sexta-feira, 19 de agosto de 2022


 

 

TOQUES INDECISOS I  (2008)

(Nastassia Kinski)

 

Não tomarei essa culpa sobre mim:

sou inocente ante o sangue do Cordeiro;

minhas falhas eu paguei.  Paguei inteiro

o preço de minha própria redenção.

 

O cordeiro então fui eu, paguei assim,

vítima pura, o preço da paixão

sentida um dia por meu coração

e que agora me assolou em derradeiro.

 

Algo me disse que teve um certo efeito

sobre minha alma.  A algema se partiu

e nem compreendo como pude à sua vaidade

 

servir um dia e sentir, tão contrafeito

o seu descaso, quando agora reluziu

em mim a espuma irreal da liberdade.

 

TOQUES INDECISOS II  (27/12/2009)

 

Agora, quando sonha o coração

e nela pensa, percebo, aborrecido,

que o que chamei de amor então sentido

era de fato bem outra exaltação.

 

Eu percebi suas dores.  Compaixão

instalou~se em meu peito dolorido,

por minhas próprias mágoas malferido

e interpretei de outro modo essa emoção.

 

Agora, quando olho no imo peito,

só vendo anestesia e incerto passo,

percebo qual é o nome que, em verdade,

 

possui tal ilusão, sem mais defeito.

Eu nunca fiz questão de seu abraço,

porque sentia tão somente caridade.

 

TOQUES INDECISOS III

 

A gente pensa ter de fato liberdade

para escolher amor ou recusar-se,

tudo é porém o fruto de enganar-se,

que o mundo exige sem longanimidade.

 

E por maior que nos seja a integridade,

a nossa escolha está no que oferece

e nem sequer a lastimosa prece

nos poderá erguer em majestade,

 

se não nascermos em profícuo  berço,

são coroados reis só os da dinastia,

salvo por ato de grande violência;

 

só dedilhamos as contas desse terço,

que recebemos na primeira litania

e só nos resta aguardar com mais paciência.

 

TOQUES INDECISOS IV – 5 fev 21

 

Como se explica que, numa favela,

dois irmãos sejam criados igualmente

e tenham fado bastante diferente,

mesmo passando por uma só janela?

 

Um se deixa levar pela procela

e segue a trilha do tráfico inclemente,

o outro estuda, porque quer “ser gente”

e do saber recebe a clara vela.

 

Talvez um dia se torne delegado

e precise de prender o próprio irmão

ou ao invés, tornar-se bom advogado

 

e em sua defesa vá até o tribunal...

Foi o destino que lhe deu essa missão

ou por esforço cumpriu todo o ritual?

 

TOQUES INDECISOS V

 

Mas veja bem: se não houvesse escolas,

esse menino pobre estudaria?

E se o tráfico então não se expandia

não envolveria o irmão em duras molas?

 

Sempre é possível fazer escolhas tolas,

mas se tornar um rei não poderia;

no banditismo facilmente morreria:

voam as balas mais que pombas-rolas!

 

Tudo depende das oportunidades

e das escolhas que recebe alguém,

que a lâmpada de Aladdim nunca existiu;

 

tudo depende das dificuldades

que se consiga superar também,

na teimosia de quem mais resistiu!...

 

TOQUES INDECISOS VI

 

O tempo e a vida são toques indecisos

que nos tateiam quais palpos de aranha;

cabe a um decifrar essa artimanha,

cabe a outro palmilhar úmidos pisos.

 

Mas a vida só te toca em dedos lisos,

são mais tentáculos que o destino amanha,

em vasto oceano o mar assim te banha,

indiferente a teus prantos e a teus risos.

 

Mas se tomares o tempo nas tuas mãos

e o moldares qual um deus de argila,

irá tomar qualquer feição que deres

 

e se encheres de vida teus pulmões,

talvez flutues até a mais alta fila,

mesmo não sendo aquela que quiseres.

 

TOQUES INDECISOS VII – 6 fev 2021

 

Porém entende: nem o tempo, nem a vida,

de forma alguma são teus inimigos;

caso te esforces, te indicarão abrigos,

mas se recuares, já tua luta está perdida.

 

Não são um sonho ou uma deidade colorida:

ali se encontram, talvez cheios de perigos,

porém transforma teus erros em amigos,

escolhe um fio na emaranhada lida!...

 

E caso vejas que esse filamento

não te conduz a nada ou a mau destino,

há mil novelos flutuando a teu redor:

 

sempre é possível alterar teu movimento:

um outro fio escolher ainda mais fino,

que te conduza, quiçá, a alvo melhor!...

 

TOQUES INDECISOS VIII

 

Mantém na mente que tudo é só espuma...

(Disse o poeta que eram só flutuantes...)

Surgem e explodem iridiadas por instantes,

depois que apaga, para onde a bolha ruma?

 

Já prendeste em tuas mãos o que se esfuma?

Toda fumaça é só uma hidra delirante,

que te enche de negror, tisne vagante,

como um cavalo exausto que se escuma...

 

E se nada é bem real nessa quimera,

não é motivo para creres no oriental:

(se tudo é maya, faz-se inútil toda a espera...)

 

Mas ao contrário, lança o tempo no cadinho

e nele ferve o teu bem e todo o mal,

até que forjes para ti novo caminho...

 

TOQUES INDECISOS IX

 

Ou então podes te permitires sufocar

pela espuma transitória ou no vapor

ao teu redor, ofegando em estertor,

só a umidade os teus passos a orientar.

 

Ou poderás o ínvio tempo condensar

e utilizá-lo para o teu favor,

a constituir qualquer obra de valor,

qualquer a área em que fores trabalhar.

 

Porque do tempo tens só uma impressão:

igual que a vida, ele passa sem parar

e cabe a ti agarrá-los firmemente,

 

tal qual fizeram teus pais em ocasião:

mágico instante foi o teu gerar:

a vida e o tempo na armadilha de um presente...

 

TOQUES INDECISOS X – 7 fev 2021

 

Assim consegues amassar teu pão,

como consegues maneirar teu filho,

caldo da vida, massa em futuro trilho,

com rubras gotas de teu coração.

 

Assim consegues amassar a ilusão

e transformá-la em alguidar de milho,

prendê-la em firme arame como atilho,

num breve instante de materialização.

 

Não é o tempo mais do que argamassa,

não é a vida senão tempo na prisão:

semeia o tempo e a vida que o perpassa,

 

porque teu tempo não percas em conquistas,

prende teu tempo e tua vida em percussão

para moldares para ti tuas próprias pistas.

 

TOQUES INDECISOS XI

 

De modo idêntico, não te pertence o amor

que não recebes como bênção pura:

teu amor roubas em gotas de doçura

dos indecisos toques de calor...

 

Tomas a massa do carinho com vigor

e o sentimento que nela perdura,

diluído entre as sombras, em fervura

e o recolhes num abraço constritor.

 

Mas amor tomas para o dar a alguém,

só que esse amor é teu, de mais ninguém,

foste tu que o forjaste com tua vida;

 

e quando alguém te dá parelho sentimento,

conserva-o igual em si todo o momento,

até o instante final da despedida...

 

TOQUES INDECISOS XII

 

Pois não sentia tão somente caridade,

era apenas para mim o amor que dava,

que dentro de seu peito despencava,

tal qual se fora uma bênção de verdade...

 

Nunca foi preito puro de humildade,

mas sim o orgulho que em mim se achava

e nesse ato de entrega demonstrava

dentro de mim sentir superioridade.

 

Mas bem depressa percebeu quão indeciso

era esse toque de amor que a apalpava

e dessa forma, sempre dele desconfiou;

 

que retirar-me, enfim, fosse preciso,

de novo a conservar-me o amor que amava,

nessa constante indecisão que em mim notou.

 

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