quinta-feira, 29 de dezembro de 2022


 

ISQUEMIA I  (26/12/2009)

 

Escravo deste corpo, sou a besta

de carga do capricho feminino;

esgotado de injúrias, sou a festa

de azorrague cruel e dançarino,

 

que baila nas minhas costas e que encesta

talho após talho, grande ou pequenino;

seu galope provocando meu destino:

já há larvas nos cortes e o ar se empesta.

 

E não sei como furtar-me à triste sina

que me deixou a dama nesta hora,

que me esporeia em fulgor de castração,

 

porque esse amor é ave de rapina:

pendura-me em suas garras e devora,

bicada após bicada, o coração.

 

ISQUEMIA II

 

Não é em vão que amo.  Foi talvez

para mostrar o mesmo amor ao mundo,

ajudar no que possa, no profundo

desespero que dos homens mancha a tez.

 

Não espero que me ajudem.  Meu inglês

basta bem para o sustento.  Bem no fundo,

até prefiro ajudar do que, iracundo,

ter de sentir-me grato por minha vez.

 

Cuido de mim somente para ter

o suficiente, no evento ou na ocasião

de que de mim precisem quantos amo.

 

E como fico grato, ao perceber,

que quanto ganho basta para a mão

abrir àqueles que de amigos chamo.

 

ISQUEMIA III

 

Muito te amei um dia e já me espanta,

agora que de novo me procuras...

Que por ti eu já sofri penas bem duras,

que em tantos versos meu amor descanta.

 

A simpatia, é certo, se levanta

entre nós dois, mas são cores escuras

o que agora recordo das mais puras

emoções em que o outrora se agiganta.

 

Ainda me lembro das noites de esperança

e hoje me espanto do que em ti enxergava,

quando espremida a memória se remurcha,

 

de que me sobre apenas a lembrança

daqueles anos em que tanto te mandava

pequenas jóias de surpresa murcha!...

 

ISQUEMIA IV – 1º janeiro 2021

 

Amor pode ser belo ou asqueroso,

dependendo da forma em que se veja:

quando se tem o quanto mais se almeja,

quando se perde o dote mais formoso.

 

Às vezes, ao perder-se, em rigoroso

fiasco do destino que se enseja,

é quando belo ainda mais se alveja,

que é a perda desse amor que o faz airoso.

 

Mas tanta vez, se amor se tem nos braços,

desaparece, no instante do domínio,

da maravilha a vasta cordilheira...

 

E na memória furtiva de seus traços,

se encerra lentamente e sem fascínio,

aquela ânsia perdida por inteira...

 

ISQUEMIA V

 

É quando mais se passa pelo atroz

momento de certeza alvissareira,

fulgor da expressão mais condoreira,

que se percebe como amor é algoz.

 

Passado o ardor, de novo estamos sós;

passada a vez segunda e a terceira,

nada mais resta dessa ambição primeira

que a sensação de que não somos "nós",

 

mas somos dois, na fímbria dos abraços,

nessa tristeza pura e imaculada,

nesse inundar total do coração.

 

Já se sumiram do desejo os traços

e não se espera mais, se espera nada

dessa perfeita e carnal desilusão.

 

ISQUEMIA VI

 

Na realidade, é imperfeita perfeição,

enquanto se engalana o material,

na fruição de imenso amor carnal,

que se reveste de pequena imensidão.

 

Na realidade, só biológica emoção,

que se destina a perpetuar o cabedal

de nossos gens, não um dote espiritual

que se transmita para nova geração.

 

E nisso se resume o vasto orgasmo,

que se expande por momentos cintilantes,

todo o sistema nervoso a percutir,

 

por breve instante de perene pasmo,

o mundo inteiro suspenso por instantes,

a própria alma num espasmo a se fundir!

 

ISQUEMIA VII – 2 JAN 2021

 

Em tal espasmo se prende todo o espaço

e se suspende até a circulação,

o corpo inteiro compromete na explosão,

toda contida no cerne desse abraço

 

ou antes na recepção de tal congraço,

ventre com ventre em longa estremeção,

vida com vida contida em contração,

na eterna vida de tal momento escasso!

 

Todo o sangue a percutir no seminal,

trompas abertas na canção do amor

e bem no fundo, o óvulo na espera,

 

no mais real momento do irreal,

em dimensão de surpresa e de vigor,

a nova vida a se moldar da cera!...

 

ISQUEMIA VIII

 

Sangue vermelho em seu fluir leitoso,

tornado branco por força do carinho,

um vasto fluxo empós seu escaninho,

que meio ser já conserva, dadivoso!

 

E no momento de enfoque poderoso,

em que o cone de atração prepara o ninho,

é como um salmo a se entoar baixinho,

a nos vibrar pelos ossos, espantoso!

 

Qual o segredo que preside tal escolha?

Como essa esfera sabem quem precisa?

Como se espasma a santa seleção?

 

Na capa líquida que o integumento molha,

que arcana voz à receptora avisa:

“Esta é a metade de teu coração?...”

 

ISQUEMIA IX

 

Qual potestade esse escolher preside?

Pois sem dúvida rejeitam-se milhares;

não é penetração feita aos azares,

que o novo corpo escolhe com quem lide.

 

Qual a metade dessa nova vide

que o vinho irá verter em seus lagares,

a fermentar misticamente nesses lares,

tem já o óvulo mente e assim decide?

 

Ou algum tipo de gnômon toma conta,

qualquer egrégora ansiando por formar-se,

antepassados presidindo tal catarse,

 

enquanto a raça inteira estua e monta,

a presidir esse novel destino,

o sangue inteiro a salmodiar tal hino?

 

ISQUEMIA X

 

Qual potestade preside o nascimento

de qualquer árvore na prodigalização

desses milhões de sementes, multidão

que ao solo desce em tal falecimento?

 

Qual é o trono que dá florescimento

a alguma flor que não teve plantação,

que de um almácego não teve a proteção,

mas que floresce em majestoso alento?

 

Qual domínio permite que uma estrela

surja do cosmos em miríades de poeira,

nesse agregar de luz alvissareira?

 

E qual portento faz parecer mais bela

essa mulher que envolve a gravidez

dessa semente de incrível pequenez?

 

ISQUEMIA XI

 

Por isso falo aqui haver uma isquemia,

não acidente de caráter vascular

a ressecar um segmento cerebral,

mas a criar nova jóia de valia!...

 

Por isso falo da estranha sinfonia

de algum coro de anjos a entoar

e não apenas uma vez no individual

da Encarnação que o Espírito nutria!

 

Mas sempre que outra vida assim se cria,

em nossa raça, dita ser a semelhança

da própria Divindade que a soprou,

 

nesse fôlego da vida, que se alia

ao soldadinho que ao óvulo se lança

e se dissolve quando triunfou!...

 

ISQUEMIA XII

 

E novamente, quem a escolha presidia

ao forjar de um amor espiritual,

a transcender do corpo material,

será a mulher somente que escolhia?

 

Tal como o óvulo que para um só se abria,

pode a mulher, em místico fanal,

decidir quem dará semente ideal,

não só do corpo, mas da alma que se cria?

 

Todos os mais desprezando na isquemia,

quer o capricho só pareça transitório,

mas que de seu arbítrio é independente,

 

e ainda indago que coisa em mim se via

para aceitar-me um peito complacente,

minha semente a recolher como um cibório?

 

 

 

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