quarta-feira, 29 de setembro de 2021


 

 

MARÉS ESTRANHAS I – 26 SET 29

 

Eu cruzo a imensidão das marés mortas,

gotas de chuva nas cinzas de meu pão,

sem me molhar em bênção ou maldição,

prossigo reto em minhas rotas tortas.

Tu lês o que eu escrevo e não te importas,

qualquer que seja a tua orientação;

tampouco sabes de teu barco a direção,

os mares cinzas com tuas quilhas cortas.

Estagnado o barco de minha infância,

Mar de Sargaços de minha adolescência,

na calmaria de minha juventude

e o barco segue a própria navigância

e te leva nas correntes da indolência

para onde quer, sem que ninguém te ajude.


(Na ilustração, Shamilla Miller, atriz sul-africana)

MARÉS ESTRANHAS II

 

Eu subo em vão à gávea principal,

deixei meus olhos nas gáveas secundárias,

minhs órbitas marcadas por escaras,

as pestanas a piscar ao pôr-do-sol,

que não me pisca de volta o seu farol,

manda apenas raios secos nessas várias

chuvas de pó que roem as anteparas

da mezena e bujarrona em seu anzol.

Eu lanço à frente a âncora de gelo,

não a lanço para as águas, mas ao ar

e o vento firma as garras na corrente

e o cabrestante gira em pleno zelo,

enquanto em vão eu busco algum olhar,

vazias órbitas em pestanear pungente.

 

MARÉS ESTRANHAS III

 

Ainda constato a ausência das marés;

a Lua dorme em seu esconderijo,

não desce sobr mim seu luar rijo,

que ainda exista é só crença de minhas fés.

E o Sol afirma no horizonte os pés,

para onde as pontas de meus dedos eu alijo,

com suas unhas nas nuvens eu redijo,

de Braille um testamento em rodapés.

E me asseguro que as marés morreram

e só posso avançar após minhas veias

precipitar no vasto mar exangue,

que até o chão do sol chegar puderam,

a transportar-me vis-à-vis as peias

dessa salsugem colorada de meu sangue.

 

MARGENS ESTRANHAS I – 27 SET 21

 

O barco sobe pelo rio acima,

envigorado pelos jorros das monções,

a tempestade na crueza das canções,

que a terra fertiliza em dura rima;

a água mansa minha quilha mima,

contra a corrente minhas invenções;

os demais descem aos escorregões,

jangadas lixam meu casco como lima,

mas eu demando a força das marés

e são as cabeceiras que procuro,

salto represas como o faz salmão

e no remanso das perdidas fés

meus males todos finalmente curo,

no desovar gentil do coração.

 

MARGENS ESTRANHAS II

 

Porque não sigo o ideal da multidão,

cada bote ao anterior sendo atrelado,

a descer pela corrente em descuidado

semirrepouso sem qualquer alteração;

contudo eu busco tão só minha alternação,

por mais que a exaustão tenha provado,

antes lutar contra o fluxo, que arrastado

ser para o abismo de toda a multidão;

tenho minhas ovas a deixar nas cabeceiras,

dali hão de nascer mil botes mais,

enquanto eu me desfaço totalmente,

sêmen de versos arrojando nessas eiras,

minha semeadura em férteis cabedais,

até que os corvos me devorem gentilmente.

 

MARGENS ESTRANHAS III

 

Se nesse orgasmo final for devorado,

o que restou de mim subirá aos ares,

seus ninhos a me servir de lupanares,

sendo e não-sendo ao ver-me dispersado,

porém os barcos que do meu terão brotado

descerão rio abaixo em mil vagares,

talvez deixem alguns versos em lugares,

ou desçam todos enfim ao mar salgado,

arredondados em calhaus na maioria,

para seguirem esse porvir já aprovado;

porém alguns herdarão o meu pecado

e aproveitando algum suflar da maresia,

virão também às poças da nascente,

para de novo ali deixar a sua semente.

 

EXISTÊNCIAS ESTRANHAS I – 28 SET 2021

 

Dizem que a flor do lótus na semente

traz miniatura de si mesma detalhada

e por isso a consideram flor sagrada,

demonstração de um ser ainda latente;

a semente é e não-é um ser vivente,

não é a flor em seu total desabrochada,

contudo é a flor a seu viver predestinada,

ser e não-ser, ente sendo e igual não-ente,

sem que aqui exista qualquer contradição;

é uma potência no aguardo de seu ato,

um númeno que virá a ser fenômeno, (*)

mas a semente não é ainda a brotação

e a flor brotada, pelo mesmo fato,

não mais semente de seu prolegômeno.

(*) Númeno, nômeno ou nôumeno sendo algo

mentalmente concebível, em oposição a algo observável.

 

EXISTÊNCIAS ESTRANHAS II

 

Ser e não-ser em seu eterno devenir,

tal como Heráclito Obscuro nos falou,

a gota dágua que nos dessedentou

tornada em sangue nesse seu devir;

deixa a água de o ser, quando se via

em sangue transformada ou potenciou

enquanto água já o sangue em que virou?

Já existe o sangue dessa água no fluir?

Carbono e Oxigênio são dois elementos

que se combinam em monóxido de carbono,

quando o ser elemental faz-se em não-ser

nesse Carbono com todos seus portentos

ou cada um dos elementos dorme sono,

enquanto o gás se expande em seu poder?

 

EXISTÊNCIAS ESTRANHAS III

 

Em cada molécula, potência e ato coexistem,

cada átomo um minúsculo universo,

em qualquer substância assim converso,

mas ao unir-se, já não mais existem?

E quando essas moléculas não persistem

e os átomos tomam o sentido inverso,

no silabário de seu antigo verso,

ditas moléculas em nada mais consistem?

Deixa a nuvem de existir, virando chuva

ou a chuva já era a nuvem em potência?

E se a chuva se evapora em sua vivência,

é esse vapor que sobe, em espiral

já o ser da chuva em pleno potencial?

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