sábado, 6 de janeiro de 2018




O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA I -- 4/10/17
(Baseado em lenda hindu contada em prosa por Malba Tahan).

Caso creiamos em um douto pensador,
Chiang Fukiang, que dois séculos nasceu
depois de Kung Futseh, celebérrimo chinês,
homem algum furtar se pode à dor,
não apenas na China em que viveu,
em qualquer ponto que sobre a Terra vês:
por mais ditoso então que um homem seja,
infeliz se acha por ter sorte malfazeja!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA II

Naturalmente que isto não é assim.
Sempre há motivos para infelicidade,
desgostos ou doenças, porém o pessimismo
é uma doença hormonal e tem seu fim
pelos remédios que há na atualidade,
sem que por isso resulte no otimismo:
tudo depende, na verdade, do balanço
entre os hormônios e toxinas em remanso...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA III

Mas sobretudo é questão de circunstâncias
e da forma com a qual as enfrentamos
ou nos deixamos por elas dominar.
Malba Tahan descreve-nos instâncias
sobre a forma com que os males dominamos
ao invés de nos deixarmos controlar:
muitos contos a deixar-nos de tal arte,
em que alegria até hoje nos reparte!...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA IV

Houve um tempo que a inteira Índia do Norte
fora por Najagra, um Maharaja, unificada.
Prosperidade e justiça a se encontrar;
não somente era excelente a sua sorte,
porém tinha sensatez morigerada,
buscando o bem entre seus súditos semear:
e era assim por todos abençoado,
por ser sábio e bondoso o seus reinado!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA V

Não obstante, havia ali um dissabor:
o Príncipe Karima, filho e herdeiro,
fora assolado por total gaguez!...
E por mais que trocassem seu tutor,
os médicos e atendentes, verdadeiro
era seu mal, a manchar sua sensatez:
e o Maharaja receava que, ao morrer,
fosse afastado e tomassem-lhe o poder!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VI

Que então julgassem Karima deficiente,
por mais que se mostrasse inteligente,
bom guerreiro e em tudo preparado...
Mas sendo gago, como falar à gente?
Saberia, é certo, escrever perfeitamente
os seus decretos, mas o povo era iletrado:
Teria um arauto de ler esses decretos
e os ambiciosos ficariam muito inquietos!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VII

Mas por mais tentasse astrólogo ou adivinho
e as preces com fervor dos sacerdotes
erguidas fossem ao panteão das divindades,
nada curava a gaguez do pobrezinho
e pelas costas, a zombaria e os dichotes,
ameaçavam lhe roubar as dignidades,
e deste modo, quando o pai lhe falecesse
seria provável que algum nobre o depusesse!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VIII

Contudo, pelo povo era estimado
e ainda temiam que diferente soberano
se demonstrasse bem diverso governante;
e muito rico já pensando, preocupado:
"E se vem outro, para nosso dano,
criando impostos de forma delirante?"
Karima há de seguir como seu pai,
porém um outro bem mais cobrar-nos vai!..."

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA IX

Assim, um dia, um carregador de água,
um pobre jhimvar, lançou-se aos pés do rei,
beijando a terra à sombra de seus pés:
"Majestade, a ousadia traz-me mágoa,
pois nunca nome ou casta possuirei,
porém justo e magnânimo sei que és."
"Ergue-te, súdito, pede o que vens pedir."
"Não, Majestade, só que me possa ouvir..."

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA X

"Nada quero para mim.  Porém bem sei
quanto a gagueira de Karima o atormente
e assim me atrevo a fazer-lhe sugestão!
Que ao invés de falar, seu filho, ó rei,
apenas cante -- ou, pelo menos, tente!
Tenho certeza que de Krishna a boa mão
será apoiada sobre a sua garganta,
já que "quem canta, seus males espanta!"

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XI

Ficou o Maharaja bastante surpreendido,
mas seu Vizir, que sempre o acompanhava,
declarou: "Majestade, eu já o ouvi cantar,
sem que então seja pelo entrave afligido...
Pelo aguadeiro, talvez a voz de Krishna falava!
Por que não fazê-lo experimentar?..."
E como todo o Conselho concordou,
Najagra lições de canto lhe marcou!...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XII

E maravilha!... O Príncipe Karima
logo cantava tudo à perfeição
e nas palavras não mais tropeçava.
até mesmo a descantar com bela rima...
O Maharaja, assim tomado de emoção,
ao pobre jhimvar ricamente compensava:
Não lhe cabia erguê-lo de sua casta,
porém riquezas lhe deu o quanto basta!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIII

E foi assim que em qualquer ocasião
mostrava o príncipe a sua inteligência,
seus bons conselhos e vasto entendimento,
sempre cantando em perfeita afinação
a melhorar a pouco e pouco sua fluência,
admiração a receber em tal momento!...
Porém, passada a primeira maravilha,
já retomavam da maledicência a trilha!...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIV

Alguns passaram mesmo a arremedá-lo
e o Maharaja, em sua sabedoria,
começou a responder em voz cantada.
Seu bom Vizir foi, enfim, aconselhá-lo:
"Majestade, sugestão eu lhe faria:
E se em sua corte toda palavra falada
substituída fosse inteira pelo canto?
Não haveria para o herdeiro desencanto!"

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XV

Foi aceita a sugestão.  Najagra decretou
não somente que se cantasse em seu Conselho,
mas que os guardas, os servos e os escravos
sempre cantassem!  E a melodia ecoou,
talvez desafinando qualquer velho
e os invejosos ficassem mesmo bravos,
mas a ordem foi depressa obedecida,
com orquestra dando a nota requerida...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVI

Todos depressa se acostumaram
e logo o príncipe alcançou maior respeito,
as melodias todo o castelo a percorrer.
Mais tarde, quando a Karima coroaram,
depois que o pai por Brahma foi aceito,
a tradição houve por bem permanecer
e até nas ruas o povo já cantava
e assim seus próprios males espantava!

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVII

Não obstante, certo dia um viajante,
em embaixada do bizantino Imperador,
apresentou-se de Karima à capital
e no momento em que chegou o viandante,
surpreendeu-se a encontrar tanto cantor,
alguns cantando bem; outros, bem... mal.
Um de seus guardas começou a troçar,
mas Kasimiros não pôde concordar.

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVIII

"Tal costume deve ter um bom motivo
aqui essas gentes me parecem bem felizes
ou ao menos mostram ter cordialidade..."
O dono da estalagem, nada esquivo,
explicou: "Senhor, se vais ao palácio, como dizes,
deves também cantar com boa vontade:
É proibido falar nas dependências..."
"Mas na cidade também há tais exigências?"

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIX

"Não, por aqui não é obrigatório,
mas estamos ficando acostumados
e o certo é que há cordialidade,
em consequência de tal regulatório;
os criados e os guardas bem armados
falam cantando ao andar pela cidade...
Mas veja bem, para cantar com melodia
é forçoso que se encontre uma harmonia..."

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XX

"E é mais difícil que surja discussão
quando é preciso pensar para cantar...
Foi muito boa a decisão do Maharaja!
Há estrita paz, de forte aceitação,
assim não temos ocasião para brigar
quando musica suave entre nós haja...
Pois se o senhor pretende agora ir ao castelo,
prepare a voz para entoar um canto belo!..."

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXI

Destarte Kasimiros, o Embaixador,
desde o momento em que chegou ao portão,
já começou melodias a entoar
e com o jovem Maharaja achou favor
e um bom tratado assinaram na ocasião,
depois de cem banquetes partilhar...
Após um mês, reiniciou a viagem,
saudado em cantoria na estalagem...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXII

E quando ele à pátria retornou
e apresentou-se para o Imperador
de Constantinopla, mostrou-se ele interessado
e por capricho, a seguir determinou
que no teatro apresentasse igual labor
como na Índia fora por moda consagrado:
e com a ajuda de um seu companheiro,
um bom enredo foi composto bem ligeiro...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXIII

O espetáculo agradou todos, realmente,
sendo imitado pelos demais compositores,
entrando em voga nos palcos e cenários,
sendo o gênero da ópera ali nascente...
Esqueçam-se, portanto, outros autores
das pretensões de quaisquer lugares vários:
Surgiu em Constantinopla, hoje Istambul,
no Chifre de Ouro, sobre o mar azul!...

O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXIV

Pois contrariando a cada historiador,
não foi Giacomo Peri o inventor,
nem Monteverdi seu grande difusor...
Foi Kasimiros que a estreiou primeiro,
séculos antes de Veneza... Mas ligeiro
tomou Byzâncio o Grão-Turco invasor,
que proibiu ali sua representação,
por não ser mencionada no Alcorão!...


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