sábado, 11 de junho de 2022


 

MENTES DE CRISTAL I  (27 abr 11)

Revisado 8 jun 2022

 (Susan Hayward, época de ouro de Hollywood)


Após reler "Corte Impura", me palpita,

nesse sabor de mim que então retomo,

que esses mil fantasmas que assim domo

são mais que propensão que em mim se agita.

 

Fico a pensar, ao vagar desta minha dita,

se não seria o oposto que me assoma:

se não me encontro em solitária coma,

jogado assim numa prisão maldita!...

 

Quem sabe eu fui destroço do passado

de alguém muito mais vasto do que eu,

que em seu ergástulo então me aprisionou,

 

em que me acho agora agrilhoado,

fazendo os versos que me encomendou,

como castigo pelo muito que sofreu!

 

MENTES DE CRISTAL II

 

Antigamente, um órgão de cristal

foi construído, algures, na Alemanha.

O seu som era hidráulico, artimanha

que nunca achou um seguidor igual.

 

Quebravam-se os tubos do órgão, afinal,

sempre que o frio contra o calor se assanha;

a própria vibração do som que os banha,

estilhaçava-os, em pleno festival.

 

Alfim, depois de morto o construtor,

que era chamado para a manutenção,

aposentaram totalmente o instrumento.

 

Duzentos anos depois, com grande amor,

foi restaurado o seu funcionamento,

já com acrílico de mais longa duração. 

 

MENTES DE CRISTAL III

 

Mas não faltou quem de tal sonoridade

chegasse a reclamar, por preciosismo,

ou protestando em seu negativismo,

por falso orgulho ou pretensiosidade.

 

Novos tubos de cristal, noutra cidade,

acabaram por soprar, com virtuosismo,

e foram instalados, romantismo

manifestado em tal tenacidade...

 

Não sei se esse órgão se acha ainda

a funcionar em seu poder total:

possuía dele uma bela gravação,

 

em disco de vinil... soava linda!...

A voz do órgão eram bocas de cristal,

até que um dia se queimou minha coleção.

 

MENTES DE CRISTAL IV

 

Durante o incêndio que sofreu minha casa,

os dois mil discos de minha discoteca,

os dez mil livros de minha biblioteca...

Mas a memória não virou tábula rasa.

 

E algumas vezes, a lembrança vaza

do órgão de cristal, porém me seca

o olhar, que por prantear não peca

por tanta perda que minha vida atrasa.

 

E assim escuto, nos antros da memória,

as bocas de cristal desse instrumento,

embora nunca, para meu lamento,

 

tenha encontrado cópia dessa glória

e assim não sei se o som ainda funciona

ou se somente o esquecimento o entona.

 

MENTES DE CRISTAL V – 9 jun 22

 

Causam meus passos estalos de cristal

por sobre os ladrilhos da calçada,

mas quando o som se esvai, não deixo nada

que ainda vibre em som mais magistral.

 

Porém algures escuto outra passada,

em tiquetaque de relógio natural,

algum acuar de cão ou outro animal,

o pipilar, talvez, da passarada.

 

Nesse imprevisto encontro uma harmonia

semiconcreta, totalmente artificial,

qual sua intenção, enigma ou ritual?

 

De quem os passos que na rua assim ouvia

e que somente um outro humano produzia,

desencontrados da escala natural?

 

MENTES DE CRISTAL VI

 

Pois na medida em que vai se aproximando,

o som dos passos mais se fortifica:

efeito Doppler um tal soar indica,

vibração a vibração se vai somando.

 

Um aeroplano a barreira está quebrando

do som, porém aqui se verifica

como essas vibrações, que multiplica,

meus dois tímpanos velozes assaltando.

 

E não consigo deixá-la para trás,

do mesmo modo que os passos na calçada

ficam mais fortes quando o ar agitam,

 

em vibração apenas contumaz,

essa acólita fiel da caminhada,

com seus rituais que súbito me irritam.

 

MENTES DE CRISTAL VII

 

Enquanto ando, vai a rua se alargando

e as tijoletas por meus pés escorrem

como um regato gris e logo morrem

às minhas costas, por não estar olhando.

 

À esquerda, a catedral vai-se aprumando,

enquanto os cantos de meus olhos casas forrem,

talvez mesmo ao calor do sol se torrem,

se olho para trás, se apequenando,

 

como se meu próprio olhar as ampliasse

e só meus passos lhes dessem solidez,

mesmo as pessoas crescem e se encolhem.

 

Dizem que efeito da perspectiva se tratasse,

mas não é a perspectiva o meu arnez,

não são meus olhos que o mundo ao redor tolhem?

 

MENTES DE CRISTAL VIII

 

Até admito que as tais perspectivas

no olhar dos outros a mim também ampliem;

quando me afasto, também me diminuem,

igual fantoche perante mentes mais ativas.

 

Leio de outros as impressões altivas,

qual sobre o mundo de modo igual atuem,

porém que prova eu tenho que me cunhem

de maior a menor assim vistas furtivas?

 

Minha única certeza é de que o faço,

tal qual se o mundo girasse a meu redor,

mal-assombrado por minha onipotência,

 

os demais seres a manter no meu abraço,

determinando seu porte e cada cor,

que o efeito eu crio em tal magnificiência!

 

MENTES DE CRISTAL IX – 10 junho 2022

 

Da “Corte Impura” meus malvados cortesões,

a ulular por detrás de fortes grades,

num canto gregoriano de maus frades,

enchem masmorras de vastas vibrações.

 

Seus lamentos jamais cortam corações

e nem conseguem despertar bondades,

mas os gritos reverberam impiedades

a esbater-se contra outras mil visões.

 

E as letras de seus ais já se misturam

num alfarrábio denegrido de gordura,

são catecúmenos de religiões perdidas

 

e tais lamentos cá e lá ainda perduram

em bordalesas de vinícola mistura,

vinho de versos de parreiras esquecidas!

 

MENTES DE CRISTAL X

 

Essas palavras agitadas por clamores,

como rebates de tensões imateriais,

bolas de tênis de raquetes imortais

ou que mergulham em caçapas incolores.

 

Nos ricochetes da sinuca há jogadores

sem mãos ou tacos a rebatê-las mais,

redes vazias em gramados estivais,

que ali constroem o som dos estertores.

 

Frase após frase das bocas esfaimadas,

cristais rachando das janelas matutinas,

mentes impuras de subterrânea voz,

 

até que aos poucos, sentenças orientadas,

quais redemoinhos em correntes finas,

chegando às mãos do carcereiro atroz...

 

MENTES DE CRISTAL XI

 

Eu tomo as mentes de cristal manchado

e as lapido ao chiado do esmeril,

de cada praga corto a ganga vil,

caleidoscópio criando subornado.

 

Cada demônio ou lâmia ali guardado,

suas unhas arrancando no gradil,

suas agonias moldando em som gentil,

mais um soneto assim concatenado...

 

Porém meus Monstros do Id sempre anseiam

por ter sua voz malévola escutada,

caso contrário, quiçá se extinguirão

 

e desse modo digladiam e peleiam,

uivando em coro a sua missa marchetada,

o carcereiro a estilhaçar sem compaixão!

 

MENTES DE CRISTAL XII

 

Assim retorna a insistir perspectiva:

será que sou tão só um prisioneiro,

meu sangue a me sugar o carcereiro,

que em poesia o tornará fonte cativa?

 

Quem sabe estilhas de cristal ligeiro

seja minha mente que órgão assim ativa,

apenas um tubo na harmonia rediviva

que o organista já concebeu primeiro?

 

Do mesmo modo que a visão a vida amplia

ou para trás a deixa mais estreita,

é o seu olhar a me tornar vibrante?

 

Sempre uma honra partilhar da sinfonia,

instrumentista que à partitura se sujeita,

faceta e aresta de um cristal gigante!...

 

 

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