sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 

 

ARTHUR PENDRAGON I – 17 JUN 2019

 

Tenho em minha casa belo exemplo nobre

de gato persa, mas me lembra mais inglês

embriagado de cerveja em placidez

num pub antigo cujas paredes cobre

a sombra acastanhada que ali sobre

de mil charutos e cachimbos, que se fez

evolar lentamente, cinza-azul de maciez,

que contra o teto assume um tom mais dobre.

 

O pobre bicho em pequeno foi castrado

e em resultado cresceu imensamente,

seu pelo branco e gris, castanho impertinente,

com certas mechas de negror ali mesclado,

porém algum vizinho judiou-o cruelmente

e pela timidez mesmo agora está marcado.

 

ARTHUR PENDRAGON II

 

Sem dúvida me acha um amigo de confiança,

contudo se arrepela ante o menor ruído,

parece  pressentir o antigo mal havido,

nos tempos de filhote, não mais que uma criança;

dorme perto de mim, que aqui acha bonança,

horas a fio à espera  outra vez de ser nutrido

e então vem insistir de novo o seu pedido,

até que me comporte conforme sua ordenança.

 

Então lambe os bigodes, fingindo não querer,

enquanto espero eu, junto ao portão da escada;

somente quando fecho, tal felina majestade

se ergue finalmente, dispondo-se a descer

e o abro novamente à impaciência airada,

seu poder a demonstrar e sua superioridade.

 

ARTHUR PENDRAGON III

 

E quando quer sair, é idêntica a atitude,

a fitar-me impertinente à beira da janela;

com um suspiro atendo essa figura bela,

mas lambe seus bigodes, de novo assim me ilude

e vai a outra janela, demonstrar desprezo rude,

olhando de soslaio, ao pé dessa cancela

e quando abro o postigo, o pulo não revela

e no maior descaso outra intenção me alude.

 

Porém  o aprecio, embora preferisse

de um cão mais submisso maior docilidade;

às vezes contra os pés um obrigado  esfrega

por tê-lo obedecido da forma que insistisse

e um salto dá por fim, em ágil veleidade,

para deitar-se ao sol que seu capricho apega.

 

ARTHUR PENDRAGON IV

 

Sempre escutei dizer que o lugar dos gatos

seria bem tranquilo, no interior do lar,

enquanto para os cães se marcaria  lugar

no pátio ou no telheiro, claros fatos,

contudo aqui em casa, mas sem motivos latos

as coisas se inverteram e dentro vai ficar

Gremlin, o shitzu; e esse gato singular,

Arthur Pendragon, talvez saia a caçar ratos.

 

No início da manhã, no aguardo da ração,

saltando à minha janela, não para de miar,

no horário que pretenda para si mais conveniente

e em litania repete o rosário da oração,

cada miado torna já um pouco mais potente,

até que, finalmente, me force a levantar!

 

ARTHUR PENDRAGON V

 

De gatos eu só sei os caprichosos

humores que possuem;  são mulheres

os machos igualmente, mas conferes

a eles teus abraços carinhosos,

mas só fazem o que querem, quando querem;

ao ser chamados, fingem não ouvir;

se ignorados, voltam a insistir,

até ganharem o carinho que requerem...

 

E como não os busco, um mau amigo,

ao chegar em uma casa, vêm-me ao colo,

a requerer meu abrigo e meu consolo...

Infelizmente, às mulheres não consigo

Ignorar; destarte, não se importam

em me atrair... e assim não me confortam...

 

ZOMBARIA I – 18 JUN 19

(Para Maritza Pérez, que nunca quis ser Guedes)

 

Durante toda a vida ela sentiu-se unida

ás plagas espanholas de velhos ancestrais,

como se todos fossem espanhóis e nada mais

sem que ela descendesse  sequer de uma guarida

 

que espanhola não fosse, ali sendo excluída

a origem portuguesa e as outras naturais,

cujo sangue jorrou, em sóis conceptuais

para compor o seu e conceder-lhe a vida!

 

E nela a teimosia espanhola traz sinal,

aprova inteiramente essa sua estranha

forma de ser, quais católicos e ateus...

 

E um dia, ao escutar a zombaria final,

caprichoso sorriso luziu nos olhos seus:

querer expor-se nua ao sol da Espanha!

 

ZOMBARIA II

 

Não creio ainda deseje tal destino,

já se passaram três décadas e mais,

desejos mudam por motivos naturais,

o seu nudismo foi de instante pequenino,

 

mais destinado a provocar meu desatino,

que poderia chamar de ciúme por demais,

pois não queria eu que os olhares estivais

descessem sobre a pele exposta ao sol a pino...

 

que seu desejo seja ainda apenas meu

e que em troca só a mim conceder possa

a perfeição sutil de seu corpo dourado,

 

que por impulsos de amor me pertenceu,

mas que o capricho seja apenas troça

de quem percebe ainda ser dela enamorado.

 

ZOMBARIA III

 

Hoje ela sonha bem mais com Istambul,

que visitamos numa semana breve

e da Sicília sonhar também se atreve,

de uma cabana  poder fitar o mar azul...

 

Mas sem vaidade de ali expor seu corpo exul,

e em praia usar tão só vestido leve;

eu até mesmo preferia fosse a neve

que ela trilhasse, muito além do sul.

 

E a seguiria, sem lhe dar meu sobrenome,

diante do orgulho com que conserva o seu,

por mais que nela já o espanhol seja distante,

 

que em cada geração já nos consome

pura etnia e já a sua se escondeu

nos emaranhos da genética inconstante.

 

ADJUDICAÇÃO I – 19 JUN 19

 

Nunca pensei te achasses disponível

ou que por mim pudesses ter desejo

e aquela confissão leal, sem pejo,

tomou-me de surpresa indescritível,

 

pois despertou em mim uma indizível

nostalgia por abraços ou por beijo,

de bocas do passado, cada ensejo

esmaecido já, na intransponível

 

neblina que recobre o bem gozado

Foi um choque, talvez... mas superei

e na lembrança dos beijos que não dei

 

luziu somente este esplendor inglório

das saudades de um futuro inesperado,

na espera de um presente transitório.

 

ADJUDICAÇÃO II

 

Há muito tempo que sei me contentar

com as mulheres que a vida já me deu,

atrás das fascinantes, qual sandeu,

mui certamente não quero me humilhar.

 

Segundo dizem, só poderás contar

que uma em dez sinta desejo teu;

não foi tal número que me acometeu,

que minha tendência é com uma só ficar.

 

Porém se ganho um presente inesperado

é bem difícil que o queira resistir,

por mais problemas que me venham a surgir

 

e me convenço, por ilusão domado,

que causar um desaponto é crueldade

e ao novo beijo acolho sem maldade...

 

ADJUDICAÇÃO III

 

Mas nem por isso lhe faço uma escritura

de minha vida, nem sequer usucapião;

dou-lhe fatias de meu rubro coração,

mas dentro em mim conservo a alma pura,

 

que sabe retribuir toda a ternura

e assim partilha dos beijos em botão,

porém conservo o controle da emoção,

enquanto a emoção dela perdura...

 

Em minha vaidade, me suponho caridoso,

por aceitar quem antes não quisera,

sabendo embora ser dela a doação,

 

trilhando a beira do abismo perigoso,

em que me espreita do amor a besta-fera,

que então devora inteira a minha razão!

 

FIDEICOMISSO I – 20 JUN 19

Quero teu beijo agora, doce e puro:

que seja dado em breve, silencioso,

que só o pulsar do coração zeloso

interfira na certeza desse escuro

momento, em que o céu assim se apaga,

em que o sorriso e a dor se desvanecem,

em que o tempo e a terra já se esquecem,

nessa emoção que alma e carne esmaga;

porque esse beijo deve ser eterno,

um beijo que transcenda céu e inferno,

quando comprimes teu peito contra o meu;

quero que seja o beijo de um momento,

um beijo que transcenda o casamento

e que demonstre o quanto ainda sou teu...

 

FIDEICOMISSO II

Mas este amor que te lego por herança

deverá ser repartido a co-herdeira,

essa que amei, talvez por vez primeira,

seu rosto vago já na minha lembrança,

mas sobrenada na memória mansa;

e caso seja após ti a derradeira,

que então lhe deixes minhalma por inteira,

já que por morte não mais queres minha bonança,

porque esse amor e o beijo que te dei

são para ti, não para os descendentes,

que nunca vi e talvez não mais verei,

já que este codicilo somente vigirá

depois que eu mesmo volva às minhas sementes

e um beijo morto jamais retornará.

 

FIDEICOMISSO III

Mas a intenção do beijo que te dei

não era nunca a de ser legado por herança,

mas em ti permanecer ampla bonança,

pois nesse beijo minhalma te mandei;

contudo o amor que assim aprimorei

é transitório de acordo com a ordenança,

até que a morte, em sua final mudança,

nos separe... de maugrado o aceitarei,

pois o momento, aquele instante divinal,

em que foi dado o beijo doce e puro,

transportarei comigo além da morte,

sem que te imponha dever tão residual,

que sejas livre de amar em teu futuro,

com meu sincero almejar da melhor sorte.

 

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