domingo, 22 de maio de 2022


 

 

ESCOLHAS E TEMORES I – 21 MAIO 2022

 

Tremem os mortos nesta noite fria,

em especial os da camada superior,

ali não fulge um só resquício de calor,

nem uma nesga de luz os alumia.

 

Se eu fosse morto, só deitado ficaria,

meu ataúde apertado e constritor,

não me virava, maior que fosse o ardor

e em posição fetal não dormiria…

Se não morresse, então pior seria,

ao acordar-me dentro do ataúde,

em breve tempo, sei bem, sufocaria...

Por sorte é rara qualquer catalepsia,

porém a morte é gentil e não me ilude,

pois nessa treva despertar não quereria!

 

ESCOLHAS E TEMORES II

 

Não temo a morte, mas que seja permanente,

sem perseguirem-me assomos mais vitais,

que durma o corpo para nunca mais,

em sua perpétua solidão adstringente.

 

Se for preciso, me sentiria contente

que chegue agora, sem demorar demais,

sem longos adiamentos nos finais,

sem que doença malsã seja presente.

Não temo a dor, mas prefiro seja breve,

sem que precise adivinhar sua duração,

que a morte chegue já e sem demora,

mas não moléstia que toda a paz me leve,

solicito assim eutanásia na ocasião,

sem precisar de aguardar a final hora.

 

ESCOLHAS E TEMORES III

 

Sobretudo, desejo a cremação:

se por acaso eu for catalepsiado,

só pelo fogo será o corpo despertado,

tarde demais para gemer sua solidão!

 

Logo minha carne será pó sem emoção,

que essa promessa me tem sempre consolado:

“Tu és feito de pó e em pó serás tornado”:

Que diferença me fará essa extinção?

Conservo sempre a urdefesa primordial,

mantenho a crença na imortalidade,

que o corpo se desmanche e eu permaneça;

e se acaso a morte é o dom final,

a abraçarei na maior equanimidade,

quando meu corpo para o abismo desça.

 

ESCOLHAS E TEMORES IV

 

Só não entendo por que tantos receiam

a cremação, como sendo horripilante;

muito pior é ser levado adiante,

para ser pasto dos insetos que rodeiam.

 

Melhor ser logo imerso em carburante

quando a meu restos plena flama ateiam,

que alguém espalhe aos ventos que me anseiam,

como adubo para a terra nesse instante.

Eu deveria estar dormindo nesta hora,

tomei até minha melatonina,

mas são os versos que anseiam por sair:

que venha o frio da noite, sem demora,

mas não o frio a que a carne se inclina,

tão somente este iniciar de meu dormir!

 

ESCOLHAS E TEMORES V – 22 mai 22

 

Um ataúde não oferece proteção

para seu ocupante.  Sua opacidade

dos vivos oculta a dura realidade

da carne a derreter-se na ocasião.

 

Todos evitam enfrentar essa visão,

que seu futuro espelha sem maldade,

mas com certeza.  Estranha esta saudade

desses anos contingentes que virão.

Contudo, ao mesmo tempo existe o medo

de que os corpos retornem, a assombrar,

os mortos-vivos seu ciúme a nos mostrar;

assim o caixão se aparafusa desde cedo,

caso o infeliz consiga despertar,

buscando em vão a luz no seu degredo.

 

ESCOLHAS E TEMORES VI

 

Por isso, se o caixão baixasse à terra,

era costume grossas lápides deitar,

que algum zumbi ou lâmia ao despertar

não se viesse vingar de quem o enterra.

 

Nem todo povo a tal coisa se aferra,

o costume egipcíaco era o de embalsamar,

mesmo na América tal prática a reinar,

em grandes jarros suas múmias cá encerra.

Em certas áreas de Bornéu e Nova Guiné

deixavam sentados os mortos em um canto

de sua choupana, pouco a pouco a endurecer.

Estranhos os rituais de cada fé,

mas para mim só o crematório é santo

e que nos ventos meu pó se vá perder.

 

ESCOLHAS E TEMORES VII

 

Em certos casos, há verdadeiro romantismo,

qual na lenda dos vampiros legendários,

tantas versões em livros e breviários,

só tem suas vidas em comum o mimetismo.

 

De algum modo a demonstrar o dimorfismo,

em geral, tendo morcegos por contrários,

corujas, ratos, aranhas, outros seres multifários:

periodicamente nos retorna esse modismo,

pelo despeito de ser tão curta a vida,

que sempre à busca levou desse elixir,

com ingredientes tétricos e arcanos,

mas sendo a carne finalmente consumida,

o que levou tanto a Igreja a insistir

que retornasse, em até termos profanos?

 

ESCOLHAS E TEMORES VIII

 

Paulo de Tarso nos deixou bem claro:

“Semeia-se corpo animal e é ressuscitado

um corpo espiritual.” Assim é afirmado

também no Credo Niceno em tom preclaro.

 

Mas no Apostólico, um texto mais amaro,

introduziram do corpo o despertar,

hoje até da própria carne a se pregar.

Que desespero enxergo nesse faro!

A contrariar as Sagradas Escrituras,

essa urdefesa da imortalidade

foi feita idêntica à vida corporal,

porém ressurgem apenas almas puras,

da Graça efeito em sua totalidade,

sempre em retorno ao seio divinal.

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