terça-feira, 28 de junho de 2022


 

 

PANACEIA I  (24 JUN 22)

 

Se não houvesse morte e nem doença,

não surgiria a civilização;

continuariam todos onde estão,

sem precisar de ideologia ou crença.

 

Se não houvesse morte, a fome intensa

nem causaria preocupação;

se esperaria que os frutos da estação

na boca aberta caíssem, qual despensa.

 

Se não houvesse morte ou enfermidade,

para que se construir habitações,

que protegessem as vastas multidões?

 

Pois se iriam acumulando, sem vaidade,

os outros corpos fornecendo proteções,

como os pinguins em meio à tempestade...

 

PANACEIA II

 

Porém doenças há e existe morte;

maior rigor produz pneumonia;

a umidade nos traz dores e alergia

e outros males de ainda maior porte.

 

Destarte, por trabalho ou pura sorte,

se acha uma caverna ou mataria

de galhos mais cerrados e a ventania

não nos atinge as costelas com seu corte.

 

Se não houvesse a morte, bestas-feras

não nos conseguiriam devorar,

nem seriam necessárias as esperas

 

para a caça de pequenos animais,

para alimento ou para as peles lhes roubar,

por nossa falta de pelames naturais.

 

PANACEIA III

 

Se não houvesse morte, a medicina

nunca teria, aos poucos, confirmado

cada remédio para o momento asado

ou cada antídoto que a experiência nos ensina. 

 

Da sangria ao cataplasma já empregado,

cada tisana uma melhora pequenina;

surge o chocalho e a dança se destina,

para espantar os maus espíritos do lado.

 

E deste modo, não haveria biologia,

nem botânica, ou química, ou alquimia;

foi a morte que as ciências cultivou.

 

Por isso, essa figura de gadanha,

Cujo furor em torno a ti se assanha,

Ao contrário de roubar, nos ajudou.

 

PANACEIA IV

 

E se algum dia se descobrisse a cura

da morte e da doença e toda a dor,

acabaria também nosso fervor

de lutar por qualquer coisa que perdura.

 

Sem a certeza da morte, qualquer jura

seria quebrada impunemente, sem terror;

e sem temer o fim do seu calor,

se esvaziaria a sensação mais pura.

 

E de onde os mais humanos sentimentos,

se os nenezinhos não fossem ameaçados

pela doença e a morte; e precisassem,

 

durante anos, de proteção e alentos?

E que valor teriam os bens mais apreciados,

sem se aguardar o momento em que faltassem?

 

TU E O OUTRO I  (25 JUN 22)

 

Também é a morte a razão de todo o amor,

desde aquele primordial amor materno,

até o orgulhoso, mas inquieto amor paterno,

na proteção desse serzinho sem rancor.

 

Se nidífugos fôssemos, seria de supor

que não fosse tão leal o peito terno;

e se relva se comesse, até no inverno,

onde esse impulso para o abraço protetor?

 

Porém somos nidícolas e surge, então,

visualizada em sutil contemplação,

essa gama de emoções tão conflitantes,

 

que a seguir projetamos ao redor,

tornando o círculo cada vez maior,

sem encaramos mais o mundo como dantes. 

 

TU E O OUTRO II

 

Assim é a morte de todo o ódio a razão.

Se eterno fosses, não te faria falta

dos bens materiais a grande malta:

tempo haveria para a substituição;

 

ou mesmo da emoção que mais te exalta,

sentirias bem menor deprivação;

há indiferença no eterno sem paixão:

é o sabor da impermanência que te assalta.

 

Mas quando a ti usurpam de algum bem,

seja ele material ou sentimento,

de ti roubam igualmente teu futuro;

 

do usufruto se vão anos também

e qual um vácuo se expande tal momento,

pela rapina de um sentimento puro.

 

TU E O OUTRO III

 

É bem difícil entender a eternidade,

para nós seres no tempo compreendidos;

por isso tantos se sentem preteridos,

sem concessão da divinal longanimidade

 

e seus pedidos de maior necessidade,

feitos de fé e de fervor nutridos,

por mais que rezem, não percebem atendidos:

Papai Noel não existe, é bem verdade.

 

Mas para Deus, mesmo feito de bondade,

não existe tempo, desde o seu início,

nem duração; e nem tampouco o seu final,

 

mas tudo goza de simultânea intensidade.

Como, então, te prestará um benefício,

se já contempla seu desfecho natural?

 

TU E O OUTRO IV

 

Mas, por certo, não é essa a eternidade

que alcançarias, se não mais houvesse morte;

sempre haveria do nascimento o norte,

indefinida que fosse a infinidade;

 

nem tampouco enxergarias com verdade,

esse forma que teu fado ainda comporte;

só lembrarias do antanho a antiga sorte,

sempre o porvir em véu de obscuridade.

 

Abandonarias somente essa ansiedade

pela incerteza sempre vaga do futuro;

só perderias do usufruto poucos anos,

 

amor ou bem em recuperabilidade,

a anestesia a nos tornar insanos...

Antes a morte que tal fadário impuro.

 

O CANTO DO CROCHÉ I  (26 JUN 2022)

 

A vida é um magnífico bordado,

em que as luzes numa teia se entrelaçam,

em que as sombras se misturam e perpassam,

cada torcida uma coleta do encantado,

 

cada arrecada uma réstia do passado,

em que todos os males se disfarçam,

nossas culpas, pouco a pouco, despedaçam,

nossos erros em destino amarfanhado,

 

renda de bilro uma tal especiaria,

um bastidor contra o vento sobranceiro,

o progresso a madurar de cada feto,

 

nesse retrós de canto, em que se cria

tapete mágico a passar ligeiro,

no rendilhado do derradeiro afeto.

 

O CANTO DO CROCHÉ II

 

Antigamente, com perícia se fazia

sobre a pedra, um bordado polverento,

renda de mármore, ibérico portento,

que uma influência islâmica trazia;

 

ainda perdura a bela cantaria,

embora hoje não se encontre igual assento;

outra escultura, já no Renascimento,

sem a riqueza dos detalhes à porfia.

 

Fosse embora de mesquita ou sepultura,

o rendilhado imitava a humana vida,

cheia de voltas, desencontros e meneios,

 

cada voluta conduzindo a nova agrura

que no fundo do peito acha guarida,

nessas folhas de acanto dos receios.

 

O CANTO DO CROCHÉ III

 

Ainda existem antigos bastidores,

de fato, em maioria já empenados,

em que torçais de linha, entrelaçados

pelas agulhas de artesãos e criadores

 

imitavam nossa vida em destemores,

pavões e damas em rendas de laqueados

ou nesses velhos panos tricotados,

através dos invernos e tremores,

 

que serviam de coberta às bordadeiras,

enquanto se aplicavam às tarefas,

longas agulhas ou finas de croché,

 

suas vistas desgastando por inteiras,

no cuidadoso tecer dessas sanefas

para antepêndios da verdadeira fé.

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