domingo, 28 de agosto de 2022


 

 

DESVÃOS DA ALMA I – 26 AGO 2022

(Vanessa Redgrave)

 

Já mencionei meus deusinhos pelos cantos,

cada um deles uma parte do que fui,

que a me fitar o seu visar se anui,

quer recobrir-me com meus antigos mantos.

 

São tristes deuses de fato, em nada santos,

apenas o tempo que desgastei e que me flui,

os dias mortos do antanho que me rui,

estalactites cristalinas de meus prantos.

 

São o que eu fui, porém não sou agora,

nas camadas do passado congeladas;

nesse monturo de memórias misturadas,

cada deusinho de mim ajuda implora,

tornar à vida ao menos por um dia,

ser extraído dessa lama que o prendia!...

 

DESVÃOS DA ALMA II

 

Só lá se encontram, nos desvãos da mente,

almas penadas de mim, pobres vampiros,

que deixei para trás em tantos giros,

erros gemendo calcinadamente.

 

Reviver tempos perdidos no inconsciente,

somente em sonhos, olhares como tiros,

a lastimar-se em seus últimos respiros,

seu não-viver em falso ideal premente.

 

Todos perdidos nas geléias do passado,

estão meus outros que não existem mais,

que nem os posso recordar com perfeição,

cada dia e cada mês sendo esmagado

por novas mágoas e novos festivais,

ali dispostos em sedimentação.

DESVÃOS DA ALMA III

 

Que enfim nada que lembramos é perfeito,

vastas misturas de memórias coletivas,

com fragmentos de lembranças redivivas,

pequenos gólens, que nem sei se aceito.

 

Os mais fortes dentre eles nesse leito

a si agregam as fatias mais esquivas

de realidades esmagadas mas furtivas,

à divindade até achar terem direito.

 

Mas não é só comigo.  Estou consciente

das tentativas e as posso desprezar,

mas sei conseguem dominar alheias mentes,

pequenos régulos, teu desejo a dominar,

teu intelecto e teu espírito impotentes,

se não souberes seus desígnios dominar!

 

DESVÃOS DA MORTE I – 27 AGO 22

 

Não existe verde nas planícies do Hades,

todo o pasto é amarelo ou então vermelho,

não há lagoa a te servir de espelho,

verde não há adonde quer que vades.

 

Não existe fonte ou ribeiro no qual nades,

nem mesmo o vento a te servir de relho,

cada rosto de sombra é igual parelho

com o de outro vulto quais buréis de frades.

 

As sombras vagas permeio à solidão

desta planície que os Gregos conceberam;

de quando em vez, alguma estende a mão,

para colher o asfódelo infernal,

todo o alimento que aos mortos concederam,

na eternidade monótona e virtual...

DESVÃOS DA MORTE II

 

Pouco importa o que na vida realizaram,

desde que aos deuses não tenham ofendido;

aguarda o Tártaro aos que tenham concebido

quaisquer orgulhos com que um deus desafiaram.

 

Não há Gehenna de Fogo e não queimaram

sequer seus pés no caminho percorrido,

flutuam os vultos pelo solo destituído,

tampouco há frio e nunca enregelaram.

 

Essa é a planície em que não brilha o Sol,

cresce o asfódelo sem ter clorofila,

talvez o bafo dos mortos o sustente,

enquanto os alimenta em seu crisol;

marcham as sombras sem destino em fila,

sem a esperança de um juízo que as alente.

DESVÃOS DA MORTE III

 

Fui ensinado que até o Hades foi Jesus,

realizar a chamada Anasthasia:

quem o merecesse, dali retiraria,

por pura graça ao Paraíso então conduz.

 

Foi no período em que desceu da cruz

e igual comentam que foi ao terceiro dia

que para o mundo vivo nos retornaria,

da madrugada de Domingo em plena luz!

 

Mas essa conta sempre achei ser arbitrária,

das Três da tarde da Sexta-feira Santa,

às Seis da manhã, mesmo o Sábado inteiro,

são Trinta e Nove horas em contagem vária,

e não Setenta e Duas qual nos canta

a Escritura, a mencionar o dia terceiro.

 

DESVÃOS DA MORTE IV

 

Buscou-se então certa justificativa,

seriam dias de apenas doze horas,

o que daria trinta e seis, mas há demoras

de três horas escapando à conta esquiva...

 

O que se esquece, permeio à narrativa,

são os Campos Elíseos, em quais escoras

os preferidos dos deuses, sem desoras,

felizes andam com sua alma sempre viva...

 

Sempre achei mal pensada essa doutrina,

basicamente do tempo a depender,

pois para a Graça não há um tal invervalo;

mas a Aristóteles libertaram dessa sina,

no Hades sem o deixar permanecer:

para o Tomismo seria um forte abalo!

DESVÃOS DA MORTE V

 

Pois me parece ser um erro doutrinário

fazer a Graça só no tempo se exercer,

quando se afirma que o Pai tudo pode ver,

sem ordenar um mandamento atrabiliário!

 

Do julgamento sem haver período vário,

todos reunidos em um só amanhecer;

pensando bem, qual razão devia haver,

senão por um direito já consuetudinário,

 

que essa revista só se irá realizar

nesse momento do retornar final,

para miríades de gerações no mesmo instante.

Por que o Filho precisaria então baixar

ao reinado de Hades, em seu luto divinal,

de um deus pagão o enfrentamento dominante?

DESVÃOS DA MORTE VI

 

Se formos o Credo Niceno consultar,

da fé o resumo ali pormenorizado,

em ponto algum nele vemos registrado

que nesse Sábado Cristo fosse trabalhar!

 

Só no chamado Apostólico se irá encontrar,

a descida ao Hades, o que ali foi determinado

pelo papa Silvestre, algo mais interpolado

para Constantino, o Imperador se contrariar!

 

Muito mais justo, caso esse tempo houvesse,

que Jesus contas fosse dar de Sua missão

ao Deus Supremo e em Seu trono se assentar,

pois sendo o próprio Deus, como Ele desce

a um lugar só concebido pela imaginação

desses Helenos em sua mente singular?

 

DESVÃOS DO POEMA I – 28 agosto 2022

 

Eu vou tomar água fervente entre minhas mãos

e a enrolar, igual se faz bolinho,

para servir a meus amigos com carinho,

sal e açúcar a temperar tais ilusões...

 

Por que não posso aplicar estas noções,

se dessa água desviei o caminho,

minhas mãos a criar ouro em seu cadinho,

suor e sangue a servir como loções?...

 

Em algum plano quiçá não sejam ilusões,

tudo possível no quântico universo,

que mal algum me provoque água fervente!

Tenho direito a moldar mil sensações,

sendo um poeta a descrever um mundo inverso,

no surreal capcioso de minha mente!

DESVÃOS DO POEMA II

 

Há muitos anos, os Romanos afirmaram:

Poetas pictoribusque licet omnia!

E desse modo, em minhas noites de insônia,

os meus instintos sempre me inspiraram.

 

Nem o frio e nem calor me machucaram,

posso comer limalha e com amônia

encher minha taça e transpor até a Polônia,

totalmente, para os mares que a banharam.

 

Criar um oceano de ventos finalmente,

fazer a chuva cintilar como coriscos,

soprar os raios consoante o meu desejo

e como posso tornar tudo permanente,

eu gravarei a tua vida em finos discos

e somente para mim ouvir teu beijo!...

DESVÃOS DO POEMA III

 

Igual que a água fervente, a tua saliva

em mel se tornará entre meus dentes,

teus beijos a tornar-se tão frequentes

que alegremente apenas deles viva...

 

Igual que o vento que pelo amor se esquiva,

respirarei cada sonho que ainda sentes,

meu mundo desperto a ser nesse entrementes,

no qual minha carne se torna inteira tua cativa!

 

Tudo é lícito aos poestas e pintores,

mesmo perder-se nos versos que escreveram,

mesmo tomar-se a si mesmos como tela,

a noite e o dia a se tornar os meus amores,

só o impossível a criar que conceberam

de mnha deusa envelhecida e intensamente bela!

 

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