domingo, 11 de outubro de 2020

 

 

ALGURES I – 30 MAIO 2019

 

Para onde vai a cor quando uma flor resseca?

Podia ser teor de uma adivinha zen...

Para onde vai a flor se a cor morre também?

Para onde vai a culpa depois que não se peca?

Para onde vai a traça, vazia a biblioteca?

Talvez somente morra e voe para o além...

Existe um paraíso em que essas traças creem,

Existe o animaltório ou então a animalteca?

 

A mente se avoluma de tanta indagação,

A cada vez que o corpo, sem mais necessidade,

Se deita a descansar ou senta num balanço...

Melhor, porém, é rir dessa interrogação,

Cuja resposta nunca teremos de verdade,

Senão no devaneio do cérebro em descanso...

 

ALGURES III

 

Para onde vai o poema se a tinta lhe esmaece?

A pouco e pouco vê-se que se desfaz em gris,

A página adormece em seu brancor de giz

E logo amarelece em irrespondida prece...

Para onde então a prece, se milagre não nos desce?

Há muito tempo já que suplicar não quis,

Só posso agradecer a meu Mestre e Juiz

Pelo bem que me dá, pelo mal que não me cesse.

 

Existe hoje o virtual que dizem permanente.

Ali se encontra o arquivo do pálido poema?

Por que o virtual se afirme maior que o material?

Igual a um cão chipado, meu cérebro pressente

Na frase singular a derradeira sema (*)

De um verso que revoa no plano sideral.

(*) Unidade de Significado.

 

ALGURES III

 

Até mesmo essa flor que beijou a bem-amada

E que ainda conservamos com o maior carinho,

Conserva algum perfume em toque de azevinho,

Na escala gris da flor em páginas guardada...

Para onde vai a cor da frase debruada,

Que guarda seu contorno, a marca de um espinho,

Apenas decalcado em pintalgado arminho,

Fantasma do fantasma do dia recordado?

 

A cor conservo em mim, tal qual guardo o poema,

No fundo de meus olhos, nas chispas da retina,

Na polpa das mucosas o aroma que fascina,

O som da cor no ouvido meu tímpano envenena,

Enquanto nos meus lábios sorri um leve esgar,

À pérfida lembrança que vem-me acompanhar...

 

nenhures I – 31 maio 2019

 

se alguma coisa é certa em meu modo de pensar,

deriva da mensagem contida no Sermão

dito do Monte, em que os anseios são,

em ruma descartados do súplice penar;

se de alguma coisa eu sei a fímbria descartar,

ataco esse problema com firme coesão,

porém de mim afasto qualquer preocupação

que sei fora de alcance do próximo enfrentar.

que não se pense seja em mera desistência,

não guardo num baú quaisquer de meus problemas,

mas de que adianta pensar se não vejo solução?

assim congelo apenas, rosário em penitência,

até que chegue a hora de novos diademas,

em que tenha nas mãos cristal resolução.

 

nenhures II

 

eu vejo em torno a mim cópia de gente ansiosa,

que deixa de viver, seus problemas a nutrir;

a mim eu não permito que possam perseguir,

no inverno não procuro a nascitura rosa,

nem nos verões eu temo a geada perniciosa;

cada coisa a seu tempo trará o seu fulgir,

se não posso resolver, prefiro então dormir

e algumas vezes sonho com tal resposta airosa

ou se não sonho, não me espanto realmente,

que um dia a outro dia é eterno pretendente,

uma noite a outra noite entoa sua canção,

igual que o salmo canta em frase milenar,

não fico a lamentar o bem não conseguido,

nem queimo meu penar em ódio percutido.

 

nenhures III

 

há tempo para tudo, a dor tem ocasião

e o bem pode trazer real tranquilidade

ou a ausência da dor e da necessidade

um bem inverso sejam, ditame da razão.

não fico a empurrar dever para amanhã,

nem canto no cortejo da marcha triunfal,

não creio que adormeça o meu Senhor real,

nem espero me conceda a bênção temporã;

mas basta a cada dia o afã do próprio mal,

por que me desgastar na agrura da ansiedade?

enfim, é com prudência que tua razão depures

e fiques simplesmente olhando o natural

perpassar de teus dias em escrava liberdade,

enquanto vais lançando o mal para nenhures.

 

nenhures IV

 

igual que os pobres, sempre se encontrará conosco

de cada dia a sombra sutil um desagrado,

achaques em plateia de um aplaudir airado,

pequenas questiúnculas de singular desgosto,

mas a vida nos traz todo frumento e mosto (*)

que de fato precisamos de ter a nosso lado,

toda ambição é dura, pois te fará forçado

a criar novas rugas na pele de teu rosto;

assim posso enfrentar e enfrentar tu podes

audaz essas picuinhas de teu viver diário,

sem dar às alegrias por demais exultação;

dando de ombros, firme, toda ilusão sacodes,

pois quem te diz, enfim, que o alegre ou que o nefário

não são face e reverso da mesma comunhão?

(*) Pão e vinho.

 

BENHURES I – 1º JULHO 2019

 

Muita vez já redigi soneto em dois minutos,

a mente estando cheia de tanta novidade,

inteira a palmilhar maravilhosidade,

disposta a descrever os temas mais argutos.

 

Os versos me escorriam em formatos impolutos,

mas depressa a caneta da materialidade

os podia redigir quiçá à posteridade,

as rimas facilmente seguindo seus condutos.

 

Não sinto mais assim.  O pulso me enfraquece

e enquanto a frase corre, não a contém os dedos,

perdidos pelo ar os mil e um segredos

da imagem multicor que a mente me encandece,

as mil apoggiaturas de palpitar sutil, (*)

enquanto o muscular se esfaz em rasgões vil.

(*) Nota breve apoiada sobre longa.

 

BENHURES II

 

Em mim estão as musas, quem sabe, todas nove,

meio a troçar de mim enquanto vêm ditar

as rimas encantadas em toque singular,

de forma simultânea que a palma me comove.

 

Não é uma cançoneta apenas que se trove,

mas várias a um só tempo me querem dominar

e o resultado, enfim, é lento no hesitar:

para onde dobro a palma no verso que mais louve?

 

Assim, demoro mais.  Talvez quarto de hora,

até que se complete dos nove apenas um

e as musas me beliscam em seu risor travesso;

e quando me disponho às linhas já de outrora,

percebo que outros vêm, sem excluir nenhum

e por mais que me esforce, são tantos que me esqueço.

 

BENHURES III

 

Mas esses que redijo em seus finais benhures,

trazem escama ofídica de várias intenções,

não conseguem por vezes mostrar-me suas razões,

e os mil versos perdidos se vão para nenhures.

 

Não é de admirar que em tempos tais augures

torturem-me demais em suas descrições,

revolvem-se no peito novelos de emoções

e então faço uma pausa, sem nem saber algures

 

se foram esses versos qual lenha na fogueira,

estrofes a nutrir angélicas aranhas,

talvez numa farândula, em busca de seus pares

e quando passa, enfim, a contingente esteira,

as páginas sem cor de tantas emaranhas

me cobrem por inteiro quais frígidos altares.

 


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