LILLIAN ROTH, atriz do cinema mudo.
GRADAÇÃO 1 – 26 DEZ 2021
Somos
diversos, eu e tu, do que já fomos;
diversos
um com o outro, em sentimento,
diversos
em nosso próprio encantamento,
diversos
os corpos dos que ora somos;
há
um momento em que juntos nos pomos
e
nos temos por inteiro em tal momento,
mas
é somente a ilusão que hoje acalento,
que
nosso tempo se divide em gomos
e
aquilo que já fomos, nunca mais
seremos
novamente, inda que o mundo
permaneça
inteiramente transparente,
imóvel
como em banca de jornais,
enquanto
o nosso instante só é profundo
naquele
sempre que se foi indiferente.
GRADAÇÃO 2
Nosso
passado é como um vasto outeiro,
camada
após camada acrescentado,
por
arqueólogos a jamais ser escavado,
mas
que se mescla num antanho inteiro;
o
que lembramos do beijo derradeiro
não
recordamos na mesma forma dada,
o
beijo que recordo, estrela alada,
não
é o beijo em teu próprio travesseiro:
trocaste
as fronhas e nem um só fio de cabelo
ali
se encontra que tenha sido meu;
eu
não troquei o travesseiro da lembrança;
tu
só recordas o suspiro do desvelo,
eu
me recordo de tudo que foi teu,
já
descartada a última esperança.
GRADAÇÃO 3
E
mesmo que não fosse dessa forma,
nenhum
beijo retornamos a lembrar,
a
carne que abracei em teu amar
não
será mais a carne que retorna,
mesmo
que venhas a meus braços toda morna,
que
teu perfume eu possa respirar,
não
é o perfume do antigo recordar,
teus
lábios beijo em diferente norma;
e
mesmo o meu, de que não me separei,
já
é bem diverso, todo transmudado
daquele
corpo que abraçou o teu;
só
em minhalma eu te conservarei,
só
em teu coração há um fio deixado
desse
presente que um dia se perdeu.
ESCAVAÇÃO 1 --
27 DEZ 21
Bebo
o relógio e vou ver horas no copo:
meu
olhar cuida dos dois na onirosfera,
no
sonho te acho tal como eu quisera:
coloco
as ferraduras e presto a ti galopo;
bebo
teus olhos quando as pestanas topo
de
teus cílios ondulantes de quimera,
escolho
as horas em que nada se perdera,
do
amor a lança no próprio peito emboco;
na
onirosfera o amor é suave e permanente,
nada
que houve jamais dali desaparece,
o
sonho dura mais que qualquer prece,
mas
a mulher que ali eu amo é diferente,
seus
beijos dá-me, totalmente dadivosa,
sem
que se esfaça como as sépalas da rosa.
ESCAVAÇÃO 2
Na
onirosfera só o passado permanece,
como
guardado em ágeis escaninhos:
busca-se
um dia repleto de carinhos,
que
lá se encontra e a tessitura tece;
é
uma dita que ali jamais se esquece,
só
fios de ouro bordados nesse ninho,
nenhum
pipilo de pássaro mesquinho,
nenhum
ciúme, nenhum capricho desce,
pois
futuro não se acha em onirosfera, (*)
há
só um presente forjado de passado,
em
mil segredos nos borda a noosfera; (+)
somente
ali reverdece o nosso antanho
e
o paladar revive em mútuo agrado,
sem
da incerteza sofrermos qualquer lanho.
(*)
esfera dos senhos (+) esfera dos pensamentos
ESCAVAÇÃO 3
Ali
se encontra tão somente o relembrado,
feito
de névoas e lantejoulas de ouropel,
salvo
se um dia ansiarmos pelo fel
da
separação indo empós ao desgastado,
aziago
sonho que ao estarmos deste lado
recordamos
tantas vezes, mais que o mel
dos
dias felizes em seus sonhos de papel:
por
que é difícil pelo bem ser tocaiado?
Então
te busco no país do Sonho Alado,
em
que serás tu mesma sem mudanças
e
onde eu mesmo não me modificarei,
em
que o presente é o rebroto do passado,
no
qual escolho tão só os dias das bonanças,
que
somente junto às tuas acharei.
SEM
MAIS AÇODAMENTO I – 28 DEZ 21
Por
mais se vá ao tal reino dos sonhos,
aqui
vivemos os nossos pesadelos;
por
mais que aqui vivamos em desvelos,
sempre
surgem pensamentos mais medonhos,
que
nos assaltam para deixar tristonhos
ou
para mais agudizar os nossos zelos;
não
nos invadem os pensamentos belos
e
nem sequer nos abordam os bisonhos;
quando
queremos recordar um bem
algum
esforço teremos de fazer
e
nunca é igual àquilo que já foi,
porque
o passado já faleceu também,
mas
os espectros conseguem reviver
e
nos lembrar daquilo que mais dói.
SEM
MAIS AÇODAMENTO II
Assim
não somos mais os mesmos nesta hora
que
se esvai na maior pressa e transitória;
nos
próprios dias da mais perfeita glória
escorre
o tempo e de nós parte sem demora;
mas
poderemos escolher outro porvir, embora
e
dentre as mil opções forjar a história,
a
que nos seja menos merencória,
no
turbilhão de escolhas que nos jorra;
em
livre-arbítrio um só fio desatar
desse
Nó Górdio que permite conquistar
não
a Ásia, mas uma senda favorável,
que
Alexandre, impaciente, foi cortar,
mas
que a nós somente cabe desatar
dentre
as mil ramas desse imponderável.
SEM
MAIS AÇODAMENTO III
Assim
não somos mais os mesmos, realmente,
mas
nosso recordar do que já fomos
é
importante para nos compormos
das
mil lembranças de um baralho diferente;
não
obstante, se te encontro novamente,
procuraremos
pretender que ainda somos
o
que deixamos de ser mais que repomos
pela
ansiedade de amor à nossa frente;
mas
recordamos do amor o passamento
e
precisamos construir um novo amor,
mais
do que um a outra conquistar,
mais
do que uma ao outro o sentimento
que
foi um dia, em haustos de calor,
para
entre os dois um novo amor se elaborar.