quarta-feira, 3 de agosto de 2022


 

 

invasões da alma I – 28 julho 2022

(Jeanne Moreau, época de ouro do cine francês)

 

o que ocorre se outra alma invade a tua?

a campanha se inicia em beijo leve,

ou em toque da mão onde não deve

ou por olhar avaliador em plena rua...

a pouco e pouco essa outra alma se insinua

e a mais intimidades mais se atreve,

o beijo que te dá não é mais breve,

mas sua saliva em tua boca estua...

e sem te dares conta, te domina,

de forma tal que és escravo voluntário

ou então serva predisposta ao sacrifício...

domina essa outra alma assim tua sina,

em um controle constante e multifário

que dela julga receber só um benefício...

 

invasões da alma II

 

mas é assim que ela nutre tua paixão

e um real amor desperta eventualmente,

grande gozo nesse amor tão envolvente,

feito tão grande a não caber no coração...

e que fazer quando idêntica ilusão

já se espalhou por teu par inteiramente?

um amor mútuo profundo e incandescente,

nenhum dos dois a dominar tal emoção...

quando teus olhos cintilaram mil promessas,

decerto os meus a cintilar desejos,

quiçá tua alma eu invadi também...

uma na outra a pregar as mesmas peças,

tão grande a força dos violentos beijos,

que tudo dão, mas nos tomam o que se têm!

 

invasões da alma III

 

em geral pensa o homem na conquista

de um território por ele inexplorado,

mas na verdade é ele o conquistado,

quer lhe pareça ser ele quem insista...

de fato só a percorrer a antiga pista

que a biologia lhe tem pavimentado;

foi pelos olhos da mulher examinado

e dos mil passos do amor percorre a lista...

o fato é que ela, mesmo que inconsciente,

foi preparando essa invasão de seu afeto:

é a mulher, ao pretender que a tomem,

que preencheu a alma do homem inteiramente,

feita a senhora ao pretender ser o objeto,

irresistível por seus beijos que o consomem...

 

invasões da alma IV

 

lembrei apenas das invasões do amor

que ocorrem com frequência e diariamente,

em artifícios é a mulher o seu agente,

a bela e a feia por igual tendo o pendor...

no coração se insinua sem temor

e pelas veias e artérias calmamente

atinge o cérebro em que a alma esteja assente,

nela penetra e assegura o seu andor...

que de algum modo em deusa se transforma,

pelo menos ao perdurar do encantamento,

a natureza a garantir-lhe proteção...

porém de um homem terá diversa forma,

algo vampírico em seu arrebatamento,

sua vítima a dominar sem compaixão!

 

calçadas solitárias I – 29 julho 22

 

se nossos passos se colassem pelas ruas,

nas tijoletas deixando uma aquarela,

oblongas tésseras no chão que se enregela,

vasto mosaico a percutir de falcatruas,

não são as solas dos pés deixadas nuas,

nem se desgasta o calçado a pisar nela,

um fantasma ainda mortal em fina estela,

tornado frio ao lamento de mil luas...

nada perdemos, mas ali os cravos ficam,

marchetados em cimento ou tijoletas,

que abandonamos em total indiferença;

chegam os pássaros e as secas sobras bicam,

para seus ninhos vão as fibras mais secretas,

deixando apenas o tiritar da desavença...

 

calçadas solitárias II

 

nossas passadas são ultravioletas,

que não podem captar nossos olhares;

ficam ali à espreita, aos milhares,

ressentidas das passadas mais completas,

ainda quentes das impressões diletas

dos traços novos de novos calcanhares,

da indiferença casual desses andares,

que sobre elas se espalham como setas...

em ruas cheias de pleno movimento,

novos passos superpõem-se em inclemência,

os mais antigos sendo aos poucos esmagados...

mas em ruelas retiradas seu assento

permite demonstrar em mais potência,

sobre as calçadas a expandir seus lados...

 

calçadas solitárias III

 

mal imagino os quantos passos teus

que se inscreveram nas pedras de minha rua,

cada marca a mostrar solidão nua,

mesmo os odores já perdidos para os céus...

só imagino quantos pedaços meus

já derramei, marchando à luz da lua,

quanto de mim nessas calçadas sua,

quão religiosos meus passos ateus...

mas são apenas bidimensionais

as criaturas dessa terra plana,

salvo se escorrem por entre ranhuras...

ou pelas fendas de calçadas terminais,

ainda ciosas do calor da antiga chama

sombras passadas das ilusões mais puras...

 

visões finais I – 30 julho 2022

 

já estou alcançando finalmente

a mais difícil e real constatação:

toda a minha vida calcada num padrão,

toda perdida no abismo do poente...

é inegável que tive méritos frequente,

mas fui tocado desde a infância por condão,

por mais me rebelasse qual tufão,

minha rebeldia seguiu a senda assente

por meus antepassados e contemporâneos,

fui somente outro capítulo na história

de minha própria vida, a maior parte

sendo a atuação de arcaicos sucedâneos,

ao pé da página sem me tornar em nota inglória,

por tantas lascas que roubei da antiga arte...

 

visões finais II

 

contudo eu sinto que ainda posso respirar

na iminência da derradeira hora,

em que vou transformar-me em meu outrora,

sem nada mais que te possa revelar...

porém se a arte um dia fui fragmentar,

copiando exemplos de quem partiu embora,

buscando ainda original tornar-me agora,

nesses pedaços da estrutura milenar,

sei muito bem que herdei as minhas praxias,

sou simplesmente um outro ser humano,

que no futuro talvez queiram imitar...

tive a coragem de percorrer minhas vias,

sem me perder em horóscopo ou arcano,

só a Dionyso e a Apollo me entregar...

 

visões finais III

 

visto que a arte que sempre me inspirou

foi aquela em mim atuada pelo amor,

por paixões mornas todo o meu pendor:

cupido cego sempre em mim morou...

assim suas tortas setas me emprestou

para mil poemas elegíacos compor,

em sua aljava mil corações repor:

tomei sua venda para o amor que me cegou...

e assim contemplo cego esta visão

de que esse amor nunca foi original,

segui apenas as ilusões de meus avós,

ano após ano, a marchar na multidão,

que toda a arte foi amor só consensual,

meu coração agrilhoado nesses nós!

 

visões finais IV

 

percebo agora que se poemas escrevi,

sem ter nenhum copiado realmente,

toda essa arte só em mim se fez presente

pela linguagem arcaica que antes li...

nenhuma frase nova eu redigi:

por mais buscasse renovação fremente,

não foi escrita em linguagem renascente,

usei apenas o alfabeto que aprendi...

e por mais tenha escrito em abundância,

não inventei jamais um novo idioma,

segui apenas o que me foi legado;

e aqui recordo em derradeira instância

essa ancestralidade que me doma

na arte e amor com que fui aquinhoado!

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário