terça-feira, 9 de agosto de 2022


 

 

MAMÃE TERRA (Mat Zemlya)

(Folclore russo, recolhido e atualizado por Mary Catherine Koroloff [M. K. Hobson],

A lenda original se referia ao tzar Ivan Grozny [o Terrível ou o Admirável],

versão poética William Lagos, 21 dez 14)

 

MAMÃE TERRA I – Primeira Parte

(Na ilustração, Nastassiya Kinski)

Três soldados andavam pela neve

no ano de Mil Novecentos e Vinte e Dois,

durante a guerra civil, terrível

como não houve nem antes, nem depois;

terrível mais o inverno e, muito em breve,

morreriam todos três da dura fome

que suas entranhas a mastigar consome,

no frio tornada ainda mais terrível.

 

Haviam recebido apenas as rações

para sete dias e duas semanas já passavam:

a sua missão era encontrar o Inferno!

Algumas pílulas de energia também levavam,

mas para o Cabo Pudovkin más impressões

causavam, tornando os homens violentos

e incapazes de mostrar bons sentimentos:

não as tomara, apesar do frio do inverno...

 

Dois dos soldados, porém, que o acompanhavam,

as suas haviam consumido inteiramente

e ao Camarada Gavorkian tinham matado

para tomar-lhe as que guardava finalmente.

No outro dia, os dois o interrogaram

e aoTovaritch Ivanov a sua latinha (*)

ele entregara, com as pílulas que continha,

que pelo solo se haviam espalhado

(*) Camarada

 

enquanto com o Tovaritch Blotski ele lutava,

para depois as engolirem com a neve;

já era episódio há quatro dias transcorrido...

A dormir Pudovkin mal se atreve,

pois da maldade dos outros desconfiava

e os ameaçara com a ira de Tchernov,

seu comandante, cujo temor ainda os comove,

mas disciplina, certamente, haviam perdido.

 

MAMÃE TERRA II

 

Pudovkin, agachado, descansava,

por sob os galhos das árvores despidas,

com os braços bem cruzados contra o peito,

indiferente às discussões renhidas,

com que Blotski a Ivanov reprovava;

segundo ele, o outro errara na leitura

da bússola e os levara àquela agrura,

mas Ivanov garantia haver defeito

 

causado pelo frio.  Pudovkin só pensava

no antigo campo de seu avô Nikolai

e nas histórias que o velho lhe contara...

Por possuir granja, como Kulak vai

ser fuzilado pela milícia que o acusava,

do grave crime de ser um latifundiário;

mas trabalhara igual que um operário

na fértil terra negra que ele amara...

 

Pudovkin bastante lamentara

não ter podido vir e defendê-lo,

mas era longe o colégio de Kiev,

em que estudara com o maior zelo

e ao Partido há tempos se ligara...

Mas se pudesse vir, que serviria?

Aquela gente também o fuzilaria,

sem discutir, mediante uma ordem breve...

 

Com toda a fome que agora ele sentia

e que enganava com casca de vidoeiro,

Pudovkin até sentia falta das rações,

duras, sem gosto, mas que aqueciam ligeiro,

que algum produto químico garantia

dentro do invólucro de folha de estanho,

que normalmente lhe davam enjoo tamanho

e que trocava nas primeiras ocasiões...

 

MAMÃE TERRA III

 

Eram uma invenção do Comandante

Tchernov, que cursara universidade

e como engenheiro químico se formara,

coisas criando com regularidade,

novos artigos, conforme achava interessante:

cobertas de borracha, em vez de cobertores,

botas gigantes com amortecedores –

porém que a marcha a ninguém facilitara...

 

As botas e as cobertas somente os afastavam

do contato amigo com sua velha terra

e até mesmo a branca neve derretiam,

mas depois se endurecia e, nessa guerra,

muitos de seus camaradas congelavam...

Não podiam parar em um só lugar,

constantemente precisavam de mudar

e dessa forma, muito mal dormiam...

 

Mas Tchernov os queria mesmo aborrecidos,

para abafar os seus melhores sentimentos

e quando entravam numa aldeia imperial,

segundo classificava, em tais momentos,

fazia matarem a todos os vencidos,

juntar as provisões e então queimar

a aldeia inteira, para nada mais sobrar

aos adversários, a quem culpava por tal mal.

 

Mas agora, haviam as pílulas terminado

e lhes restava tão só ferocidade,

mas precisava completar a sua missão

e ao ver que Blotski, por animalidade,

espancava a Ivanov, num prazer descontrolado,

usando um galho que acabara de quebrar,

Pudovkin então lembrou-se de tocar

A sua zhaleika, que esculpira com paixão. (*)

(*) Pequena flauta de madeira.

 

MAMÃE TERRA IV

 

Já outras vezes aos soldados acalmara,

tocando a flauta em suave melodia;

logo Blotski seus golpes suspendeu;

Ivanov, ainda agachado, igual ouvia...

Graças a Lênin! – Pudovkin pensara.

Vamos ao menos os três morrer em paz...

A música a alma eslava satisfaz;

seguiu tocando e então se surpreendeu.

 

Surgira ante eles uma velha mulher,

bastante gorda ou então, bem enroupada;

somente podia lhe ver as mãos e a face,

em um tom negro profundo revelada;

nas mãos o sal e o pão que se requer,

khleba a oferecer aos visitantes,

mais o sali para descansar os viajantes,

se bem cansaço em seu todo se estampasse...

 

Vestida estava igual que camponesa:

um sarafano vermelho a recobria,

um cinto negro da mais pura lã,

uma kopashnik de pérolas vestia, (*)

o pão e o sal sobre toalha de nobreza...

Ivanov e Blotski sobre ela se jogaram,

com mãos em garra o pão preto disputaram...

“Bem-vindos ao Inferno!” – disse ela, nesse afã.

(*) Estola bordada com joias ou bijuterias.

 

Os três a seguiram sob a luz da lua,

as árvores ao redor em esqueletos,

por uma estrada de terra bem batida,

com a neve recoberta por gravetos...

Mas quem mantinha aquela senda nua?

Todo o gado fora morto nessas guerras,

Gamos e renas haviam fugido para as serras,

Mas estava a trilha claramente definida!...

 

MAMÃE TERRA V

 

“São meus filhos que conservam esta estrada,”

disse a velha.  E assim os três a acompanharam;

ficou Pudovkin um pouco para trás;

alguns ramos sob seus dedos se dobraram,

em outros pontos deixou casca marcada:

queria saber o caminho de retorno!...

Talvez o Inferno fosse até um pouco morno,

mas lá ficar não pretendia o bom rapaz...

 

Toparam finalmente com árvore gigantesca,

a maior que Pudovkin já encontrara:

tinha a envergadura de um navio de guerra

e sua ramada contra o céu já se espalhara;

só umas estrelas entre os galhos a vista pesca,

crescendo livre sobre o cume de um outeiro,

mais longe ainda a parecer o paradeiro

daqueles ramos que se alteavam como serra...

 

Sob o outeiro, abria-se caverna:

igual a piche surgia o seu negror,

mais larga que os portões do Kremlin;

indagou Blotski, tomado de pavor:

“Será segura essa escuridão interna?”

Pudovkin, com desdém, lhe respondeu:

“O que é seguro, quando a luz do céu

se abre para um túnel negro assim...?”

 

“Tchernov nos mandou achar o Inferno

e aqui estamos nós...  Vamos entrar.”

“Será que existe aqui qualquer comida?”

“Quem sabe, camarada, se ajoelha e vai rezar?

Não quer perder o Paraíso eterno?...”

“Rezar é proibido.  Eu sou um comunista!”

Blotski encarou a escuridão que avista:

“O Inferno dos padres eu levo de vencida!”

 

MAMÃE TERRA VI

 

A velha os encarou com impaciência:

“Querem ou não chegar até o Inferno?”

“Você é Baba Makosh?” – indagou Pudovkin.

“Vejo que me conhece, subalterno...”

“Mamãe Papoula – semente de potência...”

“Seu avô Nikolai foi meu amigo;

não o lamente – agora está comigo...

Mas esses dois não pensam bem de mim...”

 

“Desculpe, Mamãe, mas não são povo de aldeia...”

“Mesmo assim, muito sangue me plantaram...

Recorde, filho, em toda morte há alegria...”

Assim os quatro na caverna penetraram;

Pudovkin, na retaguarda, ainda receia,

com a faca a riscar cada parede;

não pretendia permanecer naquela rede,

um tanto inquieto com o que a velha lhe dizia...

 

Desceram por um túnel muito escuro,

no fim do qual, finalmente, havia luz,

desembocando em uma bela aldeia,

com isbás pintadas de um vermelho que reluz (*)

ou azul profundo, o ar límpido e puro;

porém não via qualquer pessoa ou animal...

Foram levados até o ponto mais central,

onde, em geral, a igreja é que se alteia...

(*) Cabanas de madeira.

 

Não estava frio e nem quente demais

e os três soldados caminhavam facilmente;

mas o edifício no lugar da igreja

deixou inquieto Pudovkin novamente:

era formado pelas raízes naturais

da enorme árvore que se erguia lá fora;

tarde demais, porém, para ir embora,

por mais que um templo a deus antigo ali esteja!

 

MAMÃE TERRA VII

 

Lembrou-se bem das histórias que contara

o seu avô e sentiu um calafrio...

“Esta é a casa em que mora meu marido,

o Deus do Inverno, meu esposo para o frio,

que doze filhos comigo um dia gerara...”

À carne assada o ar dentro recendia,

a queijo, peras e cereais, como sentia

nos celeiros que antes havia conhecido...

 

Mas ao redor de si havia riqueza

qual nunca vira, desde o início da guerra!

Em ouro e joias você decerto pensaria,

mas bem diversa a que o salão encerra...

Mais de mil sacos de trigo... Em sua magreza,

Pudovkin com cem presuntos se encantava,

carne salgada e batatas contemplava,

beterrabas e nabos gordos ainda via!...

 

Nos últimos anos, só couves consumira,

em ensopados, com uma colher de aveia

e a vodka habitual de sua ração...

Até de olhar o alimento se arreceia:

era comida que ele nunca produzira!

E se o acusassem de roubar do povo...?

Mas se perdia, no encanto do renovo,

com um respeito que era quase religião!

 

Mas Ivanov e Blotski não sentiam

o menor escrúpulo perante a situação;

os dois saltaram sobre um vasto queijo,

mordendo a cera, sem a menor hesitação;

enormes nacos desprendiam e comiam,

até caírem ambos, estufados,

num estupor de estômagos recheados...

Mas Pudovkin se guardou de tal ensejo...

 

MAMÃE TERRA VIII

 

Já ia indagar alguma coisa à boa velha,

que bem depressa lhe pediu silêncio.

“Meus filhos chegam,” disse simplesmente.

Abriram-se as portas, com fragor imenso

e doze criaturas contemplou de esguelha,

negras de piche, visíveis e invisíveis,

gamos e homens, figuras incompreensíveis,

que não podia fitar abertamente...

 

Não entendia se caminhavam ou troteavam

e seu olhar se perdia através delas;

contudo, falavam russo como gente,

não a linguagem dos palácios ou favelas,

mas as palavras que no campo ainda usavam...

Algumas delas, nem os popes conheciam. (*)

Bem no centro do salão já se reuniam

e no meio deles se ergueu figura diferente...

(*) Padres da Igreja Ortodoxa.

 

Era um gigante, vestido em grande luxo,

em prata e verde, mantos numerosos...

Só depois percebeu que era a sua pele!

Vastas camadas de tegumentos escamosos,

na testa chifres, como um velho bruxo...

Era o Deus Veles!... Seu coração quase parou.

O Deus do Inverno, que o comércio dominou

e o gado ampara, embora o mundo gele!...

 

Mamãe Makosh em seu ombro lhe tocou

e os dois, prontamente, se ajoelharam;

Ivanov e Blotski no chão permaneceram,

quais ratos gordos, dormindo se embolaram...

Veles em trono esmaltado se assentou

e os doze filhos trouxeram-lhe presentes,

que eram aceitos, com acenos imponentes

e um a um para os cantos se moveram...

 

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