quinta-feira, 17 de dezembro de 2020




 

 

COPEIRO I – 27 JAN 20

 

Muitas vezes, quando a louça vou lavar,

separo, com cuidado, esses talheres

que nessa grade coloquei do escorredor,

deixados lentamente até secar...

 

E lembro então dos homens e mulheres

que, no passado, a idêntico labor

foram, com tédio e cuidado, se aplicar,

na idêntica atenção a tais misteres.

 

Fico a pensar, no mesmo ideal obscuro,

em quanto tempo inútil vou gastar,

enquanto outrem dorme a seu contento...

 

Talvez anos depois, no meu futuro,

vá mais alguém talheres separar

e pensará, quiçá, neste momento...

 

COPEIRO II

 

Na verdade, lembrar devia do presente,

em quanta gente leva a louça agora

ou passa água e depois põe na lavadora,

que, em teoria, melhor limpeza assente...

 

Lembro de um tempo já quase indiferente,

cem dias mortos lá no meu outrora,

em que pagava refeições nessa demora

de lavar pratos dos outros, justamente...

 

sei que hoje em dia, meio século passado,

paga-se alguém para fazer esse trabalho

em minha casa, porém ainda há feriado

 

ou qualquer fim de semana, de que o pecado

dessa obra servil a mim confere o talho,

a Ceeletê não se achando do meu lado!...

(*) Consolidação das Leis Trabalhistas

 

COPEIRO III

 

Lembrei agora que o Deuteronômio indica

uma exceção para o Quarto Mandamento,

desde que eu o santifique em pensamento:

“Salvo no que se refere ao comer”, no texto fica.

 

Lavar a louça, portanto, só me intica,

desde que não me atabalhoe ressentimento,

esse trabalho a consagrar nesse momento,

por mais me afaste de atividade rica.

 

E aqui estou eu, um septuagenário,

forçado a lavar louça eventualmente...

Muito melhor que deixar tudo amontoado

 

para a doméstica, concluído o semanário

repouso, renovada e diligente,

dando um suspiro ao ver tudo já lavado!

 

VERIFICAÇÃO I [30/4/2008] – 28 jan 20

 

Os melhores já entregaram.  Para casa

ou para os bares foram descansar:

somente fiquei eu a esperar

pelos restantes, que impaciência embasa...

 

Já excedi o tempo que me apraza

o meu regulamento.  Mas ficar

a mim mesmo comando, até chegar

a derradeira prova que me atrasa.

 

Eles amarram.  Ficam perguntando

as mais simples das coisas.  E parecem

nunca ter visto um texto de informática.

 

Fico no aguardo.  A noite vai passando,

hora por hora, enquanto eles se esquecem,

para abusar da boa-vontade mais simpática...

 

VERIFICAÇÃO II

 

No ano seguinte, acabou-se essa mamata:

perdeu as eleições o meu amigo

que era então reitor.   Saí consigo,

aposentado bem além da hora exata...

 

meu filho assumiu, desde essa data,

as aulas que eram minhas, porém digo

que nunca deu à paciência tanto abrigo

como esse que meu peito sempre acata...

 

Sei bem porquê...  De fato, tinha pena,

não me importava que tantos abusassem

e finalmente solitário me deixassem

 

somente com o porteiro nessa cena...

Na leitura de algum livro, diligente,

eu esperava, ainda sorridente...

 

VERIFICAÇÃO III

 

Depois, descia para casa a pé

as longas ruas, perigo não temendo,

bem conhecido na cidade sendo,

conhecedor desse lugar, até,

 

em que os drogados manifestassem fé

nesse deus deles de poder tremendo,

suas concentrações igualmente conhecendo,

naquela praça da igreja no sopé...

 

E assim descia, sem maior dificuldade;

um conhecido vez que outra a acompanhar,

esperançoso de fazer-me confissões...

 

Noutros momentos a demonstrar liberalidade

a algum mendigo que viesse me abordar

ou a repelir de certas damas atenções...

 

VERIFICAÇÃO IV

 

Embora alguns do oposto advertissem,

as ruas desertas são bem mais seguras;

já de longe se percebem essas impuras

intenções com que é possível me afligissem;

 

mas sem dar tempo para que convergissem,

já dobrava na esquina contra um muro;

mas foi tão raro encontrar algum perjuro

ou quaisquer que então me perseguissem...

 

Quem eu achava com frequência era a mim mesmo,

em outras noites descendo a mesma rua,

pobres fantasmas que eu podia atravessar...

 

sempre mais lentos, caminhando a esmo,

sob a luz morta de uma morta lua,

mortos de mim, mas sem jamais me ameaçar...

 

 

RICERCARE I – 29 JAN 20   (30 JUN 79)

 

Nos encontramos apenas meio instante:

então nos rebrilhamos, em gesto lampejante

e nossos corpos nus, nesse esplendor constante,

luziram de louvor, no rítus do semblante.

 

Nós dois nos espelhamos na mágoa dos olhares:

nós dois nos consolamos, recíprocos altares,

em bálsamos benditos, em gestos tutelares

de carne amando a carne em meigos deslizares.

 

E agora que esta hora pertence a nosso outrora,

desengajado o corpo, a mente se demora,

querendo recobrar a mesma exaltação...

 

Mas ela já partiu, também chegou sua hora,

No morno gesto azul de tão brutal aurora,

estraçalhando ao vento a mente e o coração.

 

RICERCARE II

 

Estraçalhando ao vento a mente e o coração

nas cem lembranças da antiga exaltação,

ainda viva dentro em mim toda a emoção,

sempre presente a surpreendente sensação.

 

É tão estranho que a a dor vá diminuindo,

o maior dom do biológico possuindo,

que sua lembrança vá-se aos poucos contraindo,

toda a saudade e seu rancor se diluindo,

 

porém em mim descubro que do amor

nutrido em ontens, hoje ainda está presente,

a primavera no outonal subjacente.

 

E se me ponho a redigir novos sonetos,

é que o recordo inteiramente em seu ardor,

porém dos males já me esqueci completos...

 

RICERCARE III

 

Porém dos males já me esqueci completos,

até recordo de alguns ciúmes indiretos,

de alguns rancores mastigando desafetos

ou mesmo da saudade os mortos fetos...

 

Mas não são mais do que recordações,

tal como o olfato relembra as sensações

de um dia de chuva, mas não as posições

que o corpo inteiro ocupou nas ocasiões...

 

Não sei dizer se isto acontece por igual,

entre os demais sendo apenas natural:

que o som do amor se apague derradeiro,

 

que o tom do beijo preenchesse todo o ar,

que a cor do abraço te pudesse acalentar,

mas bem queria que o sentisses por inteiro...

 

RICERCARE IV

 

Mas bem queria que o sentisses por inteiro,

que dos beijos de amor todo o luzeiro,

mais do que as marcas sobre o travesseiro,

permanecesse a conservar seu cheiro,

 

nas faldas da lembrança de teu peito,

que do ato de amor todo o direito

permanecesse dentro da alma afeito,

muito mais que frias dobras de teu leito...

 

Para ti escrevo, que já foste amante

ou para ti que só afagaste teu desejo,

gozada ou não a lembrança de algum beijo,

 

igual que brilha dentro em mim constante,

quando nós dois, em zodiacal ensejo

nos encontramos apenas meio instante...

 

ITERAÇÃO I – 30 jan 2020

Não sinto ânsia de publicar meus versos,

esta é uma urgência que nunca me acomete,

nem espalhar tais versos qual confete

pelos esgotos sob sargeta imersos;

eu os reservo apenas aos conversos,

a quem pareça que meu verbo afete,

ou porque goste ou sinto que lhe espete

a hipocrisia de alguns ideais dispersos;

não sou apóstolo, transmito por impulsos

o meu querigma, talvez por desfastio

e a cada um que envio, eu guardo vinte,

no aleatório transmitir desses avulsos,

em que oscilo na impotência de meu cio,

a surpreender, talvez, meu próprio acinte.

 

ITERAÇÃO II

 

Agora haverá suspeita algo maior

que lá no fundo de fato eu quereria

e mil eucaliptos em polpa tornaria,

até que a gente soubesse alguns de cór...

que após a morte eu vire antologia,

das almas sofrendo derisão menor,

que então já me plagie um seguidor,

outros tantos a entoar minha elegia.

mas nisso que eu falo e que repito,

nessa temática aborrecendo a quem me ler,

eu sou honesto e se tais versos digito

é por sentir que esse talento violento

que tanto exige não deva se perder,

mas se evolar na vastidão do vento.

 

ITERAÇÃO III

 

Assim me atrevo, outra vez, a repetir,

de aborrecer a mim mesmo corro o risco,

que as mil ovelhas desse meu aprisco

alguma coisa me compele a distribuir;

e o próprio fato de querê-las imprimir

implicaria em cem deveres como o visco;

onde acharia o tempo, quando pisco

e já me atraso mais um pouco em redigir?

Mas como sinto que o talento que me impele

não me pertence, que os versos não são meus,

mas tão somente um tesouro por que vele,

então me obrigo em meu teclado a digitar

dos mais sinceros aos mais tolos fariseus,

enquanto a mente prosseguir a funcionar.

 

SONHO GNÓSTICO I – 31 JAN 2020

 

FICO SENTADO À BEIRA DE MINHA CAMA,

OBSERVANDO O MOVIMENTO DE MEUS OLHOS,

ENQUANTO CATO, TRANQUILO, ESSES PIOLHOS

QUE EM VERSOS SE TRANSFORMAM PARA A DAMA;

CAEM AOS POUCOS NA PALMA QUE RECAMA,

NÃO DO COURO CABELUDO NOS ESPÓLIOS,

MAS DO INTERIOR DA MENTE SOBRE ESCOLHOS

QUE TÊM AS PÁLPEBRAS EM LACRIMADA CHAMA.

TALVEZ NÃO GOSTES DA SÍMILE, MAS OCORRE

QUE TUDO SERVE PARA MINHA INSPIRAÇÃO

E SE ALGUM MEDO EU TENHO, É REPETIR

QUALQUER POEMA QUE NO PASSADO MORRE,

MAS INSISTINDO EM NOVEL REVELAÇÃO

NESSES MOMENTOS NOS QUAIS QUERIA DORMIR.

 

SONHO GNÓSTICO II

 

OCORRE QUE JÁ TANTOS SE ESCREVERAM,

SENDO LANÇADOS NAS MALHAS DA REDE...

DE FORMA ALGUMA, PORÉM, ISSO ME IMPEDE:

HÁ TANTOS ANOS QUE MUITO POUCOS LERAM;

A MALHA DESSES QUE ANTES RECEBERAM

ERA DE FATO BEM MENOR ADREDE;

MAIS DO QUE ISSO, A MENTE É QUE ME PEDE

QUE TRAGA À LUZ ESSES QUE FALECERAM,

POIS QUANDO VEJO MUITO POEMA ANTIGO,

SÃO, AFINAL, TALVEZ QUARENTA MIL,

PERANTE MUITOS DELES ME SURPREENDO,

DA CAMA À BEIRA A MEDITAR COMIGO:

QUEM DESSES TANTOS FOI O REDATOR SERVIL,

MORRI NAQUELE TEMPO E NÃO COMPREENDO?

 

SONHO GNÓSTICO III

 

FUI EU MESMO O DIÓSCURO A COMPOR

TANTAS ENCÍCLICAS CONTRADITÓRIAS DE TEOR,

TANTOS SONETOS DE ERÓTICO LOUVOR,

TANTAS PIADAS QUE IMPINGI SOBRE O LEITOR?

MAS QUANDO SOBE DO TECLADO ALGUMA IMAGEM

DO TEMPO VELHO, RENDO-LHE HOMENAGEM,

REVISO AQUI, CORTO ALI, NUMA TRIAGEM,

DUAS OU TRÊS A COMPLETAR A SUA MENSAGEM.

ASSIM LHE DOU UM NOVO COMPLEMENTO

E LHE CONCEDO MODERNIZADO ACENTO,

BEM MAIS TÍMIDO MEU ATUAL ATREVIMENTO,

BUSCANDO DAR-LHE CINCO NÍVEIS DE SENTIDO,

ANTES DE À REDE SER RECONDUZIDO,

JÁ QUE O PRIMEIRO SE PERDEU NO OLVIDO.---

Nenhum comentário:

Postar um comentário