quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024


 

 

CACHORROS E BICHANOS I – 23 FEV 2024

 

Nossos cães vivem bem menos do que nós,

De forma igual os gatos, por mais belos.

Tais criaturas insensíveis aos apelos

Talvez escutem bem mais estranha voz.

Já os cães nos seguirão até a foz,

Como afluentes a rodear nossos castelos,

Por instintos imemoriais os seus desvelos,

Fiéis a um Alpha, mesmo se mostre algoz.

Alguns milênios já nos acompanham

Tais lobos mansos, companheiros de caçada,

Que amor nos dão, mesmo sem receber nada,

Mas é amor mesmo que seus donos ganham?

Ou assim chamamos por antropomorfismo?

Quando deparo em tal questão, eu cismo...

 

CACHORROS E BICHANOS II

 

Já os bichanos jamais foram domados,

Muito se disse que domaram a mulher,

A quem convencem a lhe dar o quanto quer

Esse animal com seus olhos encantados.

Também se diz que nenês são imitados,

Por seus miados e as cabeças de qualquer,

Como os vagidos infantis em seu mister

De aos adultos exigir os seus cuidados.

Que não há dois iguais, é coisa certa,

Chegam alguns a mostrar fidelidade,

Acima e além da ração em seu pratinho.

Mas é a hipnose de seu visão aberta

Que lhes garante da mulher servilidade,

Quando se achegam, como a pedir carinho.

 

CACHORROS E BICHANOS III

 

Já os cuscos companheiros são do homem

E facilmente aprendem artimanhas,

Mas não é por limitados em suas manhas

Que os bichanos raramente as tomem.

Ao treinamento com frequência somem,

Se insistires, são tuas mãos que lanhas.

Se fores rápida, em sua fuga os apanhas,

Mas desaponto sofrerás sem que se domem.

Só te irão obedecer por artifício,

Quando sabem quanto podem receber

E mesmo assim até recusam-se a comer,

No sacrossanto e mais falso vício:

Sabem que podem aos humanos dominar,

Enquanto os cães seu dono anseiam por honrar!

 

CACHORROS E BICHANOS IV

 

Não se ensina um gatinho a andar em pé,

Mas caso queira qualquer coisa alcançar,

Com facilidade se dispõe a se esticar,

Só se recusa a demonstrar-te fé.

Nos Pireneus têm os gatos a sua sé,

São as algálias ainda ali a habitar.

Muito mais tarde os conseguiram apanhar,

Deuses no Egito a se tornar até!

Se o que descrevo não te casua pasmo

E te parece até lugar-comum,

É que tanta vez a tudo isto assististe

E mesmo pode te ofender o meu sarcasmo,

Sem que aceites qualquer crítica a nenhum,

Pois em sua adoração já te incluíste!

 

A BALINESA I – 24 FEV 24

 

foi numa tarde de sábado nublado:

sem me avisar, ligou seu computador,

mostrando melodias que escolhera com amor,

para iniciar uma dança improvisada.

bela surpresa em tal tarde encantada,

breve momento a me tornar em sonhador,

que há muitos anos não mostrava esse valor,

ao invés ficava muda e ensimesmada...

mas ao se pôr a dançar, prendeu-me atento,

a recordar mil outras tardes do passado,

em que a acompanhara semi-maravilhado

e se já não a amasse há tanto tempo,

eu me teria de novo apaixonado,

naquela tarde de sábado nublado.,,

 

A BALINESA II

 

há sentimentos que jamais se esquece

e embora tantos os houvera captado,

em mil sonetos de esplendor alado,

o vero amor é mais forte que uma prece

e quando o encantamento nos aquece,

se revigora no peito deslumbrado,

todo o antigo no presente despertado,

todo o antanho para o presente desce

e ali fiquei a contemplar os seus meneios,

algum flamenco no valsar das mãos,

rituais guardados de passadas gerações,

imerso inteiro nesses devaneios,

olhos despertos na chuva das monções,

nesse encanto ancestral das ilusões...

 

A BALINESA III

 

foi um momento arcano de  ternura,

no qual eu me imergi inteiramente,

ela era a mesma, porém tão diferente!

era a que um dia eu amara com loucura

e ao mesmo tempo era o som dessa amargura,

melodias mileniais desde a nascente,

nos seus olhos um brilho imanescente,

seus movimentos em reconquista pura.

jamais hei de me esquecer desse momento,

dessa mescla de passado e de porvir,

em que tantas emoções se amalgamaram,

banido assim todo o amargor do desalento,

na embriaguez desse mágico elixir

tapetes mágicos que me reconquistaram!

 

 

MALVASIA I – 25 FEVEREIRO 2024

 

Se pensas te esqueci, pensa de novo.

Que a vida é feita de minúsculos momentos,

De intermédio a mil assentamentos,

Monótonos, repetidos, sem renovo,

Mas é entre meus milagres que me movo,

Reunindo os tempos entre inválidos assentos,

Alimento para os mais arcanos sentimentos,

Passos vazios a se auscultar do povo,

Pois quantas horas por dia a gente esquece,

Que não nos trazem significado algum,

Enquanto há linha firme nesse anzol,

Nesses instantes de verdadeira prece,

Em reverência para como deus nenhum,

Mas que recordam na mente o teu farol.

 

MALVASIA II

 

Assim jamais esqueço o momento companheiro

Da cornucópia vivaz do meu passado,

De cada instante que gastaste do meu lado,

Cada momento feito em brilho alvissareiro,

Em que tornaste meu coração brejeiro,

Entre teus dedos de perfume adocicado

E o aqueceste com teu corpo alado,

Primário instante e instante derradeiro.

A terra fértil revolvemos com trator.

Nada mais é que uma lembrança muda,

Até o momento do eclodir da flor

E foi assim esse momento de esplendor,

Em que o botão vermelho se desnuda

Em seu convite triunfal de amor!

 

MALVASIA III

 

O que eu esqueço é do tempo intermediário,

Em que meus olhos não te contemplaram,

Em que palavras de amor não se escutaram,

Por numerosos, só a compor o secundário.

Mas lá no meio rebrilha um som agrário,

Alguns instantes em que meus olhos te avistaram,

Em que palavras de amor se consumaram,

Curtos que sejam, no vigor mais solidário,

Todo o restante solitário de marasmo...

Só imagino se no fundo de teus olhos

Guardas minha imagem igual que a tua flutua,

Naquela tarde em que me ergui do pasmo,

Que  penetrei inteiramente os teus refolhos

E contemplei a tua alma toda nua!

 

O CÍCLOPE I – 26 fevereiro 2024

 

Sempre que abro de biscoitos pacotinho,

eu me percebo qual se fora Poliphemo,

o gigantesco e poderoso demo,

que Odysseos enganou com mosto e vinho.

Falo a verdade: imagino o biscoitinho

igual que ser consciente, trigo e feno

e ao devorá-lo, de certo modo temo

ser canibal nesse meu áspero carinho.

Percebo então que o estou incorporando,

quando o esmago entre os dentes, sem piedade,

é mais o sal que se aflora em minha vontade,

quase imagino a sua súplica escutando,

mas acho tantos no mesmo recipiente,

sem me oferecer resistência mais valente!

 

O CÍCLOPE II

 

E se fosse o contrário?  Eu, marinheiro,

capturado pelo trasgo assim faminto,

sem a menor simpatia do que sinto,

querendo apenas devorar-me inteiro!

Tal qual descesse de um navio cargueiro,

areias brancas nessa praia eu pinto,

minha própria fome de sabor distinto,

as ovelhas a roubar do pegureiro!

Seria então como um ato de justiça,

carne por carne entregue a esse gigante...

E assim, com meus biscoito empatizo

são puro trigo, sem laivos de carniça,

mas a antropomorfização é bem constante

e ainda os devoro com maléfico sorriso!

 

O CÍCLOPE III

 

É um sentimento assim canibalesco,

sem verter sangue, somente minha saliva,

cada “dentinho de moça” coisa viva...

Até que ponto lastimo quando os pesco?

Com ptialina sobre a língua os mesclo,

mais que o gigante, me comporto como Shiva,

ou como Átropos, essa impiedosa diva,

indiferente, a nos cortar sem asco...

Sempre me tive por vegetariano,

sem recair nos exageros de um vegano,

mas sal e trigo não foram massacrados?

Quiçá um dia, servirei eu mesmo de alimento

para antropófago, viajando num portento

de discos voadores a caçarem-me apressados?

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024


 

 

SULTÃO I – 19 FEV 2024

(ELISABETH BERGNER,  musa do cinema mudo)

 

No Turquestão, eu tenho o meu harém:

para lá te levarei, como rainha

e sempre que tua carne se avizinha,

me esquecerei das outras que lá tem.

 

Nem sempre estarás só nesse porém:

é grande o meu serralho e sempre tinha

para minha espada uma gentil bainha,

até que me trouxeste a tua também.

 

Vou desistir da panóplia e as concubinas

ficarão sem carinho e sem afeto,

quando quiseres estender-me a mão.

 

Serão tuas servas todas as meninas

que já possuí, no meu sonho secreto,

que só em quimeras se transformarão...

 

SULTÃO II

 

Tenho um serralho também na Cochinchina,

onde se encontram jovens tailandesas,

vietnamitas, khmers, birmanesas,

do Laos e Bangladesh e até da China!...

 

Porém meu corpo a tais olhos não se inclina,

prefiro antes as modernas japonesas,

que a dobra operam.  Querem, com certezas,

parecer ocidentais, que mais se afina

 

ao ideal mais moderno de beleza...

Olhos puxados com cabelos louros,

olhos azuis de lentes de contato...

 

Eu te darei desse outro harém a realeza:

teus cabelos reinarão, sem mais desdouros

para teus olhos castanhos de recato...

 

SULTÃO III

 

Afrodite, deusa antiga, a dama dos orgasmos,

não posso me queixar dos muitos que já tive:

talvez mais eu quisera em ventres que não estive,

porque ainda consumo o vigor dos entusiasmos.

 

Devo plantar um mirto e esmigalhar pães asmos

em torno à sua raiz, onde a alegria vive;

com tomilho silvestre o meu ardor revive

e me leva ao final das ânsias dos espasmos...

 

À beira dos regatos devera eu assentar-me

e louvar minha deusa, meu par, sempre a meu lado,

ao invés de prender-me à tela fluorescente

 

deste mundo eletrônico, dia após dia a sugar-me,

que os prazeres da vida eu tenho abandonado

por bolsas de ouro falso em paga intermitente...

 

SULTÃO IV – 20 fevereiro 2024

 

Gotas de vinho escorrem de teus olhos,

na lira do passado.   Tangem sinos

quando abres a boca: bailarinos

são os teus dentes, espiando dos refolhos.

 

Marinheiros ocultos sob os molhos

da balsa de tua língua.  Pequeninos

duendes na garganta: meus destinos

anunciando, na galhofa dos escolhos.

 

É só o que recordo desses anos

em que estiveste perto e reluzia

esgar de amor na sombra do sorriso.

 

Porque os de agora... são penhores araganos.

A ânfora de vinho está vazia

e o sino tange no acorde do impreciso.

 

SULTÃO V

 

Seu corpo contra o meu, avidamente,

na ânsia do desejo proibido:

muito mais ânsia pelo impermitido

do que um desejo de mim, impenitente.

 

Seus lábios entreabertos, língua rente

à membrana de minha língua, no inserido

guiar e combater, prazer temido,

temor gozado em luta impertinente.

 

E na explosão final, a carne quente,

coberta de suor e ânsia ferina,

nos tremores do ventre, a boca em ais...

 

Ela se torna deusa e essa inclemente

ardência de sua carne me fascina,

como uma aurora em dimensões fatais.

 

SULTÃO VI

 

Ela passou e olhou-me.  Nada belas

as suas feições e o corpo até grosseiro,

mas algo desprendia, esse ligeiro

feromônio que atrai, quando as donzelas

 

estão em dias férteis.  Sopra delas

aquele apenas percebido cheiro,

sem que o olfato o interprete por inteiro,

mas que nos escraviza, em tarantelas...

 

Nem foi que me quisesse.   Só queria

alguém que seu óvulo alcançasse,

com a chuva branca e pura do entusiasmo.

 

Assim, passou.  E outro mais iludiria,

cuja semente o seu ventre fecundasse,

na euforia inútil de outro orgasmo...

 

SULTÃO VII – 21 fevereiro 2024

 

Quando me amou, na pradaria florida,

seus braços em meus ombros, a puxar-me,

para mais perto de si, para abraçar-me

e garantir-me que me era pertencida,

 

quando me amou, na grama umedecida,

seus braços sob as axilas, a agarrar-me

pela cintura, cada vez mais a apertar-me,

até tirar de mim gotas de vida...

 

quando prendeu-me as pernas junto a si

e a boca se encaixou, como lingueta,

entre meus lábios, em ambição secreta,

 

foi a doçura mais sublime que senti,

naquela tarde de agosto, em que o calor

o zéfiro abrandava, em esplendor...

 

SULTÃO VIII

 

Teus lábios junto aos meus, teu corpo aceso

por tépida verdade de narciso,

que não recobre em reposteiro ou riso

o mesmo elan vital em que reteso

 

o armígero projétil para o embate:

testosterona, saliva e adrenalina,

na língua teu sabor de ptialina,

teu estertor no ouvido se rebate...

 

E dentre o assomar do meu desvelo,

a me arrepiar bem fundo ao cerebelo,

de todo esse teu beijo que respiro,

 

resta somente o gozo multifário,

que é meu direito consuetudinário,

e me provoca o orgasmo num suspiro.

 

SULTÃO IX

 

As coxas puras, de perfume agreste,

na garupa do potro reluzentes,

do suor doce do animal frequentes,

na vastidão do sonho que me deste.

 

Coxas abertas para o vento leste,

no verde da campina, assim frementes,

na espera pronta de amplidão potentes,

por fútil seiva que o corpo me reveste.

 

De certo modo, é como essa semente

derramasse na terra, que seu ventre

é o mesmo seio da plaga que nos gera.

 

A corticeira cresce e cresce o ente,

vermelha a flor e o filho que se adentre,

vermelha a aurora, enfim, vermelha a fera.

 

SULTÃO X – 22 FEV 24

 

São pétalas de rosa que devoro

ao lembrar o teu colo, nívea pele,

gotas de névoa que sobre mim revele

essa doçura de sal em que demoro,

 

nessa armadilha antiga em que defloro

a minha própria alma, em que desvele

gotas de brisa, que sobre a carne zele

e me penetre poro e depois poro.

 

O que minha língua toca, toca em mim:

eu provo o gosto que é meu próprio travo,

lábios e beijos na mesma formação

 

desses mamilos rosa em flor, enfim,

a maciez mais dura e sou escravo

dessa ternura que fende o coração.

 

SULTÃO XI

 

São tâmaras de néctar que toco

com o refluir dos dedos escorreitos,

são tâmaras de pele sem defeitos,

são tâmaras de antanho que hoje invoco,

 

são gotas de rubi que assim coloco

sob minhas unhas e nos lençóis dos leitos,

são gotas de rubi que planto em eitos

e em cada cova -- nova semente soco.

 

De novo essa armadilha, esse mundéu

que reconheço qual arapuca inteiramente,

mas como busco enredar-me nesse laço!

 

Grade de beijos que cede luz ao céu,

divino amor do temporariamente,

no eterno temporário desse abraço!

 

SULTÃO XII

 

Há um diadema de luz sobre tua testa,

sei que fui eu que te dei essa tiara,

sultana do sultão, serva preclara,

luz de meus olhos para eterna festa,

 

em mil reflexos que a vida me contesta,

que rasgam boca e costas em escara,

rígido anel a circundar-me a vara,

sultana do sultão em arcana giesta

 

e então ainda que a vida assim me obrigue,

por motívos de política ou paixões,

a manter mil odaliscas nesse harém,

 

sei meu retorno a ti sempre prossegue,

sultana do sultão dos corações,

a quem confesso pertencer também!