segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 

 

MISÉRIA I – 26 jun 2019

 

Nem sei por que razão amor perdi:

Era tão forte e cego e afortunado...

Daria tudo só para a teu lado

Poder ficar... Pensava só em ti...

 

Porém não mais quiseste meu carinho;

Não sei se outro amor te transformou;

Não sei se apenas teu coração mudou

E realmente prefere estar sozinho...

 

Só sei que a mágoa fundo me tocou,

Amarga e doce como um sonho antigo,

Porque perdi de mim mais que a metade:

 

Perdi aquela que meu corpo amou;

Mas foi pior, porque levou consigo

Minhalma sem deixar sequer saudade...

 

MISÉRIA II

 

Viver sem alma é coisa assaz difícil,

Especialmente sem dela ter saudade!

A mente fica amortecida na verdade,

Somente o espírito lançado como um míssil

 

Para enfrentar este mundo pouco dúctil;

Não cabe ao espírito a materialidade,

Ele nos liga à espiritualidade,

Feito de luz e trama do inconsútil.

 

Por isso, ele constrói, ao nascimento,

Uma extensão de si, chamada “alma”,

Para reger-nos no mundo material,

 

Que vai sofrer diário acrescimento,

Furioso às vezes, ou somente em calma,

Até o momento da extinção mortal.

 

MISÉRIA III

 

Eu não criei essa ideia, certamente:

“A minhalma engrandece ao Senhor

E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,”

Cantou Maria no “Magnificat” dolente.

 

Mas é difícil explicar a toda a gente

Que além da alma haja um espírito de amor,

Parte de Deus, parte do Criador,

Que para Deus retorna, finalmente.

 

Isto parece até ter em menoscabo

A ideia de uma só encarnação,

De apenas uma vez virmos aqui,

 

Porém se fala em “vender a alma ao diabo”,

Uma evidência desta antiga confissão...

Mas ai de mim!  Vendi minhalma a ti!...

 

RITUAIS I – 27 jun 2019

 

quando voltares e teu rosto Mudo

mostrar todo o desejo que, Contido,

velado fica pelo olhar Retiro,

traído fica pelo olhar Desnudo,

que se desloca lento por meus Lábios

e pela cova rasa do meu Queixo,

na tremura dos dedos, quando Deixo

derrames o téu cálice; dedos Sábios

para o instante das carícias, Disfarçados,

perdidos pelo vinho nos Desvelos

do líquido encarnado, quais Novelos,

levando à boca fogo ao invés de Beijos,

para queimar  o fogo dos Desejos,

que sempre acabam todos Confessados...

 

RITUAIS II

 

mas o litúrgico apenas se Efetua,

perante a tua esplêndida Presença,

a mente e o coração em lida Tensa,

quando a janela só revela a ausência Tua,

tal como se cortasse espada Nua

toda esperança de uma forma Intensa,

melancolia sobre mim se Adensa

e o amor no coração se torna em Pua,

pois meu altar não tem mais Paramentos,

nem quem ali apreste um Sodalício,

contém somente o frio à flor da Pele,

só a memória velando Sentimentos,

qual da reminiscência é o santo Ofício,

sem que a porta do santuário nunca Sele.

 

RITUAIS III

 

mas quando chegas, a memória Queima

na ara sagrada do presente Ativo,

o gelo todo derretido nesse Crivo,

o merencório inteiro se Atoleima...

para a busca de teus dedos então Teima

cada centímetro da pele com que Privo

cada carícia em sonho Redivivo

e cada poro, então se Oxigena...

que só respira minha vida do teu Lado,

quando trazes para mim a Doação,

esse teu dízimo de generoso Amor,

cada vaso ora de beijos Adornado,

cada toque uma nova Inspiração,

cada flor murcha a se fazer mimosa Flor...

 

RENÚNCIA I – 28 jun 19

 

Sonho verde de aromas marchetado,

Estertor peregrino e marginal,

Desejo apenas de esplendor fatal

De quem ao ver-te fica arrebatado...

 

E nem sequer pelo nome te conhece,

Mas apenas possuiu-te um só momento

De sabor capitoso, qual o vento

Carrega odores, mas amor esquece...

 

A te envolver na flama deste olhar,

Num abraço gentil, mas apertado,

Que o corpo aflora e a alma violenta...

 

Suspira o corpo, instantes a sonhar,

O coração, porém, fica agitado

E com o aroma apenas... se contenta.

 

RENÚNCIA II

 

Mas por acaso pensas que eu não sei?

Que contida inteiramente em cada verso

Em que descrevo o meu querer perverso,

Existe apenas a mentira que contei?

 

Que cada flama assim que te enviei

Talvez ler devas somente no reverso,

Que o nada esteja no interior imerso,

Cada poema de si mesmo apenas rei.

 

Algo que apenas para si floresce,

Ansioso em completar os seus quartetos,

Forjando a métrica o melhor que pode,

 

Sem que esse amor seja sincera prece,

Mas somente o encaixar desses tercetos,

Na esperança de que tal amor te engode!...

 

RENÚNCIA III

 

E ao mesmo tempo, amor meu, desconhecida

A quem conheço apenas pelo olhar

Em que meu verso pôde penetrar,

Ainda amor me assoberba de vencida.

 

Amor é parte constante desta vida,

De quem jamais te pôde contemplar

E te consegue tão-somente idealizar,

Como a mais bela mulher que foi nascida,

 

Só para mim, o vácuo a preencher

Que as tais que conheci não preencheram,

Na obsoleta quimera de seu beijo,

 

Que realmente me pudesse recolher

De corpo e alma nos olhos que me leram,

Em devaneio mais além que o meu desejo.

 

RESGATE I – 29 junho 2019

 

Meu coração, que estava tão cansado,

Somente de te ler, já se assanhou!...

Ficou pulando, em gesto deliciado,

Para te ver contente se apressou...

 

Meu coração, que estava tão descrente

De nesta terra achar consolação

Modificou-se assim, tão de repente,

Num subitâneo idear desta emoção.

 

De mim tiraste o sonho que jazia,

Pois despertando a luz que já tremia,

Meus olhos reabriste à luz primeira,

 

Deixando ideal antigo e tão conforme,

Quase explodindo de um desejo enorme

De tudo usufruir da vida inteira... 

 

RESGATE II

 

Quanto capricho existe na ternura!

Cada frase de amor aveludada

Penetra fundo na alma ressecada,

Dali afastando a folha seca e impura,

 

Que amarelava sobre a argila dura

De uma renúncia pouco assimilada,

Outra mentira para ser contada,

Anestesia anelando cada agrura.

 

Como se torna fácil se a ansiedade

De se querer restaurar existe ainda,

Por mais coberta por serapilheira infinda,

 

Ou retalhada por laivos de vaidade

Que uma só frase polvilhada de harmonia

Traga do fundo o ardor que ali jazia!

 

RESGATE III

 

Assim apenas elogios me fizeste

Que sei por certo aos versos pertenceram,

Não ao autor de quem se desprenderam,

Por mais que a confusão ainda proteste,

 

De que minha pobre alma assim se infeste

Pelos novos devaneios que sofreram

E que perante o real reconheceram

Que esse belo arremesso tão só apreste

 

A cesta erguida, casual e impermanente;

E contudo, tais palavras resgataram

Mil anjos e demônios impacientes...

 

Por isso te agradeço, imprevidente,

Pelas minhas veias que se dilataram

Contra ferrugem de grilhões impenitentes.

 

A DAMA DO XALE – 30 junho 2019

 

De versos enfadonhos já cansei-me:

Eu quero vida!    Os versos só me enleiam

e mesmo quando o meu candor me peiam

aos versos digo: Já não mais prendei-me!...

 

Nesta minha musa estranha e tão arfante

quero inspirar-me de um ardor fogoso,

queimar-me o corpo em beijo doloroso,

a tal ponto que a mente, delirante,

 

se entregue na amplidão deste martírio.

E deixe de almejar um vão delírio

por um calor que tanto mais suplica,

 

quanto o mesmo calor que em mim se agita

se apaga na voraz chama que indica

que é o lúbrico olhar meu que a faz bonita.

 

A DAMA DO XALE II

 

Neste ditado feito de malícia:

“Está a beleza nos olhos de quem vê,”

a busca de um piropo se provê,

num adendo capcioso de ledícia,

 

talvez em traço até de impudicícia,

na busca de escutar o que se crê,

que o desejo perpasse o que então lê

e com ele acaricia a sua letícia.

 

Mas na verdade, aqui não há mentira,

seja desejo feromônica ilusão,

só incitamente para a gestação,

 

em seus meandros gentileza gira,

ainda que seja apenas de um ensejo

em que se possa consumar igual desejo.

 

A DAMA DO XALE III

 

Então os versos vêm-me protestar:

“Por que razão nos julgas sermos morte?

Não somos de tua vida o melhor porte,

algo que deixas quando tudo terminar?”

 

Sem dúvida, tais versos vão ficar

Inseridos na trama desse corte,

o tecido digital de branda sorte,

enquanto a nuvem ao menos perdurar.

 

Destarte, eu viverei em digital,

pelas teclas a subir até o visor

e nas entranhas do computador,

 

tornar-me em zero e um imaterial,

mesmo que o corpo quisesse teu calor

e a alma inteira ansiasse por amor.

 


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