terça-feira, 6 de outubro de 2020

 

 

FRECHAS DE AMOR I – 14 MAI 2019

 

Certo dia me contaram que uma freira

(de meu conhecimento) declarava

que amor é coisa que nos começava

pelos olhos e então descia, bem certeira,

 

para o nariz e a boca, qual ligeira

frecha que um anjinho projetava;

de algum deusinho certamente não falava,

pois tal seria a blasfêmia derradeira!

 

Porém da boca descia na garganta,

até fazer palpitar o coração

e mais abaixo, sorrateira, adentre,

 

até que um dia, isto em nada nos espanta,

se viraria em meiga cabecinha,

a espiar para nós do baixo ventre!

 

FRECHAS DE AMOR II

 

Claro que usou de algumas artimanhas,

sem dizer, afinal, por A mais B,

mas o que significava bem se vê,

por entre os artifícios e as patranhas...

 

Seria a frecha de amor somente as manhas

dessa luz que nas retinas se prevê,

uma visão tão bela que se crê

impossível escapar-se de suas sanhas!...

 

Mas nesse caso, como um cego ama?

Sem alfinetes a perfurar-lhe a vista,

na escuridão sem luz, como a conquista

 

poderia alcançar quanto reclama?

Não só dos olhos vem-nos a visão,

igual enxerga o palpitar do coração!

 

FRECHAS DE AMOR III

 

Já para mim, amor é mais perfume,

não a essência que nos vende o boticário

ou no supermercado algo mais vário,

odor de qualquer flor que venha a lume...

 

Muito mais forte é esse odor que rume

da própria pele da mulher, igual sudário,

de que procuram, num gesto atrabiliário,

esconder em castidade o seu acume.

 

Menciono o cheiro totalmente feminil,

melhor que a flor, mais de ouro que ouropel,

nossas narinas assaltando em dom de mel...

 

Recende o beijo em ardor primaveril,

em tal leveza que nos faz lacrimejar

e só então é que se espelha pelo olhar!

 

O RIO DA VIDA I – 15 MAIO 2019

 

Cada um de nós percorre um rio na vida:

começa estreito, na primeira infância,

depois se alarga em pertinaz instância,

sobre os seixos e calhaus perfaz sua lida...

 

Algumas vezes, a água é recolhida,

nas almas fortes a borbulhar com ânsia,

de outras feitas, afluentes em constância

vão aumentando seu fluxo e a descida.

 

Em certos casos, despenca em cataratas,

como doença que o leva ao hospital,

mas geralmente, desce apenas, sem parar,

 

mansamente, a cortar campos e matas,

até o momento que encontra o seu final,

quando se lança, enfim, no grande mar.

 

O RIO DA VIDA II

 

O ocorre depois, quem saberá?

Vão-se as gotículas apenas misturar

com outras mil já a sobrenadar

ou algum núcleo do rio persistirá?

 

Será que as águas algum peixe beberá

ou um elasmobrânquio a dominar?

Um tubarão que se venha abeberar,

suas cartilagens nosso rio amparará?

 

Ou é algum cachalote, orca, baleia,

esses mamíferos de ampla flutuação,

que os oceanos tanto tempo dominaram?

 

Ou qualquer alevim na imensa veia

de mil cardumes em vasta multidão,

que até quanticamente nos tragaram?

 

O RIO DA VIDA III

 

E caso crermos que haverá reencarnação,

dessas águas do rio final essência,

para que corpos seguirá toda a potência,

após suas vidas de tão curta duração?

 

Será que os peixes como iguais a nós virão,

com a sua agilidade e inconsequência

ou será a morsa, imersa em complacência

ou em nós reencarnará um tubarão?

 

Ah, rio da vida, que corre sem parar,

alegremente em busca de seu fim,

quantos de nós quereriam represá-lo?

 

Mas em tal dique se iria estagnar,

toda a energia evaporando, enfim,

até no fim esgotar-se em estreito valo...

 

A PRIMEIRA MULHER I – 16 MAIO 2019

(Baseado em lenda dos ameríndios Mohawk norteamericanos.)

 

Houve um tempo em que a Terra era vazia

de gente humana, porém não dos animais;

havia insetos, musgo e outros vegetais,

porém nenhum ser humano ainda havia.

 

O povo antigo, de fato, já existia,

porém vivia em pastagens siderais,

povo do céu, habitações astrais,

que nem sequer o chão contemplaria.

 

Mas de tanto que passeavam pelo céu,

em suas caçadas ou em suas pescarias,

cortando lenha para suas refeições,

 

certos pontos se afinaram como um véu,

uma arapuca formando nessas vias

a quem passasse sem as devidas precauções!

 

A PRIMEIRA MULHER II

 

Ora, um dia, encerrado já o conselho,

o Grande Chefe foi o céu examinar,

devido a queixas que ali fora escutar,

andando rápido, igual a escaravelho!

 

De fato, já era um homem muito velho

e chegou aonde o céu fora afinar,

porém passou à sua direita, sem parar,

observando ao redor, como em espelho.

 

Assim cruzou por onde havia solidez,

deixando a faixa à esquerda, onde era fina,

ainda tudo a inspecionar sem negligência

 

e um relatório para seu conselho fez,

nada encontrando de perigosa sina,

embora tudo examinasse com paciência.

 

A PRIMEIRA MULHER III

 

Ao pagé mencionou seu resultado,

mas este não confiou no julgamento

e decidiu-se, no impulso do momento

a inspecionar também o assoalho alado.

 

Algum espírito talvez fosse perturbado!

Cabia a ele dar-lhe o provimento

e desculpar qualquer dichote violento

que ao espírito tivesse desgostado...

 

Chegado ao ponto em que o céu afinara,

ele passou pela esquerda, sem parar,

deixando à sua direita a artimanha;

e concluiu que por ali não encontrara

qualquer espírito que pudesse reclamar,

voltando à aldeia, em que narrou a sua façanha.

 

A PRIMEIRA MULHER IV

 

Porém o filho do Grande Chefe achou

por contestar o relatório desta feita

e uma nova inspeção foi então aceita:

já pelo piso do céu se encaminhou...

 

ora, o rapaz por muito tempo cavalgou

e com as pernas arqueadas já se ajeita;

a parte fina do céu bastante estreita

e com um pé de cada lado ele passou...

 

Ficou, no entanto, até desapontado,

nada encontrando para seu agrado,

com que pudesse contestar o pai...

 

Tudo era firme em tal pago do céu,

mas consolou-se, no conhecimento seu,

que o Grande Chefe ser um dia ainda vai...

 

A PRIMEIRA MULHER V

 

O Grande Chefe tinha também filha,

muito formosa, já núbil a donzela,

curiosa, a espiar pela janela

que uma visão da Terra lhe perfilha...

 

E por sua vez, empreendeu a mesma trilha,

até a faixa mais estreita, que lhe apela!

Seguiu direito, precipitou-se nela,

descendo à Terra, queda de uma milha!

 

Porém caiu em pé, numa colina

e os animais, felizes, a rodearam,

de Nova Mãe da Terra a apelidaram;

 

por entre rios e planícies viu o céu,

por entre nuvens brancas como um véu,

muito feliz ficando então essa menina!

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