sexta-feira, 2 de dezembro de 2022


 

 

NA TOCAIA DO DEVANEIO I – 27 NOV 2022

(Renata  Sorrah e Suzana Vieira)

 

Enquanto o vinho lentamente se esvaziava,

Eu me deitava nos braços de minha amante,

Que encarava, compassiva e triunfante

A sua amiga que então solteira estava

E ao ver que a mim também se aconchegava,

Sugeriu de repente, em sentença delirante:

“Não queres beijar a ela neste instante?”

Decerto o vinho em tal momento a inspirava.

“Mas que manobra é esta que propões?

Minha fidelidade ainda está em vigor,

Por que deveria beijar outra mulher?

E ficarias depois ao lado de nós dois,

Para que em ti eu complete meu amor,

Mesmo iniciado com outra qualquer?”

 

NA TOCAIA DO DEVANEIO II

 

Então me disse: “Não é um amor qualquer,

Seria amor com minha melhor amiga...”

“Isto é motivo constante para intriga,

Quanta separação algo assim causou sequer!”

“Mas não será quando deseja e quer

A própria amante cujo amor te abriga,

Um outro beijo assistir talvez consiga

Pelo carinho que me une a essa mulher...”

“Bem, vai depender se quer ela ser beijada...”

“Tenho certeza de que está disposta...”

A amiga acenou com a testa sua disposição.

“Mas se essa tua sugestão for realizada,

Que devo confessar não me desgosta,

Qual será o preço para tal consumação?”

 

NA TOCAIA DO DEVANEIO III

 

“Preço nenhum,” ela disse, sorridente.

“Quero assistir e ficarei ao lado,

Nosso pacto de amor sem ser quebrado,

Não há traição, nem ciúme aqui envolvente...”

E como a outra me abraçasse fortemente,

Meu hesitar foi em breve superado,

Beijei as duas, um tanto embaraçado,

Mas beijo apenas não seria suficiente.

E depois de todo o ato consumado,

Após o prazer, a amiga adormeceu

E para a amante me voltei ansiosamente,

O seu carinho já estando preparado

E os seus beijos mais profundos então deu,

Em prazer mútuo de amor consensualmente.

 

NA TOCAIA DO DEVANEIO IV

 

Após um tempo, dormimos junto os três,

Por duas cabeças meus ombros ocupados,

Todos os cálices de vinho já esvaziados,

Fizera amor ou fora só embriaguez?

Cerca de hora depois, uma outra vez,

Senti os beijos da amiga ainda ansiados,

Enquanto a amante tinha sonhos mais pesados

E novamente com a amiga amor se fez...

Mas desta feita, por acaso, foi traição?

Será que a amiga me queria de verdade

Ou só usufruir de minha virilidade?

Não mais dormi, permeio à inquietação,

A contemplar o rosto dormente de minha amante,

Qual preço iria cobrar-me mais adiante?...

 

NA TOCAIA DA OSCILAÇÃO I – 28 NOV 2022

 

Há sempre uma incerteza na musa que flutua

Ao redor de meus cabelos;

Meu rosto acaricia, enquanto me contempla,

Avara em seus desvelos;

Às vezes me transmite em cópia multicor

Seu dom avassalador,

Outras vezes se retrai, parece-me negar

Suspiro quer de amor

Ou então ela se zanga e fico desolado

Por essa altercação

Que juro nunca sei qual fora provocado

O desgosto da ocasião.

Meu amor nunca se abala e já me fez jurar

Que nunca a deixaria,

Houvesse quanto houvesse, que assim me maltratar

Sem medo poderia.

Ela medita às vezes e só então me dita

Versos de amor,

Ela ressona às vezes e só então me sona

Versos de olor,

Ela me envolve às vezes e só então me volve

Seus versos de incerteza,

A musa é sempre estranha, amor envolto em manha,

Em seus versos de altiveza,

A musa me convida a tal amor com vida,

Em versos de domínio

E a musa é amorosa, a dar-me um amor rosa

Em versos sem declínio.

 

NA TOCAIA DA OSCILAÇÃO II

 

Amor existe assim quando é pleno de amor,

Sem buscar desistência,

Suporta francamente a insensatez de seu pudor

Na firmeza da paciência,

Mas difícil faz-se embora lidar com tal malícia

Que nutre indiferença

Então chega o retorno e uma feroz delícia

Que a incerteza vença.

Porque essa incerteza é apenas relativa

E nunca absoluta,

Do amor não se duvida, jaz em certeza viva,

Até mesmo impoluta,

A incerteza é outra sobre o que está por vir

No alvéolo do amanhã,

Quanto amor me mostrará chegado esse porvir

E a segurança é vã.

Que o próprio amor silente se contém,

Prevendo uma emboscada

Da boca que se beija e que beijar não vem

Nas fraldas da alvorada

E é sempre necessário controlar o meu agir,

Vanguarda na tocaia,

Mas o amor permanece, sem nunca desistir,

Que não recebe a vaia,

Apenas a expressão no rosto indiferente

De sua desimportância,

Contempla a mascarada montada na sua frente

E arrisca sua constância.

 

NA TOCAIA DA OSCILAÇÃO III

 

Mas sem ter ilusão de que haja alguma afronta

No rosto ensimesmado,

Que não é para mim que seu descaso apronta,

Na face conservado,

Simplesmente se sabe da mínima importância

No rol desse seu mundo,

Tantas coisas sobrepõem-se pejadas de constância

Em seu querer profundo.

Não obsta, há a certeza, por mais diga o contrário

Que o amor é verdadeiro,

Mas quais sonhos oculta no seu consuetudinário,

Na fronha e travesseiro,

Os sonhos que me afirma jamais se recordar,

Quais hidras encontrou?

Ou então, pelo contrário, que culpa a se negar

De quanto praticou?

Mas é preciso confessar que a musa que me inspira

Até malgrado seu,

Nos meandros de minha mente de certo modo gira,

Nesse inspirar que deu

E assim quantos caprichos que faça e que desfaça,

Amores são de fera,

À sua maneira estranha, porém confiadamente

Que irei tudo aceitar

E me flagro a pensar inesperadamente:

Será maior que o meu o amor que me vai dar?

 

NA TOCAIA DO JOGRAL I – 29 NOV 2022

 

Se por acaso sai de mim uma canção

É a de sempre te encontrar ao fim do dia

E a meu lado te achar quando viria

Nova manhã a me acordar o coração;

Se brota em mim instante uma ilusão

É continuar junto de ti nesta agonia

De amor constante que nunca perecia,

Mas que me oprime os alvéolos do pulmão.

Porque sempre amor de verdade é doloroso,

Por mais se saiba total reciprocado,

Sempre a serpente de uma escama se perder,

Porém se guarda cada instante prestimoso,

Que jamais possa no porvir ser olvidado,

Mas que na alma se enraíze o seu poder.

 

NA TOCAIA DO JOGRAL II

 

Pois sempre existe uma certa insegurança,

Não importa ter sido o amor primeiro,

Ou amor puro que se julgue derradeiro

E que se amarra nas cordas da esperança,

Sempre haverá uma certa desconfiança

De que este amor que nos chegou ligeiro

Ou que custou a chegar, por altaneiro,

Não seja mais que o filão de uma bonança

E só o fato de se compor uma canção

Ou então rezar pela sua permanência,

Indica de antemão temer-se haver desilusão,

Porque amor, por mais que seja espiritual,

É como a sombra que morre em sua inocência,

Ao se apagar a luz do seu ritual.

 

NA TOCAIA DO JOGRAL III

 

E no entretanto, quantas vezes canto

Que permaneça firme do meu lado,

Este amor que não seja inacabado,

Mas se construa nas fibras de seu manto,

Que este amor por que suplico e que descanto

Permaneça sempre firme por mais atribulado

Ou por momento de desdém seja marcado,

Que é amor humano, tende a morrer, portanto

E sei ser ilusão, por mais que o afirme eu,

Que possa ressurgir após a morte,

Como algo mais do que amizade em seu portento,

Porque os espíritos que a morte reviveu,

Não buscam sexo, a partilhar da mesma sorte,

Pois não se casam e nem se dão em casamento.

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