quarta-feira, 14 de julho de 2021

 

URSULA ANDRESS

 

AMPULHETA CONSCIENTE I – 7 JUL 21

 

Amanhã será hoje, muito em breve,

como ontem foi hoje e já passou;

mas esse hoje já agora transitou

para o passado, é o momento deste leve

pensamento que por instantes só esteve

presente no presente e que sonhou

ao ser escrito, que o instante que o formou

mais permanente seria do que deve.

 

Vejo o passado no começo do rascunho

que recém redigi, vejo o futuro

catapultado do final para o presente,

caso viva este período de acabrunho,

sem que o tempo se reduza só a monturo

de areia em ampulheta inconsequente.

 

AMPULHETA CONSCIENTE II

 

Que serei cinzas um dia é muito certo

ou pelo menos, este corpo que hoje habito.

Para que serve a carne?  Qual o fito

desta pele que se expõe ao céu aberto?

Só nela penso quando estou desperto:

em meus sonhos, não recordo se concito

meu personagem onírico que agito,

a pensar em qual seja este concerto...

 

Não penso em corpo onírico, afinal;

apenas nele me movo e algo assisto

e os instantes do tempo são salteados,

mudam imagens e espaços neste astral

e de indagar a mim mesmo não desisto

só se meus membros notar como  acordados.

 

AMPULHETA CONSCIENTE III

 

Esse tempo do sonho é diferente

do outro tempo em que passo a meditar

ou coisas mil materiais a realizar:

será que o tempo do sonho é mais premente?

Mas uma coisa aqui percebo claramente,

as Três Moiras de minha vida a contemplar,

que a teia escorre pelos dedos sem parar

e não consigo conservar nada presente.

 

O quanto vejo no passado já se encontra

e o futuro vem correndo me assaltar,

sendo o presente só uma nesga singular,

que sequer para mim a si demonstra:

é um punhado de luz em pleno ar

o fio da vida que eu mesmo irei cortar...

 

PALINGENESIA I – 8 JUL 2021

 

Eu tive um gato durante vários anos,

Arhur Pendragon – ou ele tinha a mim;

no escritório vinha dormir horas sem fim

e meus carinhos requeria sem enganos.

São dois felinos ou seriam dois humanos?

O fato é que na escada vinha assim

e me cobrava festinhas de arlequim

a cada dois degraus, sem desenganos...

 

Havia pontos específicos a tocar,

em tal ritual de exigência permanente;

possuía olhar claro e direto como gente,

qual lorde inglês após se embebedar...

Mas tudo passa e um dia ele morreu

E de taxidermia nenhum tratamento recebeu...

 

PALINGENESIA II

 

Hoje na casa mora apenas um cãozinho,

chamado Gremlin, um Shihtzu de raça;

mas de repente, enquanto o tempo passa,

começou a se portar qual um gatinho

e na minha escada se deita no caminho,

exigindo algum carinho que lhe faça,

depois sobe dois degraus em igual jaça

e novamente vem cobrar-me outro carinho.

 

É justamente nos pontos que cobrava

Arthur Pendragon.  Falta apenas o miar,

que até caçou passarinhos no jardim.

Será que a alma do gato que eu amava

de algum modo veio nele se encostar

e hoje me mira de igual jeito assim?

 

PALINGENESIA III

 

A Reencarnação proclama o Brahmanismo

e nela criam antigos Gregos e Romanos

que suicídios não consideravam desumanos,

firmeza tendo no retornar do abismo;

Já a Metempsicose defende o Jainismo,

que a depender de nossos atos mais profanos

reencarnaríamos em mil corpos não humanos

e toda vida defendiam, em tal modismo.

 

Sem dúvida, foi um ideal do Romantismo,

em especial quando a tuberculose

levava ao túmulo tantas jovens vidas,

e em contradição direta ao Nihilismo

de uma só encarnação que a alma goze,

reencontrar criam suas amantes falecidas...

 

PALINGENESIA IV

 

Confesso agora que a Palingenesia

é uma palavra nova para mim;

vi na crônica de um jornal escrita assim:

raro sinônimo de Reencarnação seria.

O Cristianismo tem em conta de heresia

esta doutrina.  Só uma morte enfim

teriam os humanos, sua ressureição alfim

somente no Juízo Final ocorreria...

 

Eu pessoalmente, me inclino a acreditar:

tantos bilhões de mortos que aí estão!

Será que a vida de alguns deles já vivi

E após morrer, vim nesta vida despertar?

Mas eu só sei que se há Reencarnação

só quereria reencarnar perto de ti!...

 

ARDORES  I – 9 JULHO 2021

 

Eu me esqueci de guardar gotas de inverno

no bolso do casaco ou na carteira;

chegou o verão com sua pasmaceira

a recordar-me que existe fogo eterno!

Eu sempre estivo e quase nunca hiberno;

a temperatura mais fria é alvissareira

ao menos para mim – a mormaceira

só me conduz à antecâmara do inferno!...

 

Ano passado, assoberbado de serviço,

esqueci de reservar cubos de frio

para abrir junto de mim em refrigério

e meu estoque de viração tomou sumiço,

completamente estrangulado pelo estio,

que cedo ou tarde me levará ao cemitério...

 

ARDORES  II

 

Já neste ano, relembrei do esquecimento

e como o tal verão me assoberbou;

bem depressa a coleção já começou,

no sobretudo e no chambre o suprimento;

o inverno já estava a meu contento

e mais lugar nos casacos se encontrou,

gotas de frio cada bolso agasalhou,

na previsão de ocorrer aquecimento!...

 

E vejam só como foi boa a previsão,

que bem no meio de Julho já aqueceu

e cada noite comecei a passar mal...

Até me recordar da provisão:

meu travesseiro cubos de vento recebeu,

envolvidos em fragmentos de jornal!...

 

ARDORES  III

 

Como a frutas ainda verdes tal papel

a madurez com rapidez apressa,

meu frio de gelo a conservar não cessa,

só devagar a transformar-se em gel...

E nesta noite aguardo que o ouropel

me permita sentir o efeito dessa

provisão que há uma semana fiz à beça

e assim consiga ir dos sonhos ao quartel!...

 

Por que sofrer com algum calor no inverno?

assim em meus cubos de frio me refugio,

em parte gasto a reserva que me adono,

contra o pescoço e as costas eu alterno

esse abençoado tremeluzir de frio

e assim espero conciliar hoje meu sono!

 

CORDAS DE VENTO 1 – 10 JUL 21

 

Com cordas de água amarrarei teus dedos

e prenderei teus pés com cordas de ar;

com cordas de luz talvez consiga revelar,

cada um por vez, a multidão de teus segredos;

eu só os percebo como sonhos ledos,

para somente de modo onírico alcançar;

com cordas de fibra não os irei capturar,

mesmo que as trance com solitários medos.

 

Porém se cordas de vento for então utilizar,

tais quais peneiras de arames de luar,

talvez preencha com minhas veias teu sonhar

e com cordas de dor e prazer manipular

cada lembrança extraída de tua infância

e pendurá-las no coração de minha constância.

 

CORDAS DE VENTO 2

 

Eu buscarei cordas de água bem trançadas

diretamente do jorro das cascatas,

com minhas memórias as envolverei mais gratas,

todas tingidas com atmosferas partilhadas

e tomarei cordas de sol destas calçadas

que interrompeste com tua sombra certas datas,

preservadas do tropel de estranhas patas,

só para mim a recolhê-las abençoadas.

 

E tomarei cordas de vento ensolarado,

misticamente de estrelas polvilhadas,

azuis tingidas pelo suor de antigas geadas

e buscarei cordas de fogo enluarado:

entre meus dedos dançarão, armadas,

cordas de vida de meu sangue coagulado.

 

CORDAS DE VENTO 3

 

Jamais pretendo porém com tal cordame

impedir as tuas danças pelo espaço,

quero envolver-te com cordas de um abraço,

cordas de beijos derramar de vasilhame;

mas não penses tal desejo seja infame,

todas as cordas que nesta rima traço,

saem de mim e é a mim mesmo que faço

o prisioneiro total de tal reclame.

 

Porque de fato, a corda permanente

tu me lançaste das pupilas ao passar,

sem que me possa debater de teu olhar;

mas nessas cordas me sinto bem contente,

qual marionete que vais manipular,

sem nem ao menos com teus dedos me tocar.

 

SABONETES NÁUFRAGOS I – 11 JUL 21

 

Não sei de fato quantos sabonetes

Já consumi ao longo de minha vida;

Caso uma conta fosse concluída

O total se celebrasse com confetes!

 

Mas de cabeça talvez até projetes

Oitocentos e cinquenta nessa lida;

Se fosse apenas um por mês, assim contida,

O mais provável sendo o dobro, me objetes!

 

Talvez fossem então uns mil e setecentos

Ou mesmo mais, que meu banho diário

Mui raramente deixei de realizar!...

 

E os pobres sabonetes ficaram sebentos

Pelos suores de meu corpo perdulário,

Até cada um deles se acabar!...

 

SABONETES NÁUFRAGOS II

 

Até que ponto um pobre sabonete

De seu destino tomará consciência?

Talvez se deixe diluir em sã paciência

Ou nem perceba que aos poucos se derrete!

 

Mas se consciência ao objeto afete,

Que sentirá o coitado em tal pendência,

Em saboneteira aguardando na impotência

Pelo próximo banho em que se mete!...

 

Talvez diga a si mesmo: “É minha função,

Foi para isso, enfim, que fui criado,

Arredondado, protegido, perfumado...”

 

“Foi de minha existência esta a razão,

Todo sabonete será um dia desmanchado,

Talvez no céu do ralo alcance aceitação...”

 

SABONETES NÁUFRAGOS III

 

Ou quem sabe, é um sabonete revoltado,

Que com o destino de derreter não se conforma.

“Por que devo eu assim perder a forma?

À minha velhice queria ser encaminhado

 

“Ainda inteiro, protegido e perfumado,

Para poder gozar de minha reforma,

O meu repouso forma inteira adorna,

Por mais outros sabonetes abraçado!...

 

“Mas ao ver meu invólucro arrancado,

Só posso revoltar-me dessas cunhas,

Em corpo sujo não há prazer ser esfregado!

 

“Assim eu lutarei para a capa ter guardado,

Parte de mim a inserir-se sob as unhas

Desse humano por quem vou ser desmanchado!

 


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