes, desmedida

que seja a ânsia da alma em ser aceita.)

 

porque a bênção final dessa sentença

que, mais cedo ou mais tarde, nos é dada,

recompensa não é e nem castigo

 

pelo que aqui fizemos, mas há crença

de que a ampla extensão desta jornada

provém de culpas no celeste abrigo.

 

sangue coagulado III

 

tenho pena de mim.  não do que sou,

mas do que fui.   de quem andou perdido,

pelas termas do medo.  mal-querido,

o menino solitário, que tomou

 

para amigos os livros que ganhou,

as figurinhas dos álbuns, o incontido

combate de soldados de papel, mantido

sobre o assoalho do quarto que habitou.

 

como de scrooge, foram meus companheiros

os personagens dos livros de aventuras,

televisão não havia ou fliperamas.

 

acostumado a ser mal visto por terceiros,

protestando e perseguido por loucuras,

desajustado como um peixe sem escamas.

 

sangue coagulado IV

 

desagradável será ler o que escrevi

sobre este fundo impresso.  todavia,

se me esforçar, a lembrança deixaria

da vida antiga, o mais claro que puder.

 

pois foi difícil.   toda a vida convivi

com duras marcas que meu pai fazia,

por religião ou política eu sofria,

sem por quaisquer delas me prender.

 

talvez devera ter brigado com meu pai,

fugido para longe, até com fome

e sem conforto, criado a própria imagem.

 

mas quem na timidez tão forte vai,

de contemplar o mundo se consome

e perde a morte por falta de coragem!...

 

sangue coagulado V

 

já sei que não virás.  passou-se o dia

em que podia te esperar... e nada!

nem sequer uma desculpa esfarrapada,

para atenuar a ausência que sofria...

 

não duvido que quiseste o que eu queria

e que algo te impediu esta jornada...

sei que a distância daqui à tua morada

é a mesma e visitar-te eu poderia...

 

contudo, te esperei.   plena certeza

eu tinha inicialmente de tua vinda,

que o adiamento aos poucos diluiu...

 

até tornar-se presença de aspereza,

na solidão que sei não será finda

pela esperança que hoje me fugiu...

 

sangue coagulado VI

 

posso dizer somente que a esperança,

mais uma vez, mostrou-me sua ironia,

por tudo que, no antanho, prometia,

e por nada que meu presente alcança.

 

fiquei sozinho, sem pagar fiança,

fazendo amor com a saudade e a nostalgia,

que não eram as amantes que eu queria,

mas  que me são fiéis desde criança.

 

quem eu queria não chega e sinto mais

essa incerteza que provém da ausência,

do que essa ausência que surge da incerteza.

 

para embarcar na galera do jamais,

eu remarei, talvez com imprudência,

na busca inútil de outro sonho de beleza.

 

sangue coagulado VII – 14 janeiro 2023

 

dizem que quando Deus chama os pequeninos

(narra a escritura que deles é o reino dos céus)

é que os queria receber sem escarcéus

de seus pecadilhos quais tinir de sinos.

 

eram não mais que travessuras de meninos,

de sua inocência no rasgar dos véus,

para da terra serem presos nos mundéus,

até cumprirem seus castigos peregrinos

 

e completada assim sua leve pena,

de novo convocados esses anjinhos,

para essas nuvens do páramo celeste.

 

é de supor então que essa maior condena

da longa vida seja aplicada aos diabinhos,

que se portaram nos céus igual que peste!

 

sangue coagulado VIII

 

minha vida é longa, sem ser demasiada,

mas a saúde certamente indica

o tempo em que alguém por aqui fica,

sua infração talvez mais desusada;

 

não resta dúvida que a memória alada

da juventude algo no mundo implica,

que o perpassar dos anos só complica,

em afecções e dor de alma penada.

 

penso que os anjos hoje evitam esta terra,

por acharem se achar mal-assombrada

e apenas passam por jardim de infância

 

para apanhar os traquinas que ele encerra

e devolverem cada asinha retirada,

sem se envolverem com adulta intolerância!

 

sangue coagulado IX

 

talvez até cumpram deveres comunitários

os pobres anjos condenados a apanhar

as almas de meia-idade a suspirar,

entes mais velhos, em viveres sedentários.

 

só os imagino a tropeçar nos mobiliários

de cada ala de hospital, sem adejar,

pelo temor dos suportes derrubar

que pinguem soro para velhos salafrários.

 

pobres anjos, a respirar sujo miasma,

a desprender-se dos corpos ressecados,

muito mais que os humanos malodores,

 

ao remover de certa alma o cataplasma,

que ainda se prende aos ossos afinados,

depois de nove décadas de horrores!

 

sangue coagulado X

 

que fazem eles, quando encontram coagulada

a triste alma, numa rede de plaquetas?

teriam tais anjos estojos de provetas

para limpar essa alma aprisionada

 

nessa rede que por ela foi traçada,

que não pode dissolver, talvez lancetas

para os pecados capitais, poções secretas

quem deem aos crimes venais água sagrada?

 

ou trarão tais tristes anjos bisturis,

com que cortar os laços resistentes

a que se prendem tais sobreviventes,

 

temendo a punição dos atos vis,

na preferência de sofrer anos a fio,

porque na terra talvez seja mais frio?

 

sangue coagulado XI

 

talvez ali encontrem uma “pulga superior”

para escolher quem irá ao “pulgatório”?

ah, perdão, quem irá ao purgatório

para pagar por um pecado bem menor?

 

e quem morrer assim nesse ostensório,

num acidente após queimar parte maior

do corpo e mesmo dalma seu candor,

não fruirá de antemão desse cibório?

 

pois só imagino qual ofensa eu cometi

para que tenham me jogado aqui

tendo a aguardar longo prazo no futuro!

 

quiçá ainda passe por viver eterno,

nessas agruras do fervor do inferno,

quando o verão já me parece ser tão duro!

 

sangue coagulado XII

 

não, meus amigos, de mim não tenham pena,

a minha vida presente é confortável,

não bem o que queria, contudo é aceitável,

muito melhor que o temor de tal condena...

 

pois aprendi, afinal, ao assistir de cada cena

que descreveram de um inferno condenável,

uma outra ideia bastante suportável

que seja mesmo aqui essa sua arena...

 

tenho mantido o sangue bem fluente

desta minhalma amortalhada em ironia,

minhas certezas totalmente indefensáveis...

 

mas se deixei coagulada a alma luzente,

tudo ao contrário de meus ideais amáveis,

cantarei no cruel coro minha própria zombaria!

 

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