segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024


 

desânimo I –12 FEVEREIRO 24

(Sylvia Sidney, musa do cinema mudo)

 

sou o primeiro, como de costume.

vejo o mundo a mover-se ao meu redor

e só espero, envolto no labor

que a mim mesmo me impus, este curtume

 

dos couros de minha boca sem perfume,

dos sons imóveis da mais pura dor,

das muitas cores que pintam desamor,

matéria-prima em que emprego até estrume.

 

tudo me serve, nada me é interdito:

os temas desprezados se acomodam

e os esculpo, em termos de ironia...

 

e nestes versos, sem sabor bendito,

eu teço o inesperado em que se açodam,

no mesmo baile, a glória e a agonia.

 

desânimo II

 

trago no colo uma porção de exames

que nem examinei... que diferença

irá fazer em mim saber da extensa

ou da curta amplidão desses enxames

 

de afecções que determinam os ditames

de minha saúde?   que a médica ciência

deflore o envelope em sua sequência,

que eu só aguardarei, pois tenho PAMES

 

e nem preciso pagar a internação,

caso seja importante que me afastem

do mundo, por um tempo sigiloso...

 

aqui eu fico, sem mais preocupações

e sem curiosidades que me arrastem

a antecipar um diagnóstico precioso...

 

desânimo III

 

que rapidez com que a atual tecnologia

se suicida para o obsoleto!...

o novo, logo após não ser secreto,

já se arrisca a tornar-se sem valia...

 

lembro que o ritmo antes não corria

assim tão célere para o desafeto.

hoje não dura mais do que um inseto:

é efeméride que vive por um dia...

 

mas eu não me acostumo e até queria

que certas coisas parassem.  ainda bem

que outras queria andassem mais depressa...

 

e é assim que se compensam, à porfia,

em rapidez e lentidão.  também,

enquanto a morte aguardo, sem ter pressa.

 

desânimo IV – 13 FEV 24

 

agora, eu leio pouco.   antigamente,

eu lia o tempo todo que sobrava;

traduzo hoje na tela e o que restava

de meu tempo se esvai rapidamente.

 

e quando tenho a ideia inteligente

de um livro trazer na minha aljava,

para ler nas minhas esperas, coisa brava,

me ponho a rolar versos, inclemente.

 

e o tempo vai-se indo, livros passam

pela minha tela, por mim processados

em novos livros pelo meu talento

 

e nesses intervalos que se espaçam

só têm lugar sonetos apressados,

em folhas soltas que carrega o vento.

 

desânimo V

 

nem sei por que te escrevo assim; estou cansado

de tudo que minha vida representa:

até meu corpo assim se desalenta,

em retroalimentação de igual estado.

 

e nem era para ser...  o mau olhado

que me feriu, há meses, se espaventa.

desde janeiro, sem cessar, se assenta

sobre o tampo de minha mesa, um apanhado

 

de trabalhos variados...  pagamento

custa sempre a chegar, mas tem chegado

e eu mesmo paguei tudo o que devia.

 

e ao mesmo tempo, percebo, em sofrimento,

que ao receber trabalho, me é negado

todo o carinho que há pouco recebia...

 

desânimo VI

 

em breve, ela virá, sem perceber

e nem sequer desejar o meu querer.

apenas chegará, com seu perfume,

em lúbrica inocência e desfazer.

 

ela virá, sorrindo, indiferente,

não por desdém, mas como a toda a gente

premia... tal que brilha o vagalume,

com seu esgar gentil, placidamente.

 

ela passa por minha vida e nem sequer

enxerga que a percebo qual mulher,

porque homem para ela nunca fui.

 

sou apenas objeto de passagem,

a quem se trata bem, sem vassalagem

à mera ideia de amor que jamais flui...

 

desânimo VII –13 FEV 2024

 

enquanto me apercebo da pressão

que me avassala, tento em vão fugir

e só consigo em palavra escapulir,

até que as pinças se fechem, em malsão

 

apertar inconcludente ao coração,

da sístole e diástole o longo refluir,

enquanto a força das garras permitir

enquanto reste ar no meu pulmão.

 

eu me afogo na vida e me sufoco

e é pela própria sufocação que vivo:

se a não tivera, nem sequer motivo

 

me restaria para respirar, a troco

de um doce fazer nada, sem suporte

dessa pressão que me costura a sorte.

 

desânimo VIII

 

quando sentires o mundo desultório

e a vida a teu redor puro desânimo,

sem resultado que te erga o ânimo,

toda vitória um simples foguetório,

 

quando sentires o peso de tua história

a perfurar teus ombros como espinhos,

quando sofreres por falta de carinhos,

nesse acicate de lava feita escória,

 

quando tudo a teu redor parecer morto,

sem um único luzeiro na neblina,

o mar em calmaria e o vento aziago,

 

toma dos remos e ruma para o porto,

lembra que és dona do leme de tua sina

e podes transformar carga em afago.

 

desânimo IX 

 

mais outra vez, fico perdendo tempo,

enquanto espero que façam uma prova,

que de dois em dois meses se renova

essa angústia de tédio e contratempo. 

 

não pretendo repetir os neologismos

que escrevi outro dia, num desplante,

em desafio total e triunfante

a este ambiente de malícias e sofismos.

 

que minha revolta só se mostra em versos,

enquanto encaro o mundo com enfado,

sem pretender que pertenço ou sou excluído.

 

apenas vejo os díspares reversos

do azinhavre dos rostos, no mofado

tempo de vida que em aulas foi perdido.

 

desânimo X – 14 fev 2024

 

com vinte e sete centímetros de versos

já em minha pilha, para um novo dia

eu me preparo, de esperança exangue.

 

sei que esse dom, como já outros conversos

trabalho me trará, não alegria,

na cadência impertérrita do sangue.

 

por isso, ora me atrevo a inverter

as regras do soneto, sem alarde,

já que percebo que em meu peito arde

uma chama que já pensa em converter

 

a longa pilha em cinzas e acendalha.

talvez queimando tudo, me retorne

a esperança de que amor se amorne,

no frio coração que a mente espalha.

 

desânimo XI

 

um dia, ela virá, sem que eu espere,

trazendo junto seus dedos de alvorada,

com sua pele translúcida de fada,

nesses carinhos que eu apenas considere.

 

um dia, ela virá, sem que se encerre

a minha vida perpétua ensimesmada,

um dia ela será minha deusa alada,

com suas asas da testa então se abeire.

 

tocar-me-á gentil, na revoada

formada por seus élitros apenas,

mais dama de cetim que de resina,

 

porém na pele ficará grudada

a total sombra de suas asas pequeninas,

para de leve abrandar o espanto de minha sina.

 

desânimo XII

 

mas enquanto ela não chegue, seguirei

neste caminho estreito de meus versos,

cada poema a trair mil universos

e sobre a espada do tempo sentarei.

 

sobre o gume da adaga seguirei,

nesse equilíbrio de tropeçares tersos,

no talho de meus pés sonhos inversos,

nas linhas de minhas mãos a lembrarei.

 

e quem dizer me pode se a verei

em qualquer ponto fora do arvoredo

de meus santos pagãos de antigo viço?

 

e sem ter foice de ouro, eu cortarei

o azevinho envolto no segredo

de outro poema irrequieto mas castiço.

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