quarta-feira, 13 de março de 2024


 

MELOPEIA I – 10 MARÇO 2024

(CLÁUDIA OHANA)

 

Por mais me reconheça no fundo ser feliz,

não o é por consequência dos feitos de minha vida,

nem de cada mentira, cada ilusão perdida,

com tudo o que alcancei ou o que perder me fiz.

 

A vida não me deu a saga que mais quis,

bem ao contrário o pasmar de longa lida,

a que sempre me apliquei na devoção devida,

mas sempre que voei, esbarrei-me nos gradis.

 

Destarte não fui ave, talvez apenas colibri,

pousando em cada flor por seu sumo colorido,

sem guardar o que ganhei, um pouco só retido;

apenas adejei entre as flores por aqui,

cheirando cada flor, sem beijo recebido,

por mais que o próprio beijo deixasse por ali.

 

MELOPEIA II

 

Na verdade, a música conforma o meu encanto:

escuto diariamente os mestres do passado;

em minha juventude,busquei-os imitado,

mas sem de fato pingar na partitura o pranto.

 

Esse jardim contemplo sem ter olhr de santo,

percebo em cada flor um suspiro compassado,

a natureza ali em seu labor pesado,

um momento de vida, um momento de canto.

 

Para depois murchar, qual murcha a vida humana.

A flor só é virente enquanto pode transmitir

a semente de sua vida para nova primavera

e mesmo da mulher penhor igual reclama,

abandonando aos poucos quem não mais puder agir

para formar a geração que lhe preencha nova era.

 

MELOPEIA III

 

Mas um jardim encanta e a alma apazigua:

regado diariamente, é o fruto do labor,

se for abandonado, perderá o seu frescor,

a alma do canteiro amarelada e crua.

 

A música também no seu fervor estua,

escutada diariamente, em sua calma ou estridor,

se não for escutada, vira mofo em seu palor

a alma amarfanhada de qualquer compositor.

 

Melhor guardar o sonho a trazer felicidade,

pois não exige de mim qualquer labor,

basta nele pensar e se revivifica,

que então meus sonhos se renovam com vaidade,

enquanto as esperanças vão perdendo seu fragor,

que o dia passa que a noite em breve indica.

 

ENTRONIZAÇÃO I – 11 MARÇO 24

 

No jardim de minha casa, a musa se emudece,

seus olhos de cimento a contemplar-me a frio,

sem qualquer emoção, sem qualquer calafrio,

envolta nesse manto em que verdura cresce.

 

A musa só me encara, o seu olhar não desce

a contemplar o meu, sem de frescor um fio,

seu olhos bem abertos não mostram qualquer cio,

sua boca imóvel, sem maldição nem prece.

 

Mas como posso julgar se apenas a sua presença,

sem mármore ou basalto, a resultar de cal,

é a fada protetora das flores do jardim?

Às noites a contemplo, cruzando a grade tensa...

Será que nesse escuro se mostra mais regal,

em toda a majestade que nega para mim?

 

ENTRONIZAÇÃO II

 

“O jardim é meu senhor e também meu escravo”,

parece-me dizer em tais palavras mudas.

“Ante as dobras de meu peplo, com teu olhar desnudas,

mas eu não sou assim, bem firme ao solo cravo.

 

“Não me podes desnudar com teu olhar mais bravo,

nem seduzir me podem esperanças mais agudas,

sei bem que dia e noite com teu olhar me estudas,

mas somente para o solo meu esplendor eu lavro.

 

“Não me tentes assim com pueril desejo,

eu sou feita de cal, não tenho coração

e não esperes de mim a lágrima furtiva,

porém quando me esqueces, tua própria alma beijo

e envio para ti nova e gentil canção,

tua mente a penetrar da forma mais esquiva.”

 

ENTRONIZAÇÃO III

 

“Recolho da manhã do dia a juventude,

do meio-dia não quero qualquer pingo de sol,

nem me volto para o alto qual faria um girassol,

nem a força de teus olhos de forma alguma ilude.

 

“Quero o canto dos pássaros, canoro que me escude,

vou transmitir ao jardim toda a força de um farol,

não renego realmente o teu sonhar de escol,

mas a mensagem noturna queres talvez a mude?

 

“Só minha presença aqui já é forma de oração,

da Flora e Fauna ampliando a duração

e alguma coisa assim espero te transmito,

embora saiba bem que meu sonhar risonho

tropeça de tua mente em algum rincão tristonho,

cada poema gerado a perder-se em som aflito.”

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