segunda-feira, 21 de agosto de 2023


 

 

luar de giz I  (2007)

(Maria Caniglia, cantora lírica)

 

o meu amor por ti é qual farinha

de maçãs e de rubis, em torvelinho:

nessas migalhas, o verso é tão mesquinho

como os favores de quem jamais foi minha,

 

que adeja sobre mim qual avezinha

e somente me larga, pequeninho

o dom de uma só pluma de carinho,

que lentamente ondula e se avizinha.

 

mas essa pluma multipliquei, por certo,

com a força do amor que em mim jazia

e até me engambelei, tão grande ao vê-lo,

 

que fosse retribuído e viesse perto

da potência do sonho que eu havia

esmerilhado em toque inútil de desvelo.

 

luar de giz II  (10/10/2009)

 

como a concha, eu peneiro meus pesares

para escrever meus versos de serragem:

são migalhas de jóias, em miragem,

maravalhas de ideias meus cantares

 

que lanço ao mundo, tremulando em mares,

merengue de ondas faz essa contagem:

é doce e leve em sua pabulagem,

apenas solta ao vento, em seus azares.

 

tal como a concha e forjado em proteção,

groselha e açúcar-cândi em mim se enleiam,

sem esperar por aplausos ou por vaia,

 

nessas camadas de giz do coração,

que logo esquecem os que talvez as leiam,

espalhadas nas areias de uma praia.

 

luar de giz III

 

essa concha enterrada na areia, quais os mares

que me trará a memória?  por onde terá andado?

em que praias distantes terá se acasalado

o molusco que a forjou em seus pesares?

 

de que barcos ouviu de marujos os cantares

e foi em quais recifes cruéis dilacerado?

traz visões derradeiras de cada um afogado

que aos crustáceos e peixes forneceu manjares?

 

e agora se lança essa concha ante meus pés,

dançando iridescente em branco e madrepérola,

no abismo interior das volutas, tal caver-

 

-na no insondável reluz das mais perdidas fés,

a invocar pensamentos assomados em pérola:

cada concha na areia ossos sendo de um cadáver. 

 

luar de giz IV – 7 agosto 2023

 

vozes ocultas em cavernas frias

se expressam por minha boca e me fraturam

os dentes... ao zunir da brisa rouca,

que feroz sobe enquanto cantos juram

 

de amor e ódio, de paz e de agonias,

em que tantos sentimentos se misturam:

quando uma voz se expande, outra se apouca,

mas todas por minha língua se apressuram.

 

são vozes mortas, que nem têm garganta,

apenas me utilizam... mensageiro

que sou: receptáculo para mortas vozes

 

que nem sequer nasceram... e me espanta

não ser mais que um navio sem timoneiro,

em busca de rios secos desde as fozes.

 

luar de giz V

 

longe de ti, não sou... mero protótipo

do homem que já fui, não um projeto

de vigor, na plenitude desse afeto,

deixado para trás, o meu fenótipo

 

me condenou.  perdi todo o meu genótipo

que não usei em ti.   meu esqueleto

tornou-se frágil como o desafeto

de atritos e de espantos.  sou andrótipo.

 

que a ausência sobre o crânio polvilhasse

fel de amargura e que esta vida achasse

um nono acorde, desafinando o hino...

 

dedicação à arte é vão trabalho,

ave sem asas a que sacode o galho

e o abandona à gravidade do destino.

 

luar de giz VI

 

existe em mim o nono tom da escala,

a sussurrar nos acordes da trombeta;

que sopre o búzio de expressão secreta,

nele meu hálito perdura e não se cala.

 

existe em mim cada acorde que se empala

nas quiálteras e mordentes como agrura,

arpejo solto, perdida a partitura,

cone calcário que sob os pés estala.

 

existe em mim toda a estalactite

que me ameaça do fundo da caverna,

junto da alma retorcida de uma avenca,

 

na busca eterna por estalagmite,

secular nas volutas em que aderna

até tornar-se em chão, quando despenca.

 

luar de giz VII – 8 agosto 2023

 

existe em mim a oitava cor do arco-íris,

quando em irídio de puro furtacor,

o sol se afasta, gemendo do calor

que a terra exala, qual imenso pires.

 

existe em mim a lenta voz de osíris,

no julgamento final do pecador,

mais que uma pena pesa cada dor

do coração, quando arrancado o vires.

 

existe em mim o canto da borrasca,

salgado aroma de toda a maresia,

quando a dolçura se embate contra a areia

 

e o vinho pobre da obscura tasca,

que só ao marinheiro embriagado

no fígado corrompido se incendeia!

 

luar de giz VIII

 

existe em mim o som dos asterídios

de cinco asas, marinhas borboletas,

que me vieram abraçar, nada secretas

suas intenções, famintas como ofídios.

 

existe em mim o som dos genocídios

dos pescadores de arrastão, completas

conjugações das redes indiscretas,

restos mortais deixando para afídios

 

os cem descartes lançados sobre a areia,

ante as gaivotas em feroz competição

com tais formigas de vasta multidão

 

e mesmo os caranguejos em peleia,

sem se dar conta que na briga feia,

muitos acabam por tornar-se em refeição!

 

luar de giz IX

 

existe em mim o ardor celenterado

ds mães-d’água em venenosos filamentos,

restos esparsos de corais pulverolentos

e a fome antiga do tubarão malvado,

 

elasmobrânquio totalmente celerado,

que em tudo pensa achar mais alimentos;

das baleias e golfinhos os portentos

que hospeda o mar por eles navegados.

 

mas aqui estou, refém da tempestade

que me lançou à praia sem alento

e quem me vê, presume ser vazia,

 

morto o molusco que me deu vivacidade,

não mais que casca e externo tegumento,

caravela de giz que aqui jazia!

 

luar de giz X – 9 agosto 2023

 

mas quando  eu mordo a polpa do luar,

cremoso véu nas noites enuveadas,

crisol de prata das farpas laminadas,

raios de  cólera para me atravessar,

 

eu guardo em mim o frescor do verde mar,

dos macaréus os capelos apressados,

das ondas mansas os esforços ritmados,

cada marola mil ventos a enrolar.

 

conservo em mim o tridente de netuno,

das espalmadas patas o marchar

quando seu carro buscam empuxar

 

e só a mim mesmo no final me puno,

na praia rolo sem me proteger,

até que humanos me venham recolher.

 

luar de giz XI

 

e então me guardam como seus enfeites

e me encostam aos ouvidos firmemente,

ouvindo o som do sangue seu fervente,

embevecidos no engano dos deleites

 

e assim eu me conformo em tais aceites

e finjo ser um mar sobressalente:

dansei nas vagas em bailar frequente,

dos tritões azuis recebi beijos de azeites.

 

não só o arauto de posêidon me soprou,

mas sobre as vagas me tornei escuna,

meus marujos eram pequenos caracóis,

 

um hipocampo meu leme manejou,

a minha vela cinza alga tece e enfuna,

impulsionada por auroras de mil sóis.

 

luar de giz XII

 

mas é de noite que mais posso navegar,

presa no cinto esmeralda das sereias,

de cada peixe a superar as veias,

o canto delas provém do meu sonar

 

e guardo assim cada gota de luar,

entranhada no fundo das enleias,

minhas bordas protegidas por ameias,

castelo de âmbar no meu crepitar.

 

calcário e gesso, com outros elementos,

cada nuance requerendo a adoração,

em cornucópia transformar-me quis,

 

toda a abundância a distribuir dos ventos,

mas ouro e jóias não ponho na tua mão,

só as mortas conchas de um luar de giz!

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