sábado, 4 de junho de 2022


  

ATOS DE AMOR LEMBRADOS I – 29 MAI 22

 

Como podes saber se o que recordas

foi verdadeiro ou tão só mitomania?

Talvez te lembres do que nunca existia

e do que houve nem sequer te acordes...

 

Sendo poeta, sou levado à fantasia

e quiçá com minha lembrança não concordes,

bem diversa a ser do que recordes,

mas foi tão longa a vastidão que nos unia!

 

Assim eu lembro o calor de teus abraços

e o movimento carinhoso dos quadrís,

acalentando anseios meus virís

e tu recordas a saliva nos teus traços,

ao receberes minha carne tensa,

na vibração com que a carne se condensa.

 

ATOS DE AMOR LEMBRADOS II

 

Não sei se me recorda o que eu vivi

ou me imagina essa recordação;

até que ponto do passado sou ilusão,

até que ponto é na memória que existi?

 

Mas ainda assim, cada hora em que te vi,

toda desnuda e em plena aceitação,

não me pertence tão só à imaginação,

por mais forte me domine ou que a nutri.

 

Pois sou forçado, a fim de não mentir,

a reconhecer que amei outras também,

claramente com menor intensidade,

mas como posso realmente distinguir,

no turbilhão de orgasmos desse além,

quais partilhei só contigo na verdade?

 

ATOS DE AMOR LEMBRADOS III

 

Nesses milhares de vezes repassadas,

sem exagero, por décadas assim,

cada amor verdadeiro a ser pra mim,

nesses instantes de angústias partilhadas,

 

quando após iniciativas compassadas,

foi o ritmo crescendo até o alfim,

quem me incitava até chegar ao fim,

nesses momentos de almas dessangradas?

 

E como asseverar de cada umbigo

que minha língua nessa noite destilou,

no instante máximo de ânsia e de perigo?

E mesmo as vezes em que estive só contigo,

como posso umas das outras recortar,

quando vêm teus outros beijos me assaltar?

 

DIAS DE CLIMA RECORDADOS I – 30 MAI 22

 

Nova onda de frio atinge o sul,

vinda da Antártida direta para mim,

mil vezes esse frio que venha assim

do que o calor que em nada me seduz.

As pessoas se queixam desse azul,

que o frio nos dedos lhes provoca enfim,

mas para mim camisa só de brim

bem facilmente todo o frio reduz.

 

Nem é que não sinta mesmo o frio,

mas estando abrigado sob um teto,

a minha indumentária é suficiente

e em plena rua manifesto o brio,

vento minuano a beijar-me com afeto,

que meus outonos do passado faz presente.

 

DIAS DE CLIMA RECORDADOS II

 

Quando onda de calor infesta o sul,

chegada da Argentina ou Paraguay,

anseio o frio que nos brota do Uruguay,

pois quando chega é que me sinto exul.

Mas quando chega o estio, ele me nul-

ifica sem piedade, quando vai

aos fundos do pulmão. Sequer um ai

posso em prece emitir ao céu azul.

 

Mas pelo menos, tal férvida ameaça

não se concretizou, que na Argentina,

grassou o inferno a quarenta e quatro graus!

Mas é possível que um dia tal desgraça

qual avalanche sobre minha triste sina,

torne em churrasco tantos dias maus!

 

DIAS DE CLIMA RECORDADOS III

 

A cada época do ano o seu quinhão,

o clima não toma de mim conhecimento:

chega o inverno e gélido é seu vento

e a brisa é fresca nos dias de verão...

Mas o calor me afeta o coração,

mínguam os versos nesse abafamento,

enquanto o frio reforça o meu assento:

coloco o poncho e enfrento a situação!

 

Por isso, abraço a geada alegremente

e vejo a relva de luz esbranquiçada,

cada pocinha faz-se em vidro cintilante;

quando pisado, ele se ergue, indiferente

e mais alegre eu sigo pela estrada,

um novo inverno de esperança adiante!

 

DIAS DE ESPERA CONFINADOS I – 31 MAI 22

 

Dizem que atrás de cada homem famoso

existe uma mulher, amante ou esposa;

para Copérnico, foi a figura ponderosa,

de seu tio Lucas Waczenrode, orgulhoso

de seu talento, que em abraço carinhoso,

deu-lhe a chave a despertar ciência airosa,

nas grossas lentes de amplitude vigorosa

de um telescópio primitivo, mas zeloso.

 

Porém suspeito que alguma o aconselhou

de sua obra a adiar publicação,

para evitar problemas com a Igreja,

que somente para o mundo se mostrou

após sua morte e com baixa aceitação,

por mais que convincente hoje nos seja.

 

DIAS DE ESPERA CONFINADOS II

 

As mulheres preferem a prudência,

sabem que o mal haverá de acontecer,

caso se faça o que não deva se fazer,

enquanto o homem, por maior a experiência,

seu mal encara tão só como potência,

acreditando haver um jeito de o vencer

e assim acaba por tal mal sofrer,

mesmo a enfrentá-lo com toda a continência.

 

Já Copérnico deixara a juventude

bastante para trás, pois é a temeridade

que leva o jovem a enfrentar qualquer perigo,

já que na beira da alma ainda se ilude,

ter isenção de sua mortalidade

e assim depressa vai correr para o perigo.

 

DIAS DE ESPERA CONFINADOS III

 

Eu sei por mim, quantas vezes no passado

capaz de coisas mil me acreditava

e sem receio os percalços enfrentava:

“Querer é Poder!” – me fora aconselhado.

Mas descobri, tanta vez que fui cortado,

por mais que meu sucesso então buscava;

sempre uma porta batia e se fechava,

o meu esforço era total deperdiçado.

 

Até aceitar os meus limites finalmente,

 que agora busco apenas o que posso,

até o ponto que alcance o meu talento.

Ninguém jamais me deu ajuda ingente,

fiz o que pude e se houve algum destroço,

errei sozinho, mas enquanto tive alento.

 

DE ONDE EU VENHO I – 1º JUN 2022

 

Venho do dia perdido em solidão

e quantas frases de amor eu já compuz

da polpa de meus dedos a saírem como cruz,

com sangue negro e azul do coração,

sem me deixar conduzir pela razão,

que meu silêncio a obedecer induz;

por sob as unhas encontrei a luz,

sem mascarar as palavras da ilusão.

 

Foi mais efeito alheio do abandono:

a cada vez que quis um alvo controlar,

ele escorreu por entre as palmas a sorrir.

 

Somente quando permiti-lhe fosse o dono,

esse silêncio que só eu pude escutar,

minha pobre arca da aliança foi abrir.

 

DE ONDE EU VENHO II

 

Venho também da vastidão de um poço,

em que eu mesmo com frequência me lancei,

nessas suas águas escuras eu nadei,

senti meus dedos enrugados desde moço.

Não me afinou essa água, fez-me grosso,

para enfrentar cada dia que encontrei

e meu próprio coração eu lancetei,

que expelisse de mim todo o destroço.

 

Não estou a expor qualquer melancolia,

só descrevo o malmequer de cada dia,

como aprendi a ser inútil me aceitar

 

e só depois que tal certeza me nutria,

de lado pus a total menos-valia,

para as paredes do poço enfim galgar.

 

DE ONDE EU VENHO III

 

Venho das fraldas do tempo rebuscado

bem lá no fundo dos baús de meu olvido,

deles busquei para a luz cada gemido,

cada suspiro em tesouro acumulado.

No fundo falso da arca bem guardado

cada remorso que algum dia tenha tido,

meu desalento qual múmia ali mantido,

em sarcófagos de estrofes desvairado.

 

Assim o tempo, o silêncio e a vastidão

compõem meu claro desafio como grelha

e de algum modo a harmonia ali se espelha.

 

deixei no poço o raciocínio vão,

em cada balde meu cérebro a escorrer,

até a derradeira e final gota se perder.

 

 

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