terça-feira, 29 de dezembro de 2020


  

RESÍDUOS I – 20 MAR 20

A ILUSTRAÇÃO FOI IDENTIFICADA COMO BARBARA STANWYCK

 

Encontro breve a marcar o travesseiro,

já esgotada a garrafa desse vinho,

amarfanhados lençóis em triste ninho,

sem mais carinho de um dom alvissareiro,

qualquer palavra a surgir, tola, primeiro,

uma resposta em tom mais escarninho,

voo mais rápido que inicia um passarinho:

como era frágil o que se tinha por certeiro!

 

Só o que restou do amor dito profundo

são três pequenos rebotalhos de mau tom,

ao se apartar o sentimento aventureiro:

restos de vinho do cálice no fundo,

uma só mancha solitária de batom

e apenas cinzas em lamento no cinzeiro...

 

RESÍDUOS II

 

Fiquei ali a pensar, sem entender

de que maneira ocorrera a dissensão,

o que fizera tal palavreado vão,

o que fazer para tais cacos recolher...

a porta ouvi, com estrépito, bater,

sem compreender a real conotação,

do banheiro em que retocar-se vão

os vestígios do amor a se esconder...

 

ainda esperava que se viesse despedir,

com um beijo talvez... e pediria

perdão por qualquer coisa que ousaria,

mas só escutei os passos a fugir

e quando a outra porta igual bateu,

em salto lépido meu coração estremeceu...

 

RESÍDUOS III

 

Em vão aproximei-me da janela,

seu carro vi depressa se afastando,

fora decerto grande o meu desmando:

é tão difícil compreender-se uma donzela!

Ao celular busquei ligar-me a ela,

mas só foram tilintares dispersando,

no seu caminho firme ia trilhando,

sem de sua bolsa desapertar fivela...

 

E dói assim...  Os dias se passaram

e nunca mais veio para atender meu toque,

contudo o cálice nunca quis lavar,

os resíduos no cinzeiro desmancharam

e a garrafa guardei em longo enfoque,

tão só o amor não consegui guardar...

 

RESTOS DE ONTEM I – 21 MAR 20

 

Existem esses que em fotos capturam

paisagens e pessoas irreais,

guardados para sempre mortos ais,

nos permanentes duplos que seguram...

 

também existem aqueles que procuram

dos mortos os gemidos imortais,

que se gravaram de danças e jograis,

nesses cadáveres de sons que nos perduram.

 

Eu apenas escuto e sinto e vejo,

em nada busco, os sons é que me vêm,

sussurrados às orelhas, multiformes...

 

E me limito a garranchar, disformes,

novos fantasmas em diário ensejo,

sem confessar o que de fato as linhas têm.

 

RESTOS DE ONTEM II

 

Fico a pensar até que ponto é um benefício

para um cantor a sua voz já falecida

ser conservada para por tantos ser ouvida,

ao seu repouso talvez causando um malefício?

 

Vive essa gente que em voluntário ofício.

no cinema ou em ópera envolvida,

tanta imagem de seu corpo já exaurida,

talvez dos pósteros a estimular um vício...

 

Mas está certo, foram então profissionais

e saberiam se em algum risco assim incorrem,

ao aceitarem do imortal um arremedo.

 

Então eu penso é em gentes mais normais,

gravados seus semblantes quando morrem,

que outros contemplam sem respeito ou medo.

 

RESTOS DE ONTEM III

 

Hoje há mania de se brandir um celular,

que tudo grava e tudo fotografa,

as imagens a reunir em vasta estafa,

as vozes todas igualmente a se copiar...

 

Para depois irem nas redes espalhar,

a exposição todo o pudor dali abafa,

sempre possível má-intenção que grafa,

colando a imagem com outra a misturar!

 

E tudo isso a ser lançado pelo ar,

percorre a terra e as praias de ultramar,

sabe-se lá o que lhe pode acontecer...

 

se essa imagem se irá algures deformar

e após a morte, malfazeja se tornar,

mil fragmentos dessa alma a desfazer...

 

NUVENS SALGADAS I – 22 MAR 20

NÃO É QUE NAO ENTENDA, POIS SEI BEM

QUE MAIS QUE A ÁGUA PESA O SAL MARINHO,

UM TRAVESSEIRO A DAR A CADA ANJINHO

ESSE VAPOR QUE NOS ARES SE SUSTÉM!

MAS FAZ-SE EM GELO ESSE VAPOR TAMBÉM

E CAI DEPRESSA, SEM NADA DE MANSINHO,

DAS CLARABÓIAS A QUEBRAR CADA VIDRINHO,

TOLDOS DE LONA PERFURA QUANDO VEM!...

TAMBÉM ENTENDO QUE SEJA A GRAVIDADE,

INFLUÊNCIA SOFRE DA TEMPERATURA,

MAS CHEIRO DE SAL TER DEVIA, ME PARECE!

HÁ IMPUREZAS PELOS ARES, NA VERDADE

E LONGA ESPERA LÁ NO ALTO DURA,

NÃO É ÁGUA PURA ESSE VAPOR QUE ENTÃO SE AQUECE!

 

NUVENS SALGADAS II

POR ALGUM TEMPO SE FALOU EM ÁCIDA CHUVA,

CAUSADA ACIMA PELA DEGRADAÇÃO

DESSES PRODUTOS DE HUMANA COMBUSTÃO,

A ATMOSFERA TORNANDO MAIS ESCURA...

EM MINHA ÁREA SE ADEQUANDO COMO LUVA,

ABERTAS TEMOS MINAS DE CARVÃO

E DAS CIDADES SE ERGUE A POLUIÇÃO,

AOS CÉUS ERGUENDO SUA NEGRA PRECE IMPURA.

E NESSA COBERTURA HÁ GRÃOS DE SAL,

MAIS DO QUE ÁCIDA, DEVIA SER SALGADA

A NUVEM BRANCA QUE NO AR FLUTUA,

PORQUE O SAL TAMBÉM É BRANCO NO TOTAL,

POR QUE A NUVEM NÃO SERIA AMARGURADA

E SOBRE A TERRA DERRAMAR LÁGRIMA NUA?

 

NUVENS SALGADAS III

SE POR ACASO NEGRA A NUVEM SE APRESENTA,

TEM MAIS DIVERSA A SUA COMPOSIÇÃO,

ENCONTRARAM UM POTEZINHO BEM À MÃO

E DERRAMARAM PARA O CÉU PIMENTA!

E SE AMARELO SOBRE A NUVEM JÁ SE ASSENTA,

É QUE MOSTARDA ESPALHARAM SEM NOÇÃO,

IGUAL CACHORRO-QUENTE EM OCASIÃO,

DEIXANDO A TOGA DO ANJINHO AMARELENTA!

PASSOU DA MODA FALAR DESTA POLUIÇÃO,

VÊM DA AMAZÔNIA A RECLAMAR FUMAÇA,

SEM RECORDAR QUEM NOS POLUI O MAR!...

OS RESPONSÁVEIS SE EXIMINDO DE ANTEMÃO,

MESMO QUE O ANJINHO ATÉ ACHE MUITA GRAÇA

NAS ESPIRAIS QUE VÊM SUA CAMA REFORÇAR!...

 

CONGREGAÇÃO I - Wm. Lagos, 21 OUT 03

 

Se duvidas de Deus, contempla as flores:

Elas existem, belas e concretas.

Não precisam de ti, pois são completas,

Nem compartilham tuas fomes, teus temores.

 

Se duvidas de Deus, contempla as flores:

Elas existem, meigas e perfeitas,

Mas não escutam tuas preces contrafeitas

Nem se comovem ao peso de tuas dores.

 

Elas existem, em plena natureza,

Perfumam teu olfato, com certeza

Agradam teu olhar e até murmuram

 

Ao farfalhar do vento; e, para ti,

No pensamento e coração perduram.

Elas existem... mas vivem para si.

 

CONGREGAÇÃO II – 23 MAR 20

 

É realmente tola essa ilusão

De que o mundo seja feito para ti;

Por todo o longo tempo que vivi

Nunca disso encontrei comprovação.

 

O mundo é natural em sua missão

De preservar a si mesmo, como vi;

Tais ilusões muito cedo já perdi.

De meus colegas a sofrer perseguição.

 

Ora se o humano por mim não se interesse,

Salvo como objeto de escárnio e de ciúme,

Por que por mim desabrochariam flores?

 

Portanto a Flora não dirigirei minha prece,

Nem contra Fauna demonstro um azedume,

Pois se a mim sequer pertencem meus amores!...

 

CONGREGAÇÃO III – 23 MAR 20

 

Desde o berço se forma essa ilusão:

Quando choravas, logo te atendiam,

Teu alimento  e teu cuidado forneciam

Esses gigantes de intensa proteção,

 

Que te davam constante a sua atenção

E que o mundo era teu todos mentiam,

Talvez sem pretender, porém faziam,

Até nascer após de ti um novo irmão.

 

Essa ilusão do Servo Onipotente

É dentre as urdefesas, primordial,

Em orações a se chamar “Papai do Céu”,

 

Mas o Papai Noel surgiu então inconveniente

E ao descobrires ser falso esse fanal,

À própria imagem de Deus recobre um véu.

 

CONGREGAÇÃO IV – 23 MAR 20

 

Deus não é gênio da lâmpada de Aladdim;

“Abre-te Sésamo” não escancara porta,

Se acendes velas, isso pouco importa,

Pior ainda para um santo de marfim...

 

E nem as flores erguem prece assim,

Apenas vivem sua vida, que conforta

A luz do Sol e essa água que comporta

Seu caule fino e sua raiz enfim...

 

E a Natureza toda, de tal modo,

Maior que seja a sua perfeição,

Deves olhar com a devida apreciação

 

E só a Deus agradecer por esse nodo

Que desde o berço te uniu à Criação,

Sem precisares suplicar pelo teu pão.

 

BOATO I -- 24/3/2006

 

Perdemos um amigo...   Segundo me contaram

Trazia no pescoço medalhas; sobre o peito

Imagens de outros santos, de servos sem defeito

Do Pai e Criador, que tanto suportaram,

 

Para manter a fé e em busca da verdade.

Sofreu igual que nós, quem mede o sofrimento?

Quem sonda as emoções, quem lê o pensamento

Daquele que perece?   É horror?  Tranquilidade?

 

Nos momentos finais, quando a morte vê de perto

Assistiu impotente, como qualquer que seja

Que a enfrenta inesperada, em tal lugar deserto...

 

Quem sabe o que perpassa nos corações secretos!

Buscando a proteção dos santos e da igreja,

Morreu qual Faraó...  tapado de amuletos!...

 

BOATO II – 24 mar 20

 

Pois quanta gente há que no pescoço um “breve”

Bem pendurado traz, por segurança,

Em trevo raro depõe a sua confiança,

Ou a patinha de coelho até se atreve

 

A carregar... tal pêlo morto cor de neve!

Se ao primeiro possuidor não deu bonança,

Por que a eles a traria sem tardança?

Que diferença faz se a pata leve?

 

Que diferença faz qualquer medalha

Ou anel ou colar glorificado

Ou mesmo a cruz desse Crucificado,

 

Se o portador leva uma vida de canalha,

No coração tanto mal guarda secreto,

Enquanto ao mundo expõe tal amuleto?

 

BOATO III – 24 mar 20

 

Nunca confiança em tais coisas demonstrei

E nem sequer de casamento uso aliança

É dentro dalma que se traz confiança:

Fidelidade só na mão não mostrarei.

 

Se realmente assim morreu não sei

Quem mencionei... O boato que me alcança

É de ter-se suicidado quando lança

Seu automóvel de uma ponte.  Que direi?

 

Não quero condenar meu pobre amigo,

Mas se a vida lhe estava assim pesada

E se afirmava ser bom Católico-Romano,

 

Na confissão encontraria o seu abrigo,

Qualquer que fosse a culpa acumulada,

Sem precisar a seu corpo causar dano!

 

BOATO IV – 24 mar 20

 

Ainda acresce ter sido um sacerdote

O irmão seu.  Sei que se davam bem

E certamente o absolveria também,

Antes da hóstia do divino convescote.

 

Mas para que tantos santos em rebote,

Se condenavam o suicida e além,

Nem sepultura consagrada antiga tem

Quem de sua vida recusara o dote...

 

Sei bem que as coisas mudaram hoje em dia

E alguma bênção a igreja permitia,

Pois sepultado ele foi no cemitério...

 

Quiçá dos santos o cordel murmuraria

Ao ouvido do padre, uma bênção que podia

Compensar desse coitado o despautério...

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